31 maio 2008

Estou aqui...


Estou aqui, neste cantinho guardado para ti.
Coração de mãe é grande... Divide-se em quantos quartos forem necessários.
Hoje, passou cá mais um daqueles a quem ajudaste a crescer - o Emanuel, da casa da Música.
Veio buscar material para saber como fazer (mais ou menos) as tuas luzes. Disse-me que não chegaste a explicar-lhe as do Frank Zappa.
Emprestei-lhe com a condição de gravar e devolver.
Não posso perder nada, já que nada posso acrescentar.
Falou-me de ti e da ajuda que lhe deste!
Claro, como sempre (digo eu!).
E ofereceu-me um CD do grupo dele "Urban War". Tem uma dedicatória para ti, impressa. Todos a lerão; faz parte da contra-capa.
Foste mais, muito mais do que imaginavas. Ou talvez soubesses...e, por isso, fosse grande a tua força e serenidade.
Chegar a colher o que se planta não é para todos.
Foi o meu bocadinho de ti, no dia de hoje.




Regressamos sempre aos velhos lugares aonde amámos a vida. E só então compreendemos que não voltarão jamais todas as coisas que nos foram queridas. O amor é simples, e o tempo devora as coisas simples.
José Eduardo Agualusa

Os abraços da noite



Hoje é noite desperta.
Já me deitei, já me levantei...
Não consigo evitar.
Regressei subitamente à noite de 12 de Outubro, uma sexta-feira, a última em que dormiste cá em casa. Já com a tua cama no meu quarto, caso me chamasses.
Deste-me um "abracinho da noite" e fizeste-me festas na cabeça, sorridente e sossegado.
Dir-se-ia que, nesse momento, se tinham invertido os papéis.
E assim ficou esta casa.
Cadeiras vazias, secretárias sem dono, cama por desfazer, estores por abrir, quartos sempre arrumados, sol inútil a bater nas varandas.
Um som pesado de ausência muda e persistente.

30 maio 2008

Talvez o calor de Agosto



Os dias continuam na ânsia de passar, sem que me aperceba da sua fuga do passado que já não nos pertence.
Remexo nas cinzas, em busca de algum calor teu, que permita aquecer os meus dias que, ainda, estão para vir.
Esta sensação de derrota não se partilha. Fui à guerra e perdi.
Continuo ancorada no divagar que não sossega o sono; ausente - das ruas por onde passo, das flores perfumadas das minhas laranjeiras pequeninas, das cores das cestas de cereja na berma da estrada, dos recreios da escola que me empurram, das conversas que me soam de longe (ainda que perto), das lágrimas que caem sem que as chame,...
Ainda não cheguei; percorro um trilho longo e que desconheço.
Alteraram o meu percurso bem traçado e cada passo em frente traz consigo um estranho cansaço.
Tenho que o percorrer sozinha, apesar do insustentável peso da saudade que transporto.
Apesar das mãos que me estendem.
Apesar da pressa com que me chamam.

Talvez o calor de Agosto...



Ver-te é como ter à minha frente todo o tempo
é tudo serem para mim estradas largas

estradas onde passa o sol poente

é o tempo parar e eu próprio duvidar
mas sem pensar

se o tempo existe se existiu alguma vez
e nem mesmo meço
a devastação do meu passado


Ruy Belo

27 maio 2008



Abril acabou e Maio está, finalmente, a terminar.
Tudo, agora, está associado a tudo, antes.
Em 2007, foram tempos de esperança e de ilusão; quase de regresso ao possível, de delírio por novas oportunidades que se abririam depois da desejada operação ao fígado.
O David era um rapazinho de Abril e a personificação de todos os ideais do 25 de Abril - solidário, justo, humano, corajoso, defensor de causas.
E com uma enorme capacidade de sonhar... e de se entregar.
O que foi benéfico para ele, durante a doença - dizem-me!
E eu só posso acreditar porque é a única maneira de prosseguir na minha rota, indefinida e penosa.
Transporto comigo sonhos antigos que ficarão por concretizar.

A flor dele era o cravo vermelho, que, às vezes, ponho em frente à rocha de Moledo.
Em casa, haverá sempre um cravo vermelho, por perto.
O cravo vermelho é a minha saudade.
Chama-se David.


Num deserto sem água
Numa noite sem lua

Num país sem nome

Ou numa terra nua


Por maior que seja o desespero

Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.



Sophia de Mello Breyner Andresen

22 maio 2008

À minha procura




Não sei se o tempo existe ou se tudo não fará parte de um sonho em que alguém nos sonhou e, fora dele, não há existência própria.
Fui abandonada nesse sonho interrompido.
Olho em volta...
Fiquei lá eu e outros, à minha roda. Mas separados.
Desconjuntados os fios com que alguém nos manipulava.
Não sei como regressar.
Nem refazer a meada.
Tacteio em direcção a sons que reconheço.
Ouço a tua música, ao fundo.
Que se afasta.
E afasta, afasta sempre...
Em suspenso.
Nada…

21 maio 2008



Hoje chove. Os dias de chuva suportam-se melhor.
Cada vez mais, o calor me sufoca; gosto da penumbra.
A Primavera e o Outono eram as estações preferidas do David. Sol e luz, mas não calor.
Pura e triste coincidência, talvez...
Vai renascer em cada Abril que eu passe.
Morreu num Outubro.

Estou sempre aqui, David. Não me vou embora, mesmo que não abra a porta desta casa.

Terceiro direito

O inferno, aqui. Deve ser normal.
Um choro de criança, no andar de cima,
sobrepõe-se à música
que não ouço
e que é talvez de Brel

(nenhum quarteto de Mozart serviria agora)

Há dias assim.
Os guindastes
da insónia não seguram a voz,
desastre
anunciado pela teimosia
de pássaros
suburbanos.
Coisas de muito esquecer,

se eu pudesse.

Mas o corpo hesita,

volta a ser o envelope vazio
de um destino por assinar - e que nada tem,
neste momento, de «literário».


Sinto a luz na garganta, sufoco discretamente,
alheio ao excesso
de imagens
que me traz o dia.

A alegria, se quiserem,
fica para mais
tarde.
Aqui, de novo, morre-se muito mal.


Manuel de Freitas

20 maio 2008

Gostava de adormecer...



Já escrevi mais uma página do livro. Uma, de cada vez... para não custar tanto.
Já fiz mais metade de mais um casaquinho.
Já revi os House, as Patologistas, os Boston Legal...
Já acabei o "Segundo Livro de Crónicas, do António Lobo Antunes; já terminei o "Terceiro Livro de Crónicas" do António Lobo Antunes; já iniciei o livro da Maria Filomena Mónica; pelo meio, li mais um ou dois contos da Flannery O'Connor...
Mas a insónia não se rende.
Apago a luz e recomeço a (re)percorrer os corredores do hospital. Vou, novamente, ao bar, (re)tomar mais um café e (re)fumar dois cigarros e regresso sobre os meus próprios pés, até ao quarto piso.
O Manel ou a Olga ficaram lá a fazer companhia ao David.
Sozinho, nunca...
Reconheço as caras dos porteiros e dos seguranças que me reconhecem de passar por ali, vezes sem conta, desde sábado.
E vou ainda mais atrás porque hoje, no ano que passou, fizeste a última quimioterapia e foi um dia de braços caídos...de noite em claro.
Tinhas 5 meses para receber todo o apoio, amor e carinho que te pudessem dar, sem saber...
Recebem-se na medida do que se dá. Eu recebi tudo a dobrar, sem esperar nada.

Ouço os galos a cantar.
Talvez consiga, agora, adormeça.

19 maio 2008

Olho-me, do passado. Ou olho a outra do passado?



Não sinto vergonha das minhas emoções nem de manifestar os meus sentimentos.
Que se espera de qualquer mãe que perdeu um filho?
Que engula em seco?
Que não chore?
Que não se sinta perdida?
Que não fale dele?
Que faça uns meses de luto e siga em frente?
Que ponha a máscara, ao sair de casa?

As pessoas vão crescendo, frias por dentro, sem um olhar atento para as outras que as rodeiam.
Vou-me apercebendo, agora, de que há bastantes mães que sofreram a perda de um filho.
É uma situação mais comum do que eu imaginaria… Vou conhecendo algumas.
Cada uma sofre, em silêncio, a sua dor, inigualável. Não é passível de partilha.
Somos egoístas...na dor.
Percebe-se, no olhar, a tristeza profunda que escavou e se instalou.
Cada filho é único, diferente de cada outro ... e a perda irreparável.
Uma parte da nossa carne foi arrancada e a ferida permanece aberta, por cicatrizar.

A minha reabre, sempre, ao pôr do sol e avança, noite dentro, quando o espírito fica mais solto e só já o silêncio me distrai.
Diz-se que se sentem os braços ou as pernas, muitos anos depois de terem sido amputados – membros fantasmas.
Serei um fantasma vagabundo, sob o sol do dia, e que vive, realmente, de noite, despojado já do lençol com que se cobre?
Ou será o contrário? Ainda não distingo.
Sei que sou duas.
Tenho (não quero dizer "tive") dois filhos!
Compreendam que tenho que ser duas.
Desde que não nos exijam mais do que é possível e façam de conta que não vêem uma ameaça de lágrima, no canto do olho de uma de nós, aprenderemos a coabitar.
As duas que somos, ainda, percorrem labirintos; uma não procura a saída.



...palavra de honra que deviam chover lágrimas quando o coração pesa muito.

António Lobo Antunes

18 maio 2008

Uma folha de trevo




Ainda tenho, bem guardada, uma folha de trevo, daquelas que dizem que dão sorte.
Alguém ma deu, algures e num tempo indefinido.
Sei que a guardei.
A folhinha cá anda; o teu quarto está vazio...


Nunca mais
Caminharás nos caminhos naturais.
Nunca mais te poderás sentir

Invulnerável, real e densa -

Para sempre está perdido

O que mais do que tudo procuraste

A plenitude de cada presença.


E será sempre o mesmo sonho, a mesma ausência.

Sophia de Mello Breyner Andresen

17 maio 2008

Adormeceste.



Amanhã, em Outubro, não acordaste.
Fechaste os olhos, depois do abraço da noite, mas não houve o sorriso da manhã.
Mesmo triste ou cansado, houve sempre um "olá", ao acordar.
Adormeceste longamente.
Enquanto eu dormitava, ali, ao lado, atravessaste a ponte sobre o regato. Fiquei na margem de cá...
Tinha de ser assim?



Um Rosto

Apenas
uma coisa inteiramente transparente:
o céu, e por baixo dele a linha obscura do horizonte
nos teus olhos, que pude ver ainda
através de pálpebras semicerradas, pestanas húmidas
da geada matinal, uma névoa de palavras murmuradas
num silêncio de hesitações. Há quanto tempo,
tudo isto? Abro o armário onde o tempo antigo
se enche de bolor e fungos; limpo os papéis,
cartas que talvez nunca tenha lido até ao fim, foto-
grafias cuja cor desaparece, substituindo os corpos
por manchas vagas como aparições; e sinto, eu
próprio, que uma parte da minha vida se apaga
com esses restos.

Nuno Júdice

16 maio 2008

Tristeza não é um nome abstracto



Ensina-se que tristeza, solidão, saudade...são nomes abstractos.
Mentira! Para quem os sente, são bem concretos e pesados. Excessivamente!
Enchem-nos tão completamente, que não sobra espaço para mais nada.
Só com muito esforço, é possível dar a sensação de que se vive.
Só com muito esforço se é capaz de distinguir a luz do dia, da escuridão da noite. Cá dentro não há nascer nem pôr do sol; apenas uma penumbra de nevoeiro mais ou menos cerrado.
Tudo continua mais ou menos desfocado e envolto em telas de saudade e medo.
A saudade, compreendo-a.
Mas o medo ... porquê?

14 maio 2008

Ainda não cheirava a castanhas assadas na rua!



Deito-me.
Ando a ler o Segundo Livro de Crónicas do António Lobo Antunes. Tem uma sensibilidade que escapa ao écran televisivo. Já o tinha visto, numa "conversa" no Porto 2001 e identifiquei-me com aquele estilo de "Desde que não me chateiem muito, vou respondendo, mas não quero demasiada intimidade!"

Vou lendo sempre até ter a sensação (sempre a mesma) de que posso dormir. Já tomei as pastilhas... Devo conseguir dormir.
E apago a luz. Então, a escuridão e a solidão da noite agigantam-se.
Abre-se a porta desse triste paraíso longínquo da saudade, fecho os olhos...

Mas o David chama-me; e vou saber o que quer. Como sempre fiz, a qualquer hora da noite, aqui ou noutro lugar qualquer, por onde andámos.
Chama-me da cama do quarto 24. O sol está alto, porque estamos a meio da tarde. O quarto é luminoso.
Pergunto-lhe se quer ir dar uma voltinha, pelo corredor até ao átrio principal. Sorri-me e diz "Pode ser!".
Sento-o na cadeira de rodas, penduro a botija de oxigénio nas costas da cadeira.
E lá vamos nós. As enfermeiras sorriem-nos e nós sorrimos, também.
Sorrimos, sempre, os dois e piscamos o olho um ao outro, como se guardássemos um segredo que não desvendamos. É um truque nosso...um pacto silencioso, para não termos que dar explicações.
Somos uma mãe e um filho serenos, no amor que sabemos que os une. Nunca deixaremos que o outro fique só.

O David encosta a cabeça num dos meus braços, para se apoiar. Conduzo com o outro.
Paramos um pouco, vê-se o Porto. É uma cidade bonita, cheia de sol, com ameaços de rio ao fundo, a desaguar no mar. É um Outubro quente.
A Carla sai do elevador. Vem visitar-nos. O David sorri à sua cunhadinha. Sempre a recebeu com o seu mais belo sorriso. Diz-lhe qualquer coisa simpática, que não recordo.
Ela também lhe sorri, com a doçura que lhe é habitual, e elogia-o por ter vindo dar um passeio.

Mas o David cansa-se, quer dormir um pouco mais. As pálpebras pesam. E regressamos.
Nem meia hora demorou, aquele passeio. Mas ele está orgulhoso da sua força de vontade...

Agora que respondi à chamada do meu filho, talvez tente, de novo, dormir.
Já sem receio de que se apaguem estas imagens da minha memória. Não as quero perder no tempo. O tempo não é de fiar.
Entretanto, reparo que começou a chover.
Com chuva, durmo melhor.

"O que o AMOR exige reciprocamente é força plástica. Por isso há no amor, como na arte, tantos esboços gorados, sem a força suficiente para a execução."
Hugo von Hofmannsthal


12 maio 2008


(Imagem de Regina Guimarães)

Todos os dias são de retorno cíclico ao passado. Aproxima-se aquele em que, há um ano, se suspendeu a quimioterapia...
Depois o tempo de ilusão foi tão curto;... a respiração ficou suspensa.
Vivo nesse limbo, onde o espanto se derrama.
Ainda e talvez sempre, haverá incredulidade nos meus olhos.
Permaneço nos lugares e no tempo a que regresso, procurando outro impossível caminho alternativo.


Tal como antigamente

Tal como antigamente
tal como agora

essa estrela
esse muro

esse lento
esse morto
sorrir
nenhum acaso
nenhuma porta
impossível sair.


António Ramos Rosa

09 maio 2008

Os olhos do David




Não voltei a ver os olhos do David.
Fechou-os para adormecer no dia 16 de Outubro e o sol que iluminava o Porto e que entrou, no dia seguinte e no outro, pela janela do quarto, e o iluminava, ao pôr-do-sol, deixaram-no indiferente.
Da janela daquele quarto, só eu o via, com estranheza. Porquê tanto sol?
Não foi suficiente para o despertar da caminhada a que se abandonara silenciosamente, pelos caminhos traçados pela sua própria luz.
E, só hoje, quando mostrava a fotografia dele a um amigo e ele me disse que eram bonitos, me lembrei, especificamente, dos olhos
Tal como, muitas vezes, me lembro das mãos grandes e meigas, do sorriso doce e brincalhão com que brindava a quem queria bem e do bater do coração, quando encostava o ouvido ao seu peito e lhe dizia, na brincadeira “tens um coração forte de tourinho”.
As coisas de que uma mãe se lembra!!
Quando a tristeza se instala, em frente ao computador silencioso...

Ontem, não chorei.


Fotografia


Olho para o alfinete que, às vezes, trago ao peito.
Com uma fotografia.

O chapéu descaído que trazias

Protege-te do calor de Agosto;

Os óculos escuros escondem-te os olhos

Que eu sei de cor.


Ao fundo, o branco das casas reflecte o pôr-do sol

E o verde frondoso da encosta
envolve-nos

na carícia delicada que me fazes.

Recordo bem os teus gestos,

As tuas mãos

Os teus olhos verdes de vencedor

O teu sorriso meigo…


Agora, tristemente,

que passou um caudal de tempo

Impetuoso

Sobre esta fotografia

Estou sem vontade de fingir.


Isabel

07 maio 2008

A raiz do pensamento...não há machado que a corte!


Já não me importo

Já não me importo
Até com o que amo ou creio amar.
Sou um navio que chegou a um porto
E cujo movimento é ali estar.

Nada me resta
Do que quis ou achei.
Cheguei da festa
Como fui para lá ou ainda irei

Indiferente
A quem sou ou suponho que mal sou,

Fito a gente
Que me rodeia e sempre rodeou,

Com um olhar
Que, sem o poder ver,
Sei que é sem ar
De olhar a valer.

E só me não cansa
O que a brisa me traz
De súbita mudança
No que nada me faz.

Fernando Pessoa

Repetir os passos


Não basta estar-se grata. É preciso dizê-lo, claramente, às pessoas.
Hoje, acordei decidida a fazer o que tinha em mente há muito tempo - visitar todos os que ajudaram e gostaram do David, durante as suas muitas e longas idas ao Hospital de Santo António.

Já não entrava pela porta das consultas externas que me levavam ao Hospital de Dia, desde o dia 11 de Outubro.
Regressava sobre os meus próprios passos, marcados nos passeios, de tanto os repisar. Com um aperto no peito, mas decidida.
Há coisas que não podem deixar de ser feitas, por mais doloroso que seja recordar e entrar no sítio, onde vi o meu filho, pela última vez.
Não houve problemas à entrada. Todos os seguranças se lembram de mim e do David.
Deixaram-me entrar,...com uma palmadinha no ombro.
Levava uma enorme taça de mousse de chocolate que fiz para todas as enfermeiras do serviço de quimioterapia, tal como levava bolos, muitas vezes, quando o David ia fazer tratamentos e eu pedia que o distribuíssem por elas e pelos doentes que lá estavam.
Para muitos, eu era a mãe daquele menino que lhes levava uma fatia de bolo.
Alguém me perguntou, uma vez - "A senhora é que é a dos bolos? Ainda há uma fatia para mim?"
Foi, portanto, às enfermeiras, excelentes profissionais daquele sector, que me dirigi. Devo-lhes toda a dedicação, boa disposição e ternura com que trataram o meu filho. E foi isso que lhes fui dizer. Algumas tinham lágrimas nos olhos, outras deram-me um abraço apertado.
A maior parte delas - a Joana, a Mª João, a Isabel, a Ana... - são quase tão jovens como era o David e criaram com ele laços de muita empatia. Trocavam opiniões sobre música ou espectáculos e punham nos ouvidos os auriculares do David, curiosas quanto à música que ele ouvia, enquanto o tempo passava.
As que puderam ainda o foram ver ao 4º piso, onde o meu filho mais novo já "dormia".
Têm um lugar especial no meu coração e foi isso que quis que soubessem.

Visitei, também, o médico oncologista do David. Apesar de ele nunca lhe ter escondido a gravidade da doença, não lhe destruía a esperança. Também eu lho suplicava, constantemente.
Um rapazinho de 28 anos? A certeza da morte destrói. Deixá-lo viver e fazer projectos
Sei que o médico fez todos os possíveis ao seu alcance para o salvar.
Também eu fiz! E nada consegui... Portanto, não posso guardar qualquer tipo de ressentimento.
Apesar de as nossas últimas conversas terem sido devastadoras... estou-lhe grata também.
Há situações que ultrapassam o humanamente possível. E ele é um homem bom, numa área desgastante, para quem não é fácil enfrentar aqueles que já vão um pouco derrotados e depositam nele a última esperança. Carrega, muitas vezes, nos ombros o prenúncio da "morte anunciada". Dei-lhe um grande abraço e agradeci-lhe.

Visitei, por fim, a cirurgiã que, no início de todo o processo, me deu a mais terrível notícia que se pode dar a uma mãe.
Alguém tem que a dar...
Foi com ela que passei mais tempo. Tinha admiração genuína e carinho pelo David, sentimentos retribuídos pelo meu rapazinho, também.
Foi de uma doçura extrema, sempre.
Estabeleceram laços de muita cumplicidade e humor - ouvia-lhes as gargalhadas, quando ele queria entrar sozinho na consulta e eu ficava no corredor, à espera. Ria das "piadas" do David. Admirava a sua inquebrantável vontade de viver e o brilhozinho dos olhos.
Desde que o David foi internado para já não sair, foi visita diária. E sorria-lhe abertamente; sabia que o David confiava nela.
Quando o fim se foi aproximando, foi-me explicando, meigamente, como tudo se ia passar - um deslizar suave, sem dor, sem sofrimento... Adormecer.
Eu sabia que estrada não tinha saída, mas o único acto de amor e de coragem que, ainda, me restava era desejar isso para o meu filho. Que fosse assim! E foi... quero acreditar.
Por isso, pude sorrir ao David, até ao fim...
E fui dar-lhe, hoje, um abraço.

05 maio 2008

Uma recordação boa, um poema e uma foto


5 e 6 Maio 07
Andávamos os três, na estrada, como ciganos.
Seguíamos as luzes. De Gaia a Leiria a Vila Real...

Canção


Silfos ou gnomos?...
Roçam nos pinheirais

Sombras e bafos leves

De ritmos musicais


Ondulam como em voltas
De estradas não sei onde,

Ou como alguém que entre árvores
Ora se mostra ora se esconde.



Forma longínqua e incerta
Do que eu nunca terei...

Mal oiço, e quasi choro,

Porque choro não sei.



Tão ténue melodia
Que mal sei se ela existe,

Ou se é só o crepúsculo,

Os pinhais e eu estar triste.



Mas cessa como uma brisa

Esquece a forma ao seus ais;

E agora não há mais música

Do que a dos pinheirais.


Fernando Pessoa

04 maio 2008

Não me importa revelar-me!


Estou em Moledo, no momento em que escrevo.
São seis da manhã. O sol romperá dentro em breve.

Escrevo na banca da cozinha, para não fazer barulho que acorde o M., que anda cansado. Carrega a própria saudade de ti e a minha tristeza e lágrimas que irrompem inesperadamente.
Não escrevi neste "blog triste", durante estes dias. Tento colaborar com quem me quer ajudar ou com quem acha que o que escrevo é triste demais..
Andei pelas minhas árvores, apanhei ervas, fiz casacos para o Miguel...
Mas não aguento a dor surda que se acumula dia a dia, sem estes momentos de silêncio, a sós contigo.
E tenho de a libertar...assim.
Os sonhos têm sido, agora, uma constante. Acordo aflita, a meio da noite, porque revivo o processo, já mil vezes revivido, da tua doença e dos nossos últimos dias.
Na vida real, tive esperança, momentos de medo mas também alguns passageiros de optimismo.
Nos sonhos, sei, desde sempre, que vais morrer em breve, que o tempo será curto.
Sei que de nada adiantará toda a quimioterapia que fizeste, todas as viagens que voámos, todo o apoio e atenção constantes dos nossos/teus amigos, toda a ternura tímida do teu irmão e da tua cunhadinha, todas as escapadelas para Moledo em busca do sossego do monte, do marulhar distante do mar, da nitidez das estrelas, do canto dos melros que rasam o pátio nos seus voos confiantes.
De nada adiantará virar-me do avesso para que nada te falte.
Em sonhos, arrasto-te comigo para fora do hospital. Seguro-te pela cintura e tu pões o braço por cima do meu ombro e conseguimos sair, com destino incerto; os olhos iluminando outro percurso.
E acordo...
E regresso ao silêncio das plantas do jardim, à sombra dos pinheiros e aos casacos do Miguel...
Sei que não querias que fosse assim, que quererias ver "uma mãe firme como uma rocha"; mas o vulcão da dor manifesta-se nesta lava que são lágrimas.
E quem controla os vulcões?
Os sonhos entusiastas que projectavas, os nossos momentos mais tristes a dois - guardo-os no fundo impenetrável de mim, na escuridão da saudade.
Jamais verão a luz do dia.
São meus.

As mães, qualquer mãe, aprende a ser como o poeta - um fingidor.
Custe o que custar, primeiro, agora e sempre, os filhos, qualquer filho.


PONTOS LUMINOSOS


No silêncio basta um sopro e todo o tempo estremece
como se afasta cantando mais para dentro
a própria noite

Guardei para ti relâmpagos inúteis
prata feita de medidas vagas
a inclinada superfície implacável
cordas e alçapões

Do ponto mais alto do céu a 56 milhões de quilómetros
um dia me dirás
"desde a idade do gelo nunca estivemos tão próximos"

José Tolentino de Mendonça