Fotografia de Carlos Lemos - Olhares
É frequente, no regresso de Moledo, eu e o Manel conversarmos sobre o David. Melhor dizendo, os Davides...
• O do karaté que cortou o cinto com uma tesoura porque era comprido demais
• O do, ainda, Karaté, quando, perante centenas de pessoas que assistiam a demonstrações num encontro de dezenas de escolas e, quando todos tiveram que fazer “uma saudação” com um enorme “berro”, ele, pura e simplesmente, tapou os ouvidos
• O dos legos que arrancou à dentada, acabado de ser operado a um quisto dentário
• O da mistura de histórias que contava, quando era pequenino; em que o Capuchinho Vermelho se juntava aos Três Porquinhos que, por sua vez, trincavam uma maçã envenenada pelo Gato das Botas Altas que era casado com a Bela Adormecida e tiveram uma filha a quem chamaram Gata Borralheira...
• O da ida a Nova Iorque, sozinho e determinado, a aprender mais sobre iluminação cénica
• O da banda de música que, sob a sua severa direcção, tocava no sótão, isolado acusticamente, todos os Sábados, à tarde.
• O da “brucelidade” que se referia à velocidade com que ele queria que o Manel o segurasse pela mão e corresse pela praia de Moledo
• O da Rampa Mágica que ele dizia que estendia para atravessar ruas (um perigo!), sem precisar de olhar para os lados
• O do Super-Homem na praia, sempre com a toalha atada ao pescoço e que não podia tirar para não perder os poderes que tinha
• O David do “dom da língua”, porque tinha sempre boas notas a línguas estrangeiras, sem estudar quase nada e porque era simpatiquíssimo para as professoras...
• O de "O Bom" ou "O Grande",... com que assinava
• O do teórico sobre educação de crianças porque achava que uns parentes próximos mimavam demasiado o filho e lhe davam tudo
• O do pesquisador incansável de música, que escrevia à D. Rosa do Blitz e repunha a verdade sobre músicos e novos CDs e que se correspondia com jovens de todo o pais que lhe pediam opinião sobre bandas
• O David Gourmet porque, a certa altura, passou a ter opiniões muito assertivas sobre comida e muita curiosidade por novos sabores
• O contestatário ao Rui Rio e das cartas que lhe escrevia a pedir que não fechasse teatros e apoiasse a cultura
• O defensor do Carrilho, que ele considerava ter sido o único Ministro “decente” da cultura porque equipou o país com novos cine-teatros, auditórios e criou uma rede de equipamentos partilhados por várias salas de espectáculos.
• O Amigo dos amigos
• O das gargalhadas sonoras, quando via talk shows
• O dos berros quando o FCP marcava golo e se ouviam em toda a casa e na rua
• O que estreou a Casa da Música e da ansiedade por que passou para que tudo ficasse com o mínimo de qualidade que, sempre, exigia
• O dos queijinhos de cabra e outras prendas gastronómicas que trazia das viagens
• O do Lamecus – Rosé de Lamego
• O da verdadeira UTOPIA que fazia parte dele
• O do mar azul de Creta, onde sempre disse que voltaria
• O das receitas agridoce e da sua quiche estranha, onde misturava caril com ameixas secas e natas e que me deixava a cozinha num estado lastimável
Lembro-me de, numa dessas viagens de regresso de Moledo, numa fase de esperança (ainda o David não partira) ter dito ao Manel que não aguentaria se tivesse que passar por tudo o que passara no início da doença e pelas notícias que os médicos me tinham dado, a sangue frio.
Nessa época, só de pensar na época já passada, me sentia sufocar e o sangue se recolhia.
Afinal, tudo se repetiu, por esta altura de fim de trabalho e início de férias.
As notícias foram ressurgindo, sempre terríveis, em catadupa como bátegas de água de tempestade … a marcar o fim do nosso tempo.
E estou imersa nesta fase de decomposição mental, em que vejo vazios os dias de Verão, pela primeira vez sem David
E recordo Barcelona, tão bela e tão trágica.
A INVISIBILIDADE DE DEUSDizem que em sua boca se realiza a flor
Outros afirmam:
a sua invisibilidade é aparente
mas nunca toquei deus nesta escama de peixe
onde podemos compreender todos os oceanos
nunca tive a visão da sua bondosa mão
o certo
é que por vezes morremos magros até ao osso
sem amparo e sem deus
apenas um rosto muito belo surge etéreo
na vasta insónia que nos isolou do mundo
e sorri
dizendo que nos amou algumas vezes
mas não é o rosto de deus
nem o teu nem aquele outro
que durante anos permaneceu ausente
e o tempo revelou não ser o meu
Al Berto