São dias como os outros.
Nem mais nem menos do que todos os outros que se vão sucedendo a outros tantos e deixando espaço aos que se seguirão.
E passarão de forma demorada, esperando a noite.
E à noite, aumenta a dor fingida de cansaço.
Da lonjura dos dias.
Já vazios os que passaram, temerosos os que virão e que, por sua vez, se sumirão esvaziados pela dor.
Dor indescritível, imaterial, cruel, vermelha da cor do sangue ... de que o único traço visível são lágrimas que, sem que as chame, escorregam.
Estes são dias como os outros...
Apenas mais longos, mais densos.
E esta dificuldade em respirar naturalmente.
Esta vontade de fugir ou de dormir.
O sono ou fuga - tanto faz.
Esta vontade de não olhar para não ter que ver; ou não ver para não ter que ser olhada.
Sobretudo, não ter que ser olhada.
Quero permanecer opaca.
Para que não vejam que, do passado, não sobraram nem entusiasmo embrulhado com laços nem sorrisos misturados com champanhe nem um cheirinho a canela.
Da ironia com que festejávamos o Natal, sendo contra o Natal ... restam contos do David.
Sobra um sorriso tímido.
O Espírito do Natal
O Natal é uma época tão bonita, é o fenómeno social que junta mais pessoas em estado psicológico considerado feliz, a seguir ao Dragon Ball Z. Os dinossauros da família saem das suas cavernas e vêm ver os seus filhos cosmopolitas e os seus internetos. O Natal, hoje em dia, já não é só o Natal. O Natal é O Natals no plural. Há uma razão óbvia, em vez de demorar um dia e meio, esta festa demora quatro dias.
No primeiro dia - o mais apático de todo o ano - paira no ar toda aquela expectativa: “ Será que o queijo da serra é bom, este ano?” , “Será que o Tio Felismindo vai notar que eu não comprei nada para ele?”. É também o dia de quebrar com a dieta e até o jejum, que se vinha fazendo desde o inicio do mês. É a altura em que as pessoas comem mais e melhor durante um tão curto período de tempo. É um sprint gastronómico suicida.
Como o Natal é feito estrategicamente para as crianças, os presentes vêm logo a seguir ao banquete. Depois dos adultos terem comido e estarem cheiinhos, os filhos podem receber as prendas sem necessitarem de dar mais beijos de agradecimento. Só uma grua levanta os dinossauros depois de comerem.
Relativamente à variedade das prendas, há muito para analisar mas vamos cingir-nos às prendas que o menino da família recebe. Em primeiro lugar está a prenda clássica do Natal que é a dos pais para o menino. Esta prenda varia consoante as notas escolares e será sempre um clássico porque, quer pelo entusiasmo quer pelo descalabro destas, causa sempre sensação.
Depois vêm as prendas candidatas a serem clássicas: o brinquedo estrambólico que o Tio mais novo e vanguardista trouxe do estrangeiro, onde está a tirar um curso de design aplicado às novas tecnologias de construção de candeeiros para casa de banho; o livro de título duvidoso que ninguém conhece mas que deu um clássico do cinema mudo oferecido pelo Tio que-já-era-velho-quando-eu-nasci-e-então-agora-nem-faço-ideia e, por fim, a velinha feita pela priminha mais nova que é a esperança da família porque tem-muito-talento-e-um-dia-vai-ser-famosa.
No dia 25 de Dezembro, dia de Natal, voltamos à comezaina absoluta. As palavras: colesterol, triglicerideos, ácido úrico e por aí adiante são banidas. Todos se lambuzam incondicionalmente ao almoço para depois dormirem a sesta. Quando acordam voltam para a mesa para comer mais.
No dia seguinte, a saga continua. É preciso proceder à árdua tarefa de dar um fim aos restos. Mais um dia a ruminar. Como a oferta, neste dia, já não é tanta como nos outros, a procura torna-se violenta. Como, supostamente, estamos numa sociedade moderna, esta violência já não é física. Trocam-se bocas indirectas acerca das prendas descabidas e mal imaginadas. Devido ao álcool - não só comer portanto- desabafam-se polémicas familiares já mortas e enterradas: “... ai, porque é que eu casei contigo? Estava muito melhor com o Carmindo Adrúbal da Pereira Carroça!”, “... pois! esse bêbado, esse contrabandista de cabras e queijo curado!”. E por ai adiante. É o dia mais interessante.
Por fim, no último dia, depois de Jesus Cristo já ter feito dois mortais encarpados na cruz, já não há mais nada para comer. Restam apenas rabanadas e alguns sonhos. Mesmo assim, a família reúne-se. Mas, desta vez, é para berrarem uns com os outros sobre heranças antigas, mas a verdade pura e dura é por já não haver comida.
O Natal é portanto uma festa extremamente bonita mas não é uma festa religiosa, como todos pensam. O Natal é mais uma festa de gastronomia, a juntar ao Carnaval com a sua feijoada à brasileira, à Páscoa com a sua doçaria e, claro, ao 25 de Abril, com o carro das farturas.
3 comentários:
A CRUZ
Clama a dor pulvilhada de canela
-.-
No cruzamento do Amor
De uns pauzinhos cruzados
Com um A de outros pintados
-.-
Embebem-se destilados
Na cor do negro carvão
Onde escorrega um senão
Opaco e em combustão
-.-
De um sofrimento incontido
Com medo dos que se dão
Olhado por já ter sido
Resgatado no perdão
-.-
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 18 de Dezembro de 2008
Isabel,
Voltarei para comentar mais acordada e mais lúcida, mas mesmo lendo um pouco cansada esta história do David deixou-me mais uma vez maravilhada pelo seu talento e pela sua lucidez, pelo fino e acutilante sentido de humor.
Gostei muito também do seu texto, a mesma forma de sentir, a mesma coerência e como eu a entendo...! Cada vez mais o Natal é um dia como outro qualquer.
Beijinho grande.
Branca
Isabel, bom dia. Este seu post, é dos mais tristes que tenho lido!
Gostava tanto de poder aliviá-la na sua dor...no seu desencanto! Mas sei que não posso, só me resta dizer-lhe que vou estando por aqui...a lê-la.
Um bjs,
MM
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