31 dezembro 2008

2008, 365 dias, 8760 horas





2008, 365 dias, 8760 horas
O céu por cima dos pinheiros
Estrelas cadentes
A brancura de um lençol
A tua face franzina e movimentos pesados
Sorrisos lânguidos no olhar
Uma certa lassidão
Uma vela acesa sob o luar, junto à praia.
Tu, à volta da piscina, a andar, a andar
As torres eólicas – moinhos de vento – D. Quixote
Tu, ali no monte
Tu, ali à beira-mar
8 de Agosto – um rapazinho
Um vulto esguio, a descer as escadas
Como se viesses jantar
O canal MEZZO, passeios na FNAC
Lágrimas sempre prestes a brotarem
Um bebé alegre de olhitos negros
Tu na cadeira da varanda a relaxar
Uma praça em Barcelona
Saudades de Moledo
Cansaço
O nosso cansaço
Dar a volta por cima, uma vez
Dar a volta por cima, outra vez
A tua mão que segura a minha, por detrás do assento
E sempre...
“Mamã, vamos dançar?”
Um filho já pai
Sempre a fuga dos olhares
O medo de sair da toca onde me sinto segura
O ódio ao tempo
Um rosto de perfil sobre uma almofada
Um respirar cada vez mais lento
Uma mão quieta
Cravos vermelhos, numa jarra
Cravos vermelhos
A palavra doce “mãezinha”
Umas mãos de criança que se agitam
Raiva ao tempo
Insónia
Insónia
Os sons do David
Saudades do abraço da noite
A palavra David
As coisas em que não toco do David
Uns pezinhos alegres de menino
Um blog triste
Saudades
O espaço que se fechou e me arrepia
Uma tentativa infrutífera de pintar a vida de fresco
Roupas de criança
Brinquedos num quarto amarelo
Uma bicicleta parada, pendurada, enferrujada
A imagem que o espelho me devolve
Não me reconheço
A angústia ao anoitecer
A saudade amordaçada
Os contornos (im)precisos dum momento de ruptura
A estranheza do acordar
Tanto tempo
O espanto
Tão pouco tempo
Dias tão longos, parados no tempo
Um menino chamado Miguel
Um quarto quase sempre fechado
Sempre o espanto
Um palco escuro e desmantelado
O encanto de uma jovem mãe
Gaivotas no mar
Uma certa rocha na praia de Moledo
Há coisas que não podem acontecer
Passeios pela FNAC
O teu relógio de pulso no meu pulso
O meu jardim parado
O sorriso e ternura do meu filho, como jovem pai
Gatos que descem pelos muros
A ausência e o silêncio
As guitarras encostadas à parede
A inocência duns olhos de criança
Aviões
Os que nos levaram à procura de mais tempo
Os pássaros nos pinheiros
Um rapazinho a palrar
Tu, no pátio de Moledo, a descansar
“Mamã, vamos dançar?”





CHOVE
>
> Chove o velho ano vai-se embora
> Diz adeus ao que ido já suou
> Mas contudo olhando-se ele já chora
> Do tempo em que perdido pouco amou
>
> Em sua rota no fim se levantou
> De novo e persistente a toda a hora
> Grito de novas guerras se soltou
> E que insiste em não soltar a nora
>
> Corre o grito bramido estrada fora
> Do clamor das desgraças que criou
> Para lá das lágrimas soltas desta tora
>
> Chove envergonhado do que criou
> Endémica é a miséria que o já cora
> Triste ao mirar-se no que passou
>
> Ano velho, roupa velha e relha!
>
> Jaime Latino Ferreira > Estoril, 30 de Dezembro de 2008

28 dezembro 2008

Uma caixa de correio




Queria travar o tempo que me empurra. E não consigo.
É um combate desigual.
Tenho contra mim a condição humana
Tive contra mim a lei da morte, imprevisível, na escolha da caixa do correio. «No dia seguinte ninguém morreu.» diz-se em "As intermitências da morte".
Esse foi um intervaloo, fruto de um acaso de amor...
Queria ter travado o tempo, a tempo de viver um futuro antigo, desenhado com paixão de mãe.
Agora, por uma qualquer confusão estranha nas caixas do correio, esse futuro deixou de ser o futuro que sonhara.
Há tempo mas não houve tempo.
Não houve tempo de dizer que era engano.
Tinha só 29 anos...
Algo acelerou o teu tempo ou o consumiu, sem me consumir com ele.
Desencontrámo-nos, num certo momento difuso, entre a noite e o nascer dum nostálgico e estranho dia.
E eu queria, mesmo assim e mesmo agora, travar este tempo que me empurra por percursos de que não conheço sequer o nome.
Assusto-me perante esta janela opaca. Não vejo para além da barreira.
Mas empurram-me.
E eu sinto-me cansada.
Parti e permaneço.
E são precisas forças para permanecer, assim...empurrada pelo tempo.
Porque tem que ser.
Porque há coisas que não podem acontecer.
E se acontecem?


Amor Antigo

O amor antigo vive de si mesmo
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor ...

Drummond de Andrade

27 dezembro 2008




Espero a Liberdade

Depois do dito

Não há palavras

Que possam voltar atrás
Depois de feito
Não há nada
Que possamos desfazer
O dia terminou
E o pôr-do-sol
Desaparece
A noite começa
E eu apareço
Na escuridão
A auto-estrada está vazia
O meu carro avança
Para outro lugar
Não há tempo para olhar para trás
Não há lugar para mim
Não há lugar para mim
Por onde quer que passe
Ninguém acreditará em mim
Ninguém me ouvirá
Que o oceano dissolva o meu passado
Que o vento leve a minha alma
Decidi esperar pelo dia
Sentar na noite com os olhos
Postos nas estrelas e o meu corpo
Nos céus
Acreditei em mentiras
Para ter liberdade
Mas agora despertei
Porque devemos confiar?

Perdi alguns dos melhores dias
No passado a ouvir mentiras
A esperar
Esperei todo o dia
Esperaste todo o dia
Esperámos toda a noite

Quando seremos livres?

David Sobral, 1993




ESPERA QUE CRESCE NA ESFERA


Espera que cresce na espera da rota da esfera

E roda que roda a rota que esfera

Que espera da rota sentir o que a espera

Na esperança da rota que cresce e que roda

Do fio do novelo que roda na roca

Enreda o novelo da rota que enroda

E enche o novelo na esperança da esfera

Que roda na roca da roda que espera

E espera na esfera da esperança que gera


E roda o que a roca na rota que toca


Na Rotação de Cassiano Ricardo


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 27 de Dezembro de 2008

Espero a esperança



ROTAÇÃO

a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
de novo a esperança
na esfera

a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
uma nova esperança
na esfera

a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
uma nova esperança
na esfera

Cassiano Ricardo


24 dezembro 2008



Já fiz os doces todos,nesta madrugada, até às três da manhã, como de costume.
Já tenho a mesa posta, como de costume.
Já parti o pão, já descasquei alhos, já está tudo em panelas, pronto a cozer.
Já tenho o perú no forno, para amanhã assar.
Fiz nova tentativa de pão de ló molhado. Só depois se saberá como saiu, desta vez, como de costume.
Já cozi o grão de bico para o Manel, como de costume.
Já tenho receio de que a comida não chegue...como de costume.
Já aspirei tudo, como de costume.
Tenho uma pinha verde para ir queimando e deitando cheirinho.
O Manel pôs música clássica, como de costume.
Eu pareço a do costume.
De avental, mangas arregaçadas e cabelo despenteado.
Mas não sou.
Como poderia ser, sabendo que nada voltará a ser, como de costume?
Não é e, contra todo o costume, vim para o teu escritório ensolarado e estou aqui, agora.
Deixei tachos e panelas.
Estou, aqui. Junto a ti, onde quer que estejas.
Porque...
Faltas tu, com as piadas do costume.
Faltas tu para me dizeres "Ó mamã, o jantar é só às nove; não aceleres."
Faltas tu, sentado no sofá, a fazer zapping, para chegares à conclusão que esta época não tem mesmo ponta por onde se lhe pegue, como de costume.
Faltas tu para ires roubando das travessas um sonho e dois ou três bilharacos.
Faltas.

Parecem coisas banais, comidas, televisão, mesa posta ... E são, de certa maneira,...
Mas, agora, não são porque faltas tu.
E tudo me parece estranho e irreal e despropopsitado, como o sol que bate, aqui, no meu teu antigo escritório.
E, no entanto, ...
À hora certa, porei, novamente, o avental.
À hora certa, serei, novamente, a cozinheira atarefada.
À hora certa, estará tudo pronto para receber quem vem.
Virá um bebé, o teu tantas vezes e tão desejado sobrinho.
Não vai querer desviar os olhitos das luzes da árvore de Natal que fiz para ele.
Mas, agora, meu filho, só estás tu, aqui neste meu coração cansado.
Agora és tu.

23 dezembro 2008

Violeta




Aos amigos que criei, nesta casa, só posso dizer que lhes desejo tudo o que de bom houver.
Pela minha parte, agradeço tudo o que me deram - atenção, afecto e respeito pela minha forma de estar.



E, hoje, nasceu uma menina especial. Chama-se Violeta.
Não a conheço, ainda.
Não sei se a virei a conhecer tão cedo.
Seria neta da minha melhor amiga, dentre os amigos de adolescência.
Chamava-se Fernanda.
Fernanda Cardoso.
Era grande, alta, enorme. E tinha uma gargalhada que movia montanhas.
Era a minha amiga.
Aquela a quem se conta tudo; aquela com quem se fala horas ao telefone e, pelo meio, se cozinha e se atende quem nos bate à porta.
Aquela que se ria na minha cara das minhas preocupações e tudo relativizava.
Aquela com quem ia pela noite dentro a jogar cartas ou o Risco, em que conquistávamos o mundo.
Aquela que, um dia, caiu numa rampa da escola.
E logo um veredicto atroz...
Aquela que confessou que, se pudesse, mesmo que morresse, a seguir, gostava de ter mais um filho - o 4º.
Aquela com quem inventava enfeites de Natal um pouco tolos - só chocolates na árvore que chegava despida ao dia 25.
Aquela com quem partilhava coisas estranhas, como comprar um vitelinho, pagarmos para que o criassem e, no fim (coitado!), dividiamo-lo a meias.
Aquela que "bebia" queijo da serra por uma palhinha porque já não podia mastigar... E ria-se.
Aquela a quem levei, quase às escondidas, o filho mais novo a vê-la no hospital.
Ela morria de saudades do pequenino que tinha 4 anos.
As enfermeiras pregaram-me um enorme raspanete...
Mas vi-a com a cabeça do Francisquito no ombro dela e que lhe dizia "Mãe, não voltas a cair, está bem?"
Numa noite de Junho de eclipse da lua, quando partilhávamos o fenómeno lunar, ao telefone (eu, na minha varanda e ela junto da janela do hospital onde fazia mais uma sessão de quimio) disse-me que não lhe agradaria nada que eu chorasse se ela morresse...
Morreu passados dois meses.
Assim, sem mais.
Deixando-me sem jeito e só.
Não fiz o que me pediu.
Chorei muito, muito.
Lembrei-me dela e das gargalhadas dela, quase diariamente, durante quase 10 anos.
Só a morte do meu filho fez com que não a recordasse da mesma forma e com a mesma frequência.
Ela adorava o David e o David adorava-a a ela.
Foi o primeiro rude golpe na minha percepção do mundo.
Hoje, soube que a filha mais velha, a Ana Bárbara, teve uma menina, a quem chamou Violeta.
Gosto de imaginar o enorme sorriso da Fernanda.
E do David, claro!
Se lhes tiver sido dada a possibilidade de escolher, estão, com certeza, juntos.
Lá... longe.

22 dezembro 2008

Um estar de certa forma...



Apesar de tudo.
Descubro que é possível sorrir, com o amargo cá dentro.
Sou capaz de falar, sem bem saber do quê.
Sou possivelmente duas, sem que o mundo desabe.
É possível a ternura porque muita recebi.
Ergui muitas portas, atrás das quais me posso esconder. Dali, posso ver. Mas não posso ser vista.
Dali vejo o mundo que gira, rodopia no eterno círculo, em roda do Sol. De roda, de roda...
E eu de roda, de roda, persigo-o.
É a lei da vida.
Mas parte do meu rodopiar não segue essa estrela antiga. É uma estrela vulgar.
Existe uma outra estrela oculta que eu persigo e sigo e sigo.
Procuro-a, sempre, levemente, subrepticiamente, sem que os outros se apercebam desse meu incessante procurar.
Há pedacinhos de tempo que roubo ao tempo.
Um intervalo, um escapar-me pelo tempo de um cigarro, na janela da cozinha, olhos postos no escuro do céu estrelado.
Um acaso, um descuido, um esquecimento de um livro ou um CD junto a uma fotografia ... um sorriso.
São gestos não pensados mas sentidos.
Pedacinhos de tempo que roubo.
Inofensivos.
São gestos meus. Refúgios transparentes. Nada significam para os outros.
Não vêem.
Estou escondida atrás duma das portas que coloquei entre mim e mim.
Entre mim e os outros.
Entre o agora e o momento de fixar uma outra imagem que vem e logo vai. Vem e volta...
E se perguntarem se foi esquecimento, posso, com lágrimas invisíveis, sempre sorrir, fingindo que sim.
Que me esqueci.
E se perguntarem por onde andei... direi, "por aqui!"
Pois, se não me ausentei!
E, no fim, posso sempre piscar-te o olho, como fazíamos - "Eles não entendem!"

19 dezembro 2008

"Que a Fortuna não deixa gozar muito"



Ontem foi dia 18.
14 meses desde que o David morreu.
Há quem diga que já foi há muito tempo.
Há quem me pergunte como é possível que eu tenha ainda tantas lágrimas.
Há quem me diga que não posso continuar assim.
Há quem me diga que eu e o Manel fizemos tudo o que podíamos.
Pois é...
Mas é assim...
Não se é mãe para isto.
E à minha volta, estão sempre a acontecer coisas que eu logo associo ao David.

Desde que o David adoeceu, desabituei-me de ver televisão. Tinha coisas mais urgentes a fazer e a atenção era toda dirigida para o meu filho.
Passei a ver algumas séries rápidas - CSI, Bones, Dr. House.... - que não exijam muito tempo de atenção e concentração.
Ontem, por acaso, liguei para a RTP.
E fui vendo, um pouco desatenta, o programa que a Catarina Furtado apresentava e que estava relacionado com o multiculturalismo da nossa actual sociedade portuguesa.
E fui vendo...
Comecei a sentir um certo mal-estar que não compreendia.
Os artistas convidados eram bons.
Ao contrário do que é costume, na televisão que é pródiga em divulgar música pimba, fraca de conteúdo... E dos outros (Sérgio Godinho, Fausto, Janita...), nada.
Fez-se, então, luz na minha cabeça.
Muitos dos cantores e artistas que iam passando ... tinham tido a luz do David ou eram apreciados por ele ou tinham, para mim, de alguma forma, a marca dele.

A Maria João, ontem, acompanhada ao piano pelo Mário Laginha, gostava das luzes do David. Disse-me, um dia, "o David era um jovem muito talentoso e inovador".
Vi também o Bernardo Sassetti, com quem o David trabalhou e por quem o meu rapazinho nutria enorme carinho e admiração. E penso que essa estima era mútua porque me disseram que o Bernardo vai lançar um novo CD e que uma das músicas é dedicada ao David.



O Mário Laginha ... conheci-o, pessoalmente, num dos espectáculos com luzes do David. E foi-me apresentado pelo meu filho que gostava de apresentar a mãe. Gostei dele, simples e de sorriso tímido.

O Rão Kiao. O David acompanhou-o numa tournée pelo país. E gostou do músico, do Sr. Alvim, guitarrista já idoso, que o acompanhava e com quem o David adorou conversar.
Depois tocou o Carlos Martins, saxofone,...
Há um programa do Jazz Faz Tarde (do David) que é dedicado a este músico. Aprendemos a gostar dele, aqui por casa. Com os seus Sons da Lusofonia.


Na bateria, estava o Alexandre Frazão, também conhecido do David, nos muitos concertos em que se encontravam.

E o Chapitô!! Esteve representado por um brasileiro, de quem não fixei o nome. Porque, neste caso, foi o Chapitô a ligação.
O David deu lá aulas de luz, durante 3 anos.

E vi desfilar o tempo.
As cenas sucederem-se com os entusiasmos associados e os sms que chegavam "Altamente!", "Lindo, mamã", "Muy bueno!"...
E pensei na crueldade do destino e no quanto ficou por fazer ao meu filho!
Tantos sonhos tinha "naquele engano d'alma ledo e cego..."

Os sonhos dos filhos transferem-se para as mães, por uma estranha forma de capilaridade.
Deve chamar-se amor.
Ou lágrimas.

17 dezembro 2008

O espírito do Natal



São dias como os outros.
Nem mais nem menos do que todos os outros que se vão sucedendo a outros tantos e deixando espaço aos que se seguirão.
E passarão de forma demorada, esperando a noite.
E à noite, aumenta a dor fingida de cansaço.
Da lonjura dos dias.
Já vazios os que passaram, temerosos os que virão e que, por sua vez, se sumirão esvaziados pela dor.
Dor indescritível, imaterial, cruel, vermelha da cor do sangue ... de que o único traço visível são lágrimas que, sem que as chame, escorregam.
Estes são dias como os outros...
Apenas mais longos, mais densos.
E esta dificuldade em respirar naturalmente.
Esta vontade de fugir ou de dormir.
O sono ou fuga - tanto faz.
Esta vontade de não olhar para não ter que ver; ou não ver para não ter que ser olhada.
Sobretudo, não ter que ser olhada.
Quero permanecer opaca.
Para que não vejam que, do passado, não sobraram nem entusiasmo embrulhado com laços nem sorrisos misturados com champanhe nem um cheirinho a canela.
Da ironia com que festejávamos o Natal, sendo contra o Natal ... restam contos do David.
Sobra um sorriso tímido.


O Espírito do Natal

O Natal é uma época tão bonita, é o fenómeno social que junta mais pessoas em estado psicológico considerado feliz, a seguir ao Dragon Ball Z. Os dinossauros da família saem das suas cavernas e vêm ver os seus filhos cosmopolitas e os seus internetos. O Natal, hoje em dia, já não é só o Natal. O Natal é O Natals no plural. Há uma razão óbvia, em vez de demorar um dia e meio, esta festa demora quatro dias.

No primeiro dia - o mais apático de todo o ano - paira no ar toda aquela expectativa: “ Será que o queijo da serra é bom, este ano?” , “Será que o Tio Felismindo vai notar que eu não comprei nada para ele?”. É também o dia de quebrar com a dieta e até o jejum, que se vinha fazendo desde o inicio do mês. É a altura em que as pessoas comem mais e melhor durante um tão curto período de tempo. É um sprint gastronómico suicida.

Como o Natal é feito estrategicamente para as crianças, os presentes vêm logo a seguir ao banquete. Depois dos adultos terem comido e estarem cheiinhos, os filhos podem receber as prendas sem necessitarem de dar mais beijos de agradecimento. Só uma grua levanta os dinossauros depois de comerem.

Relativamente à variedade das prendas, há muito para analisar mas vamos cingir-nos às prendas que o menino da família recebe. Em primeiro lugar está a prenda clássica do Natal que é a dos pais para o menino. Esta prenda varia consoante as notas escolares e será sempre um clássico porque, quer pelo entusiasmo quer pelo descalabro destas, causa sempre sensação.

Depois vêm as prendas candidatas a serem clássicas: o brinquedo estrambólico que o Tio mais novo e vanguardista trouxe do estrangeiro, onde está a tirar um curso de design aplicado às novas tecnologias de construção de candeeiros para casa de banho; o livro de título duvidoso que ninguém conhece mas que deu um clássico do cinema mudo oferecido pelo Tio que-já-era-velho-quando-eu-nasci-e-então-agora-nem-faço-ideia e, por fim, a velinha feita pela priminha mais nova que é a esperança da família porque tem-muito-talento-e-um-dia-vai-ser-famosa.

No dia 25 de Dezembro, dia de Natal, voltamos à comezaina absoluta. As palavras: colesterol, triglicerideos, ácido úrico e por aí adiante são banidas. Todos se lambuzam incondicionalmente ao almoço para depois dormirem a sesta. Quando acordam voltam para a mesa para comer mais.

No dia seguinte, a saga continua. É preciso proceder à árdua tarefa de dar um fim aos restos. Mais um dia a ruminar. Como a oferta, neste dia, já não é tanta como nos outros, a procura torna-se violenta. Como, supostamente, estamos numa sociedade moderna, esta violência já não é física. Trocam-se bocas indirectas acerca das prendas descabidas e mal imaginadas. Devido ao álcool - não só comer portanto- desabafam-se polémicas familiares já mortas e enterradas: “... ai, porque é que eu casei contigo? Estava muito melhor com o Carmindo Adrúbal da Pereira Carroça!”, “... pois! esse bêbado, esse contrabandista de cabras e queijo curado!”. E por ai adiante. É o dia mais interessante.

Por fim, no último dia, depois de Jesus Cristo já ter feito dois mortais encarpados na cruz, já não há mais nada para comer. Restam apenas rabanadas e alguns sonhos. Mesmo assim, a família reúne-se. Mas, desta vez, é para berrarem uns com os outros sobre heranças antigas, mas a verdade pura e dura é por já não haver comida.

O Natal é portanto uma festa extremamente bonita mas não é uma festa religiosa, como todos pensam. O Natal é mais uma festa de gastronomia, a juntar ao Carnaval com a sua feijoada à brasileira, à Páscoa com a sua doçaria e, claro, ao 25 de Abril, com o carro das farturas.


13 dezembro 2008

Tríptico


Quando as palavras não chegam
para retratar
a realidade,
buscam-se as dos que sabem dizer...
- os poetas de todos os tempos.





Tríptico
I
Nem a água corrente torna ao seu manancial
nem a flor desprendida da haste
volta jamais à árvore que a deixou cair.

II
Aqui era a morada do rei de Wu
e livre cresce a erva agora nas suas ruínas.
Mais longe, o imenso palácio dos T'sing,
tão sumptuoso e tão temido agora.
Tudo isso foi e não é, que tudo chega ao seu termo.
Os feitos e os homens viajam para a morte,
como as águas do rio Azul passam e vão perder-se no mar.

III
Um relâmpago fugitivo é a vida,
que mal dá tempo de a sentirmos passar.
Imutável é a face da terra, e a do céu;
mas quão rápido muda o nosso próprio rosto!

Li Tai Po (c.701 - c.762)

Outras luzes


A luz do pirilampo é a que ilumina o escuro.
É a luz mágica da infância.
Intocável.

CIDADE DE LUZ

Na cidade das trevas cruzam-se corrosivos os sentimentos magoados sem lhes encontrarmos um ponto de retorno, afogando-nos num não retorno carente de expectativas.
Possuídos de auto-comiseração lastimosa julgamo-nos infelizes para lá de toda a infelicidade, inconsoláveis, perpetuamente condenados e exercendo tão excessivo juízo sem qualquer apelo contra nós próprios como se alguma vez pudéssemos ser juízes, os melhores e únicos em causa própria.
Deuses maus e condenatórios, nós próprios cegos aplicadores contra nós mesmos das penas máximas e sem perdão!
Resquícios de um deus antigo e prepotente alojado algures como ruína ainda em nós e a tolher-nos os movimentos na suposta impossibilidade de remissão ...

Mas há, algures, uma cidade de luz e que bem vale procurá-la!
Temos o direito, o dever, diria mais, de procurá-la!!
Vale bem a pena, querida Ana Cristina!!!

É bem possível que nessa busca caiamos e voltemos a cair mas, determinados em levantarmo-nos prosseguiremos e ela vai-se, seguramente, raiando de luz ...
Cada vez mais, aliás, as cidades são mais e mais iluminadas e nós, como luzeiros, vamos deixando um rastro que as podem iluminar ainda mais!
Desculpe-me meter-me assim no meio de uma conversa entre Sua irmã e a Minha Amiga.



Jaime Latino Ferreira
Estoril, 12 de Dezembro de 2008

12 dezembro 2008

"O sofrimento devia ser o instrutor dos sábios; porque mágoa é conhecimento..." disse Byron


A propósito de me dizerem "O neto vai preencher o vazio...".


O tempo.
Só o tempo passado e pensamentos vagos comandam esta minha vida presente.
Errado? Talvez!
O tempo aparece-me, agora, de um modo completamente diferente.
Sabia que ia ser assim. Prepararam-me para isso.
Agora, sei que é e será assim.
Não se trata de não dedicar o mesmo carinho, a mesma atenção a todos aqueles de quem gosto, de quem gostei, de quem gostarei.
O carinho é o mesmo; pode até ser maior; a pessoa que o dedica é que é menos.
Não há retorno a quem eu era.
Ficou um fragmento de vida para trás.
O poder do passado, do meu passado é imenso; não pode ser ignorado.
É um passado de mãe inteira que se apodera do presente e impede o olhar o futuro sem medo.
Sem as janelas voltadas para trás, que se foram abrindo no percurso da minha vida, não é possível a minha existência.
É uma quase certeza que o meu coração pressente.
Também é uma certeza que a minha mágoa seria maior se não fosse partilhada.
Também é uma certeza que o sorriso do meu neto passará a ser uma imagem que se vai fixando, com contornos cada vez mais bem definidos, na minha memória.
Mas o meu neto, antes de tudo, é filho.
É filho do meu filho.
E quero para o meu filho o que, sempre, quis para mim - o amor dos meus filhos e ter um lugar bem grande no coração deles.
Não quero ocupar mais do que me cabe esse novo coração pequenino e esses olhos que, ao acordar, sorriem de forma tão doce ao "papá" e à "mamã".
É assim que eu entendo o Amor.
Independentemente da dor que me acorda, em cada amanhecer.
Apesar da mágoa e do vazio.
Apesar do futuro...


DEPOIS DE AMANHÃ

O amanhã é já hoje
Extingue-se ao bater desprendido
Do coração
E dá-se a queda
Abissal e sem travão
E cai em queda
Livre
Vertiginosa
Que ao bater da mariposa
Poisa
E se arrepia na queda que se pára
Trava
Que trava e trava
Ampara
Travamparaquedapoisalivrextinguebatehojeamanhã

Depois de amanhã

Jaime Latino Ferreira

11 dezembro 2008

Mãos e luz


Algarve/2007

Luz.
As mãos do David
aqui
tão próximas das minhas.
Como se tivesse sido ontem.
E fosse acontecer, de novo, amanhã.
Mas não...



Desprende-te, coração

..........................

E que testemunha afinal teu coração?
Entre ontem e amanhã balança,
silencioso e estranho,
e o seu bater
é já a sua queda para fora do tempo.

Ingeborg Bachmann

10 dezembro 2008

Corredor secreto



Tenho corredores dentro de mim.
Alguns secretos, por onde ninguém vai poder passar.
Só eu tenho a chave que lhes dão acesso
São corredores repletos de pequenas arcas onde guardo os segredos, teus, que só eu conheci.
Mesmo agora, seria incapaz de os revelar.
São meus, só meus.
São algumas pequeninas peças do puzzle que todos somos.
E que nos distinguem.

Essas pequeninas arcas são a prova de que me portei bem, no papel de mãe.
Mãe mãe, mãe amiga, mãe confidente, mãe protectora.
Tive tanta sorte!!!
Maior é o desgosto...
Agora, com mãos indolentes, abro as arcas; acaricio esses segredos, medito sobre o abismo e volto a fechá-las.
Guardo a chave, bem encostadinha ao peito.





Amor é o olhar total, que nunca pode

ser cantado nos poemas ou na música,
porque é tão-só próprio e bastante,
em si mesmo absoluto táctil,
que me cega, como a chuva cai
na minha cara, de faces nuas,
oferecidas sempre apenas à água.

Fiama Hasse Pais Brandão

09 dezembro 2008

Estranho!


Amores-perfeitos de Lamego


Mesmo escurecendo cedo, são tão longos os dias.
É tão cansativa esta árdua tarefa de fugir de mim própria.
Ou da outra que, em mim, acorda quando a noite cerra as portas do esquecimento e do sonho.
Acordo com uma espécie de estranhamento perante tudo o que me rodeia.
Surge sempre a dúvida (que não o é...). Como cheguei aqui, assim?
E regresso a um quarto de paredes claras, iluminadas pelo sol filtrado por persianas semi-corridas.
E vejo-me ali, quieta, à entrada do quarto, vendo-nos.
Nós, lá dentro, numa espécie de tempo ausente, expectante e transparente.
Somos só nós, envoltos numa auréola de já não existência indolor.
Não vemos o que nos cerca.
Existimos apenas, ali, por mais algum tempo.
Um para o outro. Fora de tudo e de todos.
A que permanece à porta sabe que, ali dentro se espera o momento da partida. Uma parte de si vai também; nunca te poderia abandonar. Não, agora!

Mas reparo, também, na outra; a que está encostada na ombreira da porta, atenta, vigilante e contida na sua missão.
Está sempre pronta a entrar e a proteger-te.
Precisa de se distanciar para não ficar paralizada pela dor daquela que, lá dentro, te segura mão.

São duas, ali, naquele quarto - a que sofre uma dor sem nome e a outra que se protege daquela dor porque tem que ser forte e corajosa.

Este estranhamento, vou-o sentindo, mais e mais, agora.
Sou uma terceira que, ainda, não se encontrou.
Procuro.
Procuro-nos, ainda, nestes amores-perfeitos que falam de ti.
Procuro-me, nos olhos grandes e escuros do meu neto que me olham longamente, sem desviar o olhar.
E me sorriem.
Não há sombras tristes do passado, nesse olhar.
Gosta de mim, assim ...
Como se o tempo estivesse a começar, agora.
Estranho!


07 dezembro 2008



Voltei à janela da cozinha.
Era lá que fumava um cigarro quando o David adoeceu.
Debruçada naquele peitoril, sofri horrores de medo e tortura. Olhava em frente mas não via os caminhos, nem a erva, nem as laranjeira encostadas ao muro. Tudo era verde, menos a esperança que me tinham tirado, abruptamente, ...
Antes via vacas pastando e sobre o dorso das quais poisavam pássaros brancos.
Antes, ouvia, ao longe, o atravessar do comboio.
Antes, apercebia-me das flores amarelas salpicando o verde, no início da Primavera.
Antes, dava-me prazer debruçar-me na janela da cozinha.
Sentia o ar leve, cheirava o odor da erva e das flores...
O David gostava de trabalhar com essa paisagem pela frente. Inspirava-o. Lanchava na varanda do escritório, fronteiro ao fundo verde.
Durante a doença do David, esta janela serviu-me de amparo, na angústia que escondia.
Era lá que respirava mais fundo e chorava.
Procurava restos da alegria perdida.
Procurava força.
E coragem.
Hoje, olhei, novamente, com olhos de olhar, para a paisagem.
Continua verde.
As vacas continuam lá; com os pássaros poisados nas costas.
O rebanho pasta, mais ao longe. Há ovelhas pequeninas.
Duas negras, como sempre.
Iguais àquelas de que eu e o David gostávamos (nós, duas ovelhinhas negras...).
Agora, é-me indiferente.
Viram o David aqui chegar e partir e nada mudou.
A erva devia ter escurecido e perdido o tom verde da esperança.
Mas não; manteve-se igual.
O peitoril da cozinha é apenas o sítio onde, às vezes, fumo um cigarro.
Nada mudou ali; só eu.
Olho para um horizonte mais distante.



CAMINHOS

São atalhos meus caminhos lamacentos

Curtos tortuosos de humidade

Apertados são caminhos de lamentos

São cinzentos e chorados sem idade

-.-

Duma dor carecida de vontade

Salpicados de tortura como ventos

Fustigados de não quererem ser verdade

Não se avista neles luz são pardacentos

-.-

Da cor verde neles forço a qualidade

Salpicada de uma esperança ou de cimentos

Como força que me dá a liberdade

-.-

Fertilizo suas bermas de intentos

Olho ao longe horizonte que me invade

Nos caminhos lá se cruzam meus sustentos

-.-

Jaime Latino Ferreira
Estoril, 5 de Dezembro de 2008

04 dezembro 2008

Yo soy Maria de Buenos Aires



Mais um passeio pela FNAC.
Chove; o dia escurece cedo.
Fujo de que fazer, qualquer fazer útil aos olhares dos outros.
Dizem-me que não devo ficar em casa. E saio, embora continue, não em casa, mas num lugar espaço onde permaneço, mesmo ficando em casa.
O nevoeiro e humidade, que se instalaram, perturbam.
Certas imagens instalam-se, como sempre, dia a dia. E regresso, não ao ano que passou (porque já não estavas!), mas ao ano da mudança; ao ano em que deixei de ser, a 2006.
E relembro esta época, num misto de amargura ansiosa e entusiasmo receoso.
Revejo os concertos do Bernardo Sassetti, em Lisboa.
Percorro as ruas do Chiado, próximas do hotel, onde nos instalámos.
Viajo até aos Açores, para espectáculos do Drumming... As paisagens verdes das ilhas e o azul do mar agitado, sinto-os salpicados de incertezas.
Regresso aos sítios da minha infância, ao Alentejo, a Ourique e Castro Verde, para mais um concerto do Bernardo Sassetti.
Andávamos atrás de ti; eu e o Manel. Apesar de distantes, para não perturbarmos.
Dessas terras, onde fui feliz, guardo apenas nostalgia que senti, ao revê-las.
Nada podia voltar a ser o que fora. Nunca se regressa e, então, menos do que nunca.
Havia o antes, houve o durante e há o depois, este agora. Os caminhos já não se cruzarão.
Desapareceram e naquele que ficou, neste espaço onde me movo, abri novos caminhos.
São atalhos lamacentos, curtos, apertados, tortuosos, cinzentos e húmidos.
Vou alargá-los e salpicá-los de verde, quando puder.
Para que possa percorrê-los acompanhada dos amigos e de quem me quer bem. E são tantos!
Tenho tanta sorte em ter tantos, tantos amigos...
No entanto, as travessas que percorro são estreitas e sinuosas; mal chegam para mim, agora.
Assim me passeei, sozinha, pelos corredores da tua música e, agora, dos livros infantis do meu neto e seus pais.
Por vezes, vejo, nitidamente, uns auscultadores nos ouvidos e os teus olhos sobressaírem, por cima do corredor do jazz...
Era como eu te procurava, quando calhava irmos juntos e nos perdermos.
Na minha cabeça, permanecem sons familiares.
Como este que fui procurar - Yo soy Maria de Buenos Aires - Astor Piazzolla.
Tenho estas âncoras.

03 dezembro 2008

Um amor-perfeito



Mudei de escritório, nesta casa imensa em que me perco e onde não encontro um lugar tranquilo.

Um lugar sem medos; sem som do passado.
Agora que a minha irmã já não precisa e o meu neto aí vem, mudei.
Mudei para o escritório inicial do David. Um escritório que ele tão bem planeou para se lançar nos projectos que sempre lhe fervilhavam na cabeça.
Tinha, tenho um solário virado a Sul.
Avisto o Monte da Virgem; lá está a minha escola.E mais atrás, invisível, o mar.
Há uma buganvília que plantei para lhe dar um pouco de cor. O David gostava da sobriedade.
Apesar de não ter cuidado dela (o David adoeceu ao fim de uns meses de cá estarmos), floriu.
A aparelhagem de música é a mesma. Tinha um CD. Mais uma miscelânea de sons para uma amiga.
Algumas músicas são recentes; como se tivesse sido gravado ontem.
Sempre a mesma sensação de inverosimelhança!
No leitor que levava para as sessões de quimio, mais um CD.
Era o que o meu filho ouvia.
Ouvi. Não conhecia.
Passeio-me, sonâmbula, por estes vestígios de alguém que por aqui passou.
E que deixou música, muita música, guitarras, bateria, um clarinete, sons, projectos de espectáculos, filtros de luzes de mil cores...
E, hoje, veio um amor-perfeito de Lamego.
Ao ler o comentário, estremeci de doçura.
E quase sorri.
E senti-me lá, naquela praça junto à Catedral.

Há lá um teatro renovado, por onde o David passou.
Deixou lá uma semente de sonho.
Dos sonhos dum menino de sua mãe...
Que receia voltar a sonhar.




A SÍNDROME DO NATAL

Serias Tu ...!?

Serias, és com certeza Tu como o és hoje assim a cru!

Como Te percebo nessa neura, nessa depressão natalícia, prova, afinal e por paradoxal que possa parecer, de quão intensamente o vives, ao Natal, vivias como o continuas a viver, agora afogada na dor e na saudade, na perda de quem por contraste ao que se celebra, ao nascimento transformado em euforia consumista a todos nos desdobra em azáfama adicional imposta com uma antecedência de meses como quem, cinicamente diz que o natal é todo o ano (!?), nos impõe uma celebração pagã a acudir ao aperto da economia quando a nossa, a do cidadão comum, se vai, mais e mais sufocando num aperto insuportável!!

Como Te percebo ...!

Não que o Natal não devesse ser todos os dias e universal como se vai, contraditoriamente, ao mesmo tempo tornando ...!?

Mas quando a tristeza e a mágoa, a insuportável perda nos afoga ...!?

Esse fingir de felicidade esmaga-nos e interpela-nos, choca-nos na plástica de felicidade imposta diante da miséria e da crueldade que assolam o mundo!!!

De quantos nascimentos perseguidos e sem abrigo, no mundo, têm lugar;

De quantas crianças são apanhadas nos fogos cruzados sem que, ao menos, possam vir a conhecer a idade adulta;

De quantas famílias destroçadas, homens e mulheres dizimados, mutilados e violados ou dos mais velhos transformados em trapos que se descartam;

De quantos nada têm para comer, com que subsistir no dia-a-dia, esqueléticos e famintos na adoração da morte ou numa residual esperança de viver!

Como Te percebo bem!!!

De como se perdeu toda a sobriedade susceptível de conceder soberania ao simbólico, à solidariedade e à entre-ajuda sem humilhações;

De quanto impera uma alegria superficial e sem substracto, um fingimento eufórico de ganância, de fuga em frente e de endividamento crescente das famílias ...

Oh se Te percebo ...!

E de como será celebrar o Nascimento quando, afogados na morte, por ela somos esmagados!

Minha Querida Amiga, não é derrota admiti-lo ...

Como Te percebo e Contigo me solidarizo.

Jaime Latino Ferreira
Estoril, 3 de Dezembro de 2008


Fugi da escola.
Por uns tempos, poucos dias.
Não aguento o barulho. Não aguento ver tanta gente à minha volta. Não aguento os sorrisos de Natal que, depois, serão os mesmos sorrisos de sempre.
A alegria dos outros incomoda-me.
Porquê eu?
Em casa, não terão uma ausência pesada, à mesa, mais uma vez.
Sinto-me egoísta. Não sou assim...
Não era assim.
Sei que me compreendem; a amizade não se esvai assim.
Não quero que tenham pena de mim.
Não quero ser uma visão que perturba; a imagem da morte está associada a mim.
Quero que o Natal passe depressa.
Quero que o ano passe.
Passas para quê?
Será mais um...sem ti.
Vou pôr uma luzinha na rocha de Moledo. Durará toda a noite; vê-se do mar.

Mesmo assim, fiz uma árvore de Natal pequenina e com luzes a piscar para o meu neto. O que é para o meu neto é também para o meu filho e a minha norinha.
E o Manel e os meus pais e a minha irmã e a Diana.
Merecem.
Não têm culpa da minha dor, da minha revolta, da minha tristeza a transbordar de saudade.
Têm que ter direito a um pouquinho de felicidade.
Eu posso dar-lhes um pouco desse pouquinho.
Preciso de uns dias de nada.
Vou deixar que as imagens flash me percorram e se chorar, que seja nestes dias de nada.
Que seja sem que seja necessário controlar as lágrimas.
Porque essas, essas continuam a correr...agora, mais do que antes.
Com mais dor do que antes.
Mais pesadas do que antes.
Com mais espanto do que antes, porque tudo me parece inverosímil.
E o arrepio assalta-me.
E não percebo.
Não percebo como tudo aconteceu.
Há coisas que não podem acontecer!
E se acontecem?
Vem a escuridão e o abismo.
Vem o não saber por que caminho seguir.
Nenhum serve.
Todos são caminhos inóspitos; nenhum me leva de regresso ao já vivido; em nenhum o teu sorriso me acolhe.
Não há como fugir, não há por onde escolher.
Vou...
E as imagens passam como os beijos e as cenas cortadas do "Cinema Paraíso".
Cenas que não anotei em diários, mas que vêm, agora, nítidas, apesar de entrecortadas.
É Primavera. Um fim de tarde quente.
Vejo-te regressar de uma entrevista em Lamego, de fato, gravata, alto bonito.
Entusiasmado pela promessa de aprovação de um projecto cultural para o novo Teatro. Sorris-me, ao entrar. Trazes as lembranças gastronómicas do costume.
Eu estou na cozinha...
Ninguém suspeitou do cateter no peito. Não o revelaste a ninguém.
Confidencias-me que podem não te aceitar, devido à doença que combates.
E eu entendo, embora não compreenda ou aceite que possa haver gente que pense assim.
Não interessa. Estás bonito, alto, elegante. O fato escuro fica-te bem.
Foi um dia feliz.
Agora, apesar das lágrimas, chego a sorrir.
Soubemos, mais tarde, tarde demais, que o projecto fora aprovado.
Choraste lágrimas de emoção e alegria, quando veio a notícia
"Mais uma vitória!!!" - disseste com a voz embargada.
As bilirrubinas já muito altas, a adormecerem-te esses olhos toldados de verde.
E batemos na mão um do outro - "Dá cá mais uma!"


Seria eu, essa que lutava contigo e que partilhava todas as vitórias e todas as derrotas?
Seria eu, esta que agora foge?
Esta que se esconde?
Esta que tarda em acordar de tão dolorosa derrota?

28 novembro 2008

Esconderijos



Procuro-me.
Ando por aí, espalhada em gavetas, em caixas de papel, em diários dispersos.
Ando por aí, perdida nos quartos onde cheiro restos dum tempo que se fixou, imóvel, nos meus olhos, na pele.
Perco-me, por aí, por estradas e ruas que percorro, na fuga de mim própria, numa imitação de actividade e de urgência, para que não me quede em nada.
Finjo que me movo; dentro de mim, agitada, estou parada.
Páro a cada esquina da casa; onde cada foto conta uma história.
Disperso-me por entre projectos inacabados ou nem mesmo começados, apenas sonhados.
Refugio-me entre sons do dedilhar de guitarras, dum sopro de clarinete ou duma voz mais rouca.
Sigo, com os olhos perdidos, o rasto branco dos aviões que rasgam o céu amarelo do lusco-fusco.
Ainda, nos vejo, em cada um, cansados mas persistentes na busca duma brecha no destino.
Refugio-me nesse teu "Redondo Vocábulo", numa sala de espera..., nuns degraus de um quarto de danças, onde a fúria cresce, ... clamando vinganças.
Ando por aí, num tempo e espaço sem nome.
Parti-me em mil pedacinhos de dor e lágrimas que vou espalhando, dia a dia, por aí.
Nada mudou.
Vejo a distância separar-nos e eu tento resistir ao curso do tempo.
Não me empurrem.
Ainda é cedo para recolher dentro do coração toda a saudade e memórias que deixaste ... dispersas, por aqui.
Por isso, ando por aí, seguindo os teus passos, as tuas imagens tão nítidas.
Procuro-me, por aí.

23 novembro 2008

"Navegar é preciso, viver não é preciso." Caetano Veloso



Cansaço.
Tanto cansaço!
Cansaço pela contínua e repetida perplexidade perante os sofás vazios; perante o silêncio que substituiu a música e os teus sons; perante o lugar de alguém que se ausentou, à mesa; perante o cheiro, o teu cheiro, que se mantém no quarto que ficou vago; perante a ausência do movimento da tua silhueta ao descer as escadas à hora do jantar; perante um bengaleiro onde já não estão os teus Kispos ou a tua sacola de pôr a tiracolo; perante o espaço vazio da secretária, onde pousavas a agenda de cada ano; perante o quadro magnético da parede, onde não há mais registos de espectáculos.
Lá só escrevi - 16 de outubro "Mamã, vamos dançar?"
Mas a letra é a minha.
A forma da tua letra, tenho-a desenhada na mente.
Letra vincada, letra um pouco torta, um pouco infantil, letra de quem escreve com a mão esquerda.
Embora tocasse guitarra com a direita.
Numa constante dualidade - ingenuidade e auto-confiança.
Ando cansada de levar cada dia ao fim do dia.
E não me revejo na que vejo que era antes.
No tempo de lá, a outra era uma fera que lutava, do nascer ao pôr do sol, pela sua cria. Decidida, silenciosa, risonha até ao escuro da noite.
Esta,
a que acorda perplexa para dureza da vida,
é um animal ferido de morte
que se esconde em si,
que se protege dos olhares, para lamber as feridas.
Até ao amanhecer.
Onde, antes, era o anoitecer.





Fui envenenado

Fui envenenado pela dor obscura do Futuro,
Eu sabia já que algo se preparava contra o meu corpo,

agora torço-me de agonia

nos versos deste poema.

Esta é a terra outrora fértil que os meus dedos dilaceram.

Os meus lábios são feitos desta terra,

são lama quente.

Vou partir pelo teu rosto para mais longe.

A minha fome é ter-te olhado

e estar cego. Agora eu sei que te abres para o fogo

do relâmpago.

Tenho a convicção dos temporais.

já não sei nem o que digo nem o que isso importa.
Guia
dos meus cabelos rasos, da melancolia,
da vida efémera dos gestos.
Nesse dia fui melhor actor do que a minha sinceridade.


A cesura enerva-me no estômago.

Cortei de manhã as pontas dos dedos mas sei já que

elas crescerão de novo a proteger as unhas.

Talvez a vida seja estranha.

talvez a vida seja simples,

talvez a vida seja outra vida.


A linha branca da Beleza é a minha atitude que se transforma.

A violência do sono sobe

sobre o meu conhecimento.


Fui algures um horizonte na secessão das pálpebras.

Nuno Júdice

18 novembro 2008

Não sinto!




Quase sem pensar, sei, ao acordar que é de dezoito o dia.

Quase sem pensar, sei que as forças, neste dia mais do que nos outros, vão soçobrar.

Este zumbido na cabeça aumenta e tudo à volta se resume a sombras sem cara que passam por mim.

As vozes que ouço vêm de longe e não lhes entendo o significado, embora responda.

É assim que quero andar, porque só assim consigo avançar.

Sabendo que é por um filho que parte, a cada novo dia, e deixa atrás de si uns olhos que o procuram...

As luas passarão e eu continuarei à procura.
Dezembros seguidos de Janeiros e mais outro Abril e outro e outro; não vão desistir os meus olhos de procurar.
Uma feição, um som, uma cor de olhos, uma gargalhada, uma certa forma de andar,um sorriso e uma tristeza no olhar...

Em vão!

Mas não deixam de procurar.

Faço-o sem pensar.

Hoje.

Quero que não me perguntem nada.

Não saberei responder...

Que não me consolem.

Não está nas vossas mãos...

Que não tentem convencer-me de que vai mudar.

Não vai, seguramente...

Que não olhem para os meus olhos vermelhos de chorar.

Não os sinto...





PARA DENTRO

Como serão as entranhas sem filho
Perdido
Despido de cá e lá
Lá longe no Mundo
Andar de andarilho
Como será
Óh como será

-.-

Como será o vazio sem sentido
Sentindo-o comigo
Sem ver o que sinto
Ao vê-lo despido
Sem querer o castigo
Como será
Óh como será

-.-

Olhando para dentro não sei o que digo
Se tudo o que sinto e trago escondido
Neste labirinto
Perdido e que finto
Sem dar-se por extinto
Como será
Óh como será

Jaime Latino Ferreira
Estoril, 17 de Novembro de 2008

17 novembro 2008

Uma certa forma de prisão




Não.
As minhas ausências temporárias não significam que ande bem ou, mesmo, melhor da saudade que tomou conta de mim.
Não se melhora duma saudade desta dimensão.
Apenas me absorve de tal modo que até escrever se torna, já, inútil.
Nem as fotografias, nem as músicas, nem os textos, nem as palavras ou os gestos mil vezes recordados, nem os diários me serenam.
Nada abranda e, a cada momento de inacção, me sinto perto de novo e cada vez mais fundo precipício, próxima de desistir, de me afundar, de cruzar os braços...e chorar.
E, então, choro salgado. É como se toda a água do mar onde te deixei me percorresse os olhos e brotasse sempre e sempre e sempre.
Faltas-me ... e é tudo.
Nada a perceber ou compreender ou esquecer.
O tempo corre, mas eu permaneço entre telas brancas e virgens que nada conspurca.
Perante os meus sentidos, debruçados para dentro, continuam a passar as sequências dos dias e dos caminhos que percorremos; continuam a desenrolar-se os combates que travámos; continuam a sorrir tenuemente algumas boas novas que nos empurraram para a frente; continuo a afundar-me em cada ilusão, logo e cada vez mais cruelmente, desfeita; continuamos a apertar as mãos num acordo tácito e mudo de que vai ser preciso ter coragem.
E tivemos tanta coragem; tu tiveste tanta, tanta coragem ... a chegada é sempre igual...

Nestes últimos dias, tem-me vindo à mente uma conversa brincalhona que o David tinha comigo.
Dizia-me, ele " Apesar de mãe galinha, portaste-te muito bem quando o Sérgio saiu de casa. Não choraste, não fizeste "cenas". Como eu passo o dia por aqui, contigo, vai custar-te muito mais, quando eu sair. Vai-te mentalizando!! Está a chegar o meu dia!"
E sorria-me com ar gozão!
E chegou esse dia.
E nada foi como sonhara.
Ficou prisioneiro, aqui.
E eu com ele, com os sons da música dele.

13 novembro 2008

Diário


Óleo da minha amiga Lucília Figueiredo


Terminei o livro

diário

percurso da tua doença

nossa vivência

da tua coragem

da minha luta

do teu carinho

da minha secura de olhos

das noites em branco

das mãos que se uniram

dos teus passos determinados

da música sempre presente

de desentendimentos

de calor humano

da solidão

de um convite para dançar

já fora do nosso tempo

da libertação no mar.


Não sou capaz de o reler... Para já!


Fio

No fio da respiração,
rola a minha vida monótona,
rola o peso do meu coração.

Tu não vês o jogo perdendo-se
como as palavras de uma canção.

Passas longe, entre nuvens rápidas,
com tantas estrelas na mão...

— Para que serve o fio trêmulo
em que rola o meu coração?

Cecília Meireles

11 novembro 2008

Corredores nocturnos




Deserto estava o pátio à noite, no escuro frio de Novembro.

Sem os risos, sem o tilintar de copos, sem os sons do David oferecidos ao homenageado, sem os gestos de ternura imensa, sem as suas gargalhadas cristalinas verdes dum sonho ... talvez concretizável.
Onde se esconderam os raios de sol, no entardecer desse Julho distante?
Deserto continuou, pela manhã iluminada pelo sol tímido deste Outono.
Deserto ficará e silencioso e repleto de palavras mudas de saudade estrangulada.
Não há cores, nem sons, nem passos que o percorram.
Nem mais gestos de ternura.

Quedo-me na luz que se apagou.
Olhos fechados, afundada no escuro.
Onde estou que não me vejo?
Percorro corredores nocturnos e as imagens esfumam-se, no pátio deserto.
As lágrimas...




DESERTO


Seco

De areias escaldantes

Que enregelam pela noite

Filtra-se na mágoa

De um lugar granítico

Pátio de um desnorte

Que avança às arrecuas

Perdido de uma mão

De outra querida

Em brasa infernal

Que afinal

Sustém o porte

E como dantes

Interroga como ser

O que tu cantes

-.-

Canta Amiga minha

e não te espantes

-.-

Jaime Latino Ferreira
Estoril, 10 de Novembro de 2008