31 julho 2008




Aqui.
O Vazio que me envolve não tem consolação.
A Dor invisível, que arrasto comigo, tem um longo som pungente de clarinete a solo.
O Olhar com que me olhas não basta para serenar este coração que não se rende.
A Saudade está debruçada no meu ombro; afago-a de vez em quando para que se mantenha mansa.
Os Dias sempre iguais, sempre iguais,...
E eu, aqui, vou-me despedindo, novamente,... nada será igual, quando voltar.
E eu, aqui, procuro os registos da memória desse tempo de alvoroço verde e olhos, ainda, brilhantes.
E eu, aqui, ouço as músicas escolhidas para te acompanharem durante a longa ausência que nos espera.
"Lembra-me um sonho lindo, quase acabado; ... estoira no peito um grito à desfilada..."
Voltaremos inesperadamente, eu sei, e será já como se a ausência se prolongasse longamente, por essa porta entreaberta que já não se fecha.
E nos aguarda.

Amanhã, vou partir. Moledo aguarda-nos; levamos as mãos vazias e as malas plenas de desilusão só porque, em tempos, nos atrevemos a ter ilusões.
E eu, aqui, sei que repetiria tudo o que teve que ser.
Não apagaria um único traço do trajecto percorrido.
Voltaria a atrever-me.
Voltaria a não me render.
Porque é a única forma de viver.



Sinto uma aridez que me toma
Sempre que tomo a caneta na mão
Trágica e final é como ela se faz constar.
É por quem se toma!

E, assim, no dia em que tudo se for
Parte com a dor
Que existe
Entre a esperança e o amor.

Porque há tanto e tão pouco
Que me deixa quase louco...

David Sobral

30 julho 2008

Entre duas telas.




À minha frente, está uma parede branca; é uma tela de tempo.
Procuro nos recantos da mente o lugar onde se constoem os sonhos. Procuro imagens a projectar na tela de parede branca, em frente.
Revolvo, destapo trapos antigos...
Não encontro sonhos nem imagens. Apenas traços difusos de desejos latentes. Não surgem imagens; não há sonhos onde o desejo se extinguiu.
Estou parada em frente a uma parede que permanece branca.
Permaneço assim...
Mas sei, sem me virar, que atrás de mim existe outra parede; uma outra tela tecida de tempo.
Não me viro, nem olho por cima do ombro...
Conheço de cor as imagens que a percorrem, os actores que desfilam na sua lenta corrida para um no happy end.
Nesse filme, nessa tela não branca, nada está desfocado nada foi corroído pelo tempo.
Tudo permanece inalterado.
Sou uma marionete, parte do elenco.
Não chegou a hora de saltar desse palco onde, ainda, me debato contra moinhos de vento e de só olhar para a tela de tempo que aguarda à minha frente.
Estou perante um tempo, sem tempo, que me engole e me deixa dormente.

29 julho 2008

Fomos partindo...



29Julho2007
A caminho de Faro com a Olga, para um último concerto de João, antes de Barcelona. Só mesmo alguém com uma indomável força de não se deixar vencer.
Passagem por Cascais e um banho na piscina, finalmente livre do cateter.
Até isso era motivo para aproveitar o lado bom da doença.
Ou da vida?

Eu fazia malas, revia voos, tratava dos apartamentos, encomendava mais frascos das "poções mágicas" ao Sr. António, acertava horário na escola, procurava que me desfizessem os medos, falando, falando, falando sempre.

Estávamos cansados.
Eu e o Manel fomos a Moledo, despedir-nos de todos. Ia começar a época balnear, com todos os amigos e rituais associados, há mais de 20 anos.
Jantar triste com o Sérgio e a Carla, no Ancoradouro.
Desta vez, não ficaríamos ali.
Não haveria passeios de bicicleta, nem sardinhas, nem banhos nas ondas, nem idas ao marisco, nem conversas de barraca, nem jantares de amigos de liceu, nem mergulhos na piscina, nem procissão da Senhora de Ao Pé da Cruz, nem os sermões do padre ouvidos por toda a aldeia, nem farturas, nem fogo preso em Caminha,...
Levávamos saudades da nortada e dos montes verdes, connosco.

Os mal entendidos e corte de relações com pai e prima tinham entristecido o David; apesar de ter sido ele a tomar a decisão de se afastar.
Mas o sorriso dos olhos não voltara a ser o mesmo... Nunca mais foi o mesmo...
Pesava-lhe tanta injustiça e falta de solidariedade.

Queríamos partir deste ambiente, agora mais pesado e que, subitamente, nos sufocava.
Íamos...em busca de mais tempo.

Só a realidade pode ser vencida.



Esta não é altura para parar ou deixar de pensar.
São os dias de maior aflição, de novo pânico, perante o vale de garganta profunda e escura de que me aproximo, passo a passo.
Porque o mês de Agosto foi um Inferno.
Inferno, com o calor sufocante com que nos inundou.
Inferno, com as dores que o David começou a ter e de que não sabíamos a origem.
Inferno, porque cheio de insónias e pedidos de ajuda, pela noite dentro.
Inferno de saudades de Moledo.
Inferno de saudades dos amigos.
Inferno de completo desatino e dúvida.
Inferno de perder o Norte da esperança.

Não!
Não é tempo de parar, nem tal me pode ser exigido. Sei que tenho que reviver cada momento desesperado e procurar, ou pelo menos tentar, alguma réstea de alegria.
Encontrar uma imagem menos nítida de sofrimento e medo. Para que se fixe, de forma doce.
Porque o tempo foi muito curto.
Assustadoramente curto.
Cruelmente curto.
Tão curto que não me apercebo de que passou…ou, mesmo começou…
Tão curto que não consigo, ainda, percorrê-lo sem que não repare, estupefacta, que perdi a noção do tempo.
Que foram apenas dezoito meses em que tivemos que tentar viver o que talvez nos fosse permitido, numa vida inteira que colocasse ao nosso dispor todo o tempo da vida.
Não vale a pena. Este é, ainda, o meu destino.
Vou percorrê-lo.
Seguir, apesar de só, pelo caminho aberto pelas pegadas que deixámos, ainda lado a lado.
Neste percurso, inguém me pode acompanhar. Estas imagens não se partilham.
Estes combates são solitários; são entre mim e mim.
Sei que não posso fugir de pensar, a cada dia, que este foi o dia em que…
Cada dia, até ao dia em que aquela mão grande e meiga deixou de apertar a minha mão, é revisitado.
Não há outra forma de gastar a dor que continua a ser demasiadamente intensa.
Só assim me poderei libertar, não das imagens, mas de toda a angústia que lhes está associada.
A pouco e pouco, vou tentar voltar
Tal como “David, o Bom!” faria.
Sei que ele conseguiria.



«No creo indispensable tomar un sueño por realidad, ni la realidad por locura»

Adolfo Bioy Casares

27 julho 2008

Aniversários...



Hoje, fiz 53 anos.
Não era assim que tinha imaginado a minha vida, nesta idade. Aqui, hoje e sempre, enquanto eu existisse, estariam os meus filhos, netos...
Mas acontece a vida não acontecer como a projectamos. Os sonhos não são mais do que isso - sonhos.
Castelos de areia que se desfazem com a maré cheia.
Ou as flores das minhas laranjeiras que não chegam a transformar-se em fruto, com o soprar do vento mais forte.
Também os meus dias foram invadidos pela força das Parcas que nos olham lá de cima...
Não era isto que eu via, quando, jovem estudante universitária me imaginava com os filhos à volta e a casa cheia de gente e muitos pratos à mesa.
Não se pode sonhar; o melhor será mesmo esperar que a vida nos diga, em cada manhã, como vai ser cada dia.
Assim, não me afasto do passado nem me projecto no futuro.

Acontece que há um ano, precisamente, assisti a um concerto da Maria João, no Palácio de Cristal.
Fomos todos, exactamente, todos, jantar e depois encaminhámo-nos para o Palácio.
Vi, pela última vez, o David fazer as luzes do espectáculo João.
Via-o alegre, auto-confiante, satisfeito por estar no seu habitat natural, embora estivéssemos prestes a encerrar um ciclo e a partir para Barcelona, com muita ilusão e alguma incerteza.
Nada disso o demovia do profissionalismo que o caracterizava. Chegado às salas de espectáculos, transfigurava-se. Era feliz...
Ainda hoje, o vejo, alto, de costas bem direitas, mangas arregaçadas, sorridente, a dar orientações sobre a colocação das luzes.
Como poderia imaginar que o dia dos meus 52 anos seria a última oportunidade de ver o meu filho, no palco da luz?
"Malhas que o império tece."

Fazer anos no fim de Julho sempre teve o inconveniente de toda a gente estar de férias. Por isso, me habituei a não valorizar o meu aniversário. Poucos o fixam.
Mas este ano, recebi muitos "parabéns".
E agradeço-os, sentidamente, mesmo.
Sei que foi o David ou a saudade dele que estiveram por detrás de tanta ternura que me manifestaram.
Sei que pensaram nele ao pensarem em mim.
Isso me basta.



“Assim se cumpre o signo dos meus dias - ir até ao fim da estrada com as palavras coladas aos dedos.”


Álvaro de Oliveira, "Baladas de Orvalho"

25 julho 2008

Dizer o quê?


Que posso dizer que não tenha já sido dito?
Que posso dizer sobre a avalanche de sentimentos que se cruzam cá dentro e não consigo traduzir para papel?
Que posso dizer sobre estes dias que me escorrem entre os dedos e que não consigo reter?
Que posso dizer sobre o medo que me tinge o olhar de cinzento e não me deixa ver mais do que aquilo que passou?
Que dizer?
Nada...dizendo!
E, no entanto, tenho tanto, tanto e sempre mais e sempre que dizer.
Mesmo não dizendo, é uma forma de dizer.
Significa apenas que não caibo em palavras.
Enquanto houver este "eu" que é teu, por direito meu e não dever.



Meditação Anciã


Aqui eu fui feliz aqui fui terra

aquifui tudo quanto em mim se encerra
aqui me senti bem aqui o vento veio
aqui gostei de gente e tive mãe

em cada árvore e até em cada folha

aqui enchi o peito e mesmo até desfeito
eu fui aquele que da vida vil se orgulha

Aqui fiquei em tudo aquilo em que passei
um avião um riso uns olhos uma luz
eu fui aqui aquilo tudo até a que me opus

Ruy Belo

24 julho 2008



O tempo corre...e não posso fazer nada para o contrariar.
Devagar... Mais devagar...
Seguro-me às margens deste caudal.
Olho em volta.
Não há nada a que me agarrar para te segurar a mim e não te deixar ir.



Interlúdio


As palavras estão muito ditas
e o mundo muito pensado.
Fico ao teu lado.

Não me digas que há futuro
nem passado.
Deixa o presente — claro muro
sem coisas escritas.

Deixa o presente. Não fales,
Não me expliques o presente,
pois é tudo demasiado.

Em águas de eternamente,
o cometa dos meus males
afunda, desarvorado.

Fico ao teu lado.

Cecília Meireles

22 julho 2008

Os Davides


Fotografia de Carlos Lemos - Olhares

É frequente, no regresso de Moledo, eu e o Manel conversarmos sobre o David. Melhor dizendo, os Davides...
• O do karaté que cortou o cinto com uma tesoura porque era comprido demais
• O do, ainda, Karaté, quando, perante centenas de pessoas que assistiam a demonstrações num encontro de dezenas de escolas e, quando todos tiveram que fazer “uma saudação” com um enorme “berro”, ele, pura e simplesmente, tapou os ouvidos
• O dos legos que arrancou à dentada, acabado de ser operado a um quisto dentário
• O da mistura de histórias que contava, quando era pequenino; em que o Capuchinho Vermelho se juntava aos Três Porquinhos que, por sua vez, trincavam uma maçã envenenada pelo Gato das Botas Altas que era casado com a Bela Adormecida e tiveram uma filha a quem chamaram Gata Borralheira...
• O da ida a Nova Iorque, sozinho e determinado, a aprender mais sobre iluminação cénica
• O da banda de música que, sob a sua severa direcção, tocava no sótão, isolado acusticamente, todos os Sábados, à tarde.
• O da “brucelidade” que se referia à velocidade com que ele queria que o Manel o segurasse pela mão e corresse pela praia de Moledo
• O da Rampa Mágica que ele dizia que estendia para atravessar ruas (um perigo!), sem precisar de olhar para os lados
• O do Super-Homem na praia, sempre com a toalha atada ao pescoço e que não podia tirar para não perder os poderes que tinha
• O David do “dom da língua”, porque tinha sempre boas notas a línguas estrangeiras, sem estudar quase nada e porque era simpatiquíssimo para as professoras...
• O de "O Bom" ou "O Grande",... com que assinava
• O do teórico sobre educação de crianças porque achava que uns parentes próximos mimavam demasiado o filho e lhe davam tudo
• O do pesquisador incansável de música, que escrevia à D. Rosa do Blitz e repunha a verdade sobre músicos e novos CDs e que se correspondia com jovens de todo o pais que lhe pediam opinião sobre bandas
• O David Gourmet porque, a certa altura, passou a ter opiniões muito assertivas sobre comida e muita curiosidade por novos sabores
• O contestatário ao Rui Rio e das cartas que lhe escrevia a pedir que não fechasse teatros e apoiasse a cultura
• O defensor do Carrilho, que ele considerava ter sido o único Ministro “decente” da cultura porque equipou o país com novos cine-teatros, auditórios e criou uma rede de equipamentos partilhados por várias salas de espectáculos.
• O Amigo dos amigos
• O das gargalhadas sonoras, quando via talk shows
• O dos berros quando o FCP marcava golo e se ouviam em toda a casa e na rua
• O que estreou a Casa da Música e da ansiedade por que passou para que tudo ficasse com o mínimo de qualidade que, sempre, exigia
• O dos queijinhos de cabra e outras prendas gastronómicas que trazia das viagens
• O do Lamecus – Rosé de Lamego
• O da verdadeira UTOPIA que fazia parte dele
• O do mar azul de Creta, onde sempre disse que voltaria
• O das receitas agridoce e da sua quiche estranha, onde misturava caril com ameixas secas e natas e que me deixava a cozinha num estado lastimável

Lembro-me de, numa dessas viagens de regresso de Moledo, numa fase de esperança (ainda o David não partira) ter dito ao Manel que não aguentaria se tivesse que passar por tudo o que passara no início da doença e pelas notícias que os médicos me tinham dado, a sangue frio.
Nessa época, só de pensar na época já passada, me sentia sufocar e o sangue se recolhia.

Afinal, tudo se repetiu, por esta altura de fim de trabalho e início de férias.
As notícias foram ressurgindo, sempre terríveis, em catadupa como bátegas de água de tempestade … a marcar o fim do nosso tempo.
E estou imersa nesta fase de decomposição mental, em que vejo vazios os dias de Verão, pela primeira vez sem David
E recordo Barcelona, tão bela e tão trágica.




A INVISIBILIDADE DE DEUS


Dizem que em sua boca se realiza a flor
Outros afirmam:
a sua invisibilidade é aparente
mas nunca toquei deus nesta escama de peixe
onde podemos compreender todos os oceanos
nunca tive a visão da sua bondosa mão

o certo
é que por vezes morremos magros até ao osso
sem amparo e sem deus
apenas um rosto muito belo surge etéreo
na vasta insónia que nos isolou do mundo
e sorri
dizendo que nos amou algumas vezes
mas não é o rosto de deus
nem o teu nem aquele outro
que durante anos permaneceu ausente
e o tempo revelou não ser o meu

Al Berto

A peça não encaixa.



Acabaram as aulas.
Tal como no ano passado, tudo se me apresentou um pouco distante, como se as vozes viessem de longe e apenas distinguisse tons e nunca as palavras.
Percebe-se que se é dispensável.
Ou sonhei nesse longo sono em que me fechei?

As aulas acabaram.
Fiz um enorme esforço para levar tudo, até ao fim.
Houve sempre quem me obrigasse a ir...
E também por respeito para com os alunos que trabalham, durante todo o dia e, à noite, gastam as últimas energias para frequentar a escola, em busca de melhorias ...
Depois de lá estar, as aulas correram bem. Eles gostaram de mim e eu...gostei deles.
Na verdade, estou-lhes, extremamente grata. Foram eles que me ajudaram a não pensar, constantemente, no David (embora eu sinta a contínua ausência dele, cá dentro).
E no último dia (noite) de aulas, ofereceram-me flores para que as colocasse, no cantinho que lhe destino em Moledo.
E despediram-se de mim, com grandes abraços enquanto me diziam "Para o ano, querêmo-la cá, logo em Setembro!"
É a forma de me dizerem que tenho que me manter à tona.

As aulas acabaram e não tenho planos.
A vertigem em que vivíamos em Julho passado regressa e instala-se.
Um avião que passa...
Um copo com "hielo"
O Dr. House que dedilha a guitarra...
Mais uma eólica, no monte...
Umas calças na feira de Cerveira...
Um mal-entendido ou puro egoísmo?
Horas e horas passadas em frente ao computador, à procura de um apartamento em Barcelona.
É assim que vivo...por instantâneas associações de ideias.

E sinto-me peça de um puzzle em que não encaixo. As outras peças sentem que há ali um espaço vazio e começam a criar brechas.
Mas eu tardo em chegar. Não tenho força nem sei se vale a pena.
Afinal...
Escondo-me em sítios onde não reparem em mim ou nos olhos inchados.
O puzzle que vejo contorcer-se para me dar espaço, não tem sentido para mim.
Como poderia ter sentido?

As aulas acabaram...
Só isso.
Viver cansa tanto!



Viver sempre também cansa.


O sol é sempre o mesmo
e o céu azul
ora é azul,
nitidamente azul
ora é cinzento,
negro, quase verde...


Mas nunca tem a cor inesperada

O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores, folhas,
frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.
Não cai neve, não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exacto
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem riem
e digerem sem imaginação.


E há bairros miseráveis
sempre os mesmos
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...

E obrigam-me a viver até à morte!
Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho, de vez em quando
e recomeçar depois achando tudo mais novo?

Ah! Se eu pudesse suicidar-me por seis meses
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada
confiante e sereno por saber que tu velavas,
meu amor do norte.


Quando viessem perguntar por mim
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
«Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar por uma bagatela.»

E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar a morte
ainda menina no meu colo...


José Gomes Ferreira

18 julho 2008

Hoje sofre-se.


Hoje, não há metáforas.
Apenas a realidade crua e incolor da ausência.
Apenas o saber que tudo ficou inacabado.
Apenas um enorme espaço cheio de imenso vazio.
Apenas dor.
Apenas raiva.
Apenas fotos.
Apenas música.
E mais raiva pela enorme impotência dos meus braços que apertam fantasmas.
E lágrimas...lágrimas
E o cheiro ainda doce dum quarto recentemente vazio.
Apenas desânimo que fervilha.
Quartos fechados à chave.
Um clarinete.
Livros de banda desenhada que já não provocam gargalhadas.
Apenas diários, folhas dispersas, bilhetes de teatro, letras de canções, instrumentos surdos encostados à parede, desenhos de luz, roteiros de projectos esboçados, o chapéu pendurado à entrada, a velha camisa da sorte usada nos primeiros anos de trabalho e guardada na gaveta, e sempre, sempre o mesmo sorriso.
Apenas as tuas gatas que brincam como se, ainda, as olhasses divertido.
E sempre uns olhos que me olham e me dizem aquilo que sei e não consigo.
Hoje não é dia de metáforas.
É dia de Barcelona, de zanga com o teu p., e depois ... a tua explosão furiosa de "Vou curar-me e voltar para lhes dizer que foram injustos e egoístas".
E eu parada, num degrau do hospital, muda, sem palavras, ...
Quanta determinação, sob aquele sol tórrido de Barcelona!
Prometeste que te ias curar...
E eu acreditei.
Agora, apenas a recordação magoada duma promessa por cumprir.
Um sofrimento adicional inútil mas destrutivo.
Apenas a intensidade da tua própria revolta.
Que era afinal...provocada pelo amor que me tinhas.
E dói muito.
Hoje, não é dia de metáforas.
É um dia cru.
Passaram nove meses!
E sempre uns olhos que me olham e me dizem aquilo que sei e não consigo.

16 julho 2008

Tanta força e tão pouca



Não sei donde me veio tanta força que, agora, teima em me abandonar.

Só podemos querer o bem de quem amamos...
E só isso importou!
Não houve despedidas...
Apesar deste sufoco, da respiração suspensa da saudade, da sensação de nova queda a pique no abismo e de vertigem...em que me perco, tão cansada.
Procuro essa lonjura para onde aceno e donde não recebo senão o eco frio do silêncio.
E regresso, de mãos e olhos vazios.
Este é um percurso solitário.
Não há como evitar...




Ando com o pensamento rouco
De tanto me gritar cá para dentro:
Pára com isso!

Não sou mais do que um cigarro
Meio apagado num cinzeiro
Esperando que me apaguem...
Um favor de um último bombeiro!

David Sobral

15 julho 2008

Um nó no fio


O tempo não parou.
E a vida também não... mas nada reata a corda partida. Um nó, talvez... Mas ver-se-á sempre que, ali, naquele fio do tempo, surgiu um nó. Dois nós, talvez,... Qual prisioneiro fugitivo que se escapa pela janela e não confia num só nó.
Pode cair das alturas e não resistir à vertigem do choque com a realidade escura do basalto que o espera, lá em baixo.
Depois, talvez possa fugir, desaparecer ou disfarçar-se e permanecer invisível. Mas teve que dar um nó,... dois nós..
Dentro do silêncio em que me instalo, percorro outros silêncios antigos circulares, que construí, à minha volta, para me proteger de magoar os outros.
É tão difícil sair daqui.



Uma Voz na Pedra

Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria
e estou crescendo numa pedra.

Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me
como uma torre de sombra fulgurante.

A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha
quero incendiar o silêncio.

O que eu amo não sei.
Amo. Amo em total abandono.

Sinto a minha boca dentro das árvores
e de uma oculta nascente.

Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida,
estou entre o vento e o olvido.

Quero conhecer a minha nudez
e ser o azul da presença.

Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

António Ramos Rosa

14 julho 2008

Entre mim e mim




Estou presa a esta cadeira.
A ansiedade atordoa-me... o dia está quente, o pasto à frente está verde, as cortinas agitam-se com uma pequena brisa que passa. Ouço os fados do Camané... mas tudo me parece pouco nítido.
Tal como há um ano, tudo se repete.
Mas só estou eu aqui, colada aos dias que vão regressar de longe. Não vão trazer nada de novo. A não ser o que já foi e a minha perplexidade, que antevejo porque já a sinto. Mais uma vez, colada a mim, sob a outra pele que me cobre.
Cobrem-me tantas peles que se foram sobrepondo.

O teu lugar está vazio.
Estou presa dentro de mim.
Tenho o coração junto à garganta, e novamente...o medo que me toma por inteiro e me impede de reagir.
Sei tudo, sei como vai ser, ... nova partida, nova viagem; reconheço-me nesta e na outra que virá.
Não identifico a pele que me cobre.
Não sei qual sou, hoje. Sei que o medo regressou.
Sei que, hoje, não preciso de ser corajosa.
Basta-me ficar quietinha e estar aqui, como estou.




Prepara-se para sair;
e ao ver-se ao espelho
fica presa à sua imagem,
como se não quisesse

soltar-se dela.
Ficará,
assim, nessa indecisão
entre ser ela
própria
ou abdicar de o ser, para que

a mulher do vidro não desapareça.

Mas se alguém a chama, da porta já aberta

para a rua, hesitará: ceder

à pressão da vida, ao apelo de fora,

ou continuar no interior do espelho,

onde ninguém saberá como encontrá-la?

E continua a apertar o botão

ao pescoço, protegendo-se

das portas que se abrem à sua frente.


Nuno Júdice

Em busca duma guitarra


Hoje foi dia de fingir e tentar sorrir.
Por isso, a noite é de não dormir.
O corpo quer descanso mas a cabeça não sossega. Continua desperta a ver desfilar imagens.
O dia 13 em Madrid é o tempo e o espaço onde regresso mais vezes.
É impressionante como nos movimentamos no tempo e, de repente, percorro outras ruas, sob outros sóis.
Uma imagem tenho gravada na mente. Foi quando, terminada a consulta na Clínica MdAnderson, eu e o David, depois te termos deixado o Manel, no hotel, continuámos de táxi, até ao centro.
Chegámos e o táxi partiu...
E então, num ápice de tempo que não percebi, ouvi o David queixar-se que tinha deixado o telemóvel no táxi e vi-o a perseguir o táxi, a mandá-lo parar... a correr com uma velocidade espantosa, atrás do carro, e atrás um autocarro.
É assim que o vi todo o dia. Cheio de energia, a perseguir um táxi, e entre ele e o táxi, um autocarro.
O telemóvel foi recuperado...
É essa vitalidade que recordo e o ar sorridente com que o vi regressar, com o telemóvel no ar.
A seguir, ainda fomos a lojas de guitarras, tentar encontrar uma igual à do cantor brasileiro Lenine.
Porque a música esteve sempre lá. Em cada oportunidade que surgia.
E eu sempre, também lá, em cada desejo formulado ... sei que nenhum instante se eterniza.
A estas realidades não se ajustam alternativas parcelares, Sim/Não, Ser/Não Ser, Bem/Mal. Tem que ser Sim, Ser, Bem - sem hesitar. Não se apanha o tempo que passa..., é irreversível.

Hoje, enchi-me de coragem e falei nisso ao jantar...
Era um espanto esse meu rapazinho de olhos verdes; uma força da natureza.
Esta noite, as notícias, quanto ao futuro, que de lá trouxemos não interessam.
Só um David, determinado e vencedor, a correr, pelas ruas de Madrid.
Sob um sol abrasador.




O preço da vida
(Letra de uma canção, traduzida do Inglês)


A vida é como uma música

Podes fazer tudo com ela

És o músico

Da tua própria vida.


Quanto melhor músico fores

Melhor será a tua vida

Podes julgar-me bem ou mal

Se achas que sabes a verdade.


Nada sei quanto aos outros

Mas acho que eu toquei bem

A minha fobia não me abala

Todos nós temos um preço a pagar

É o que indica a tua música.


Não interessa se a tua música é a melhor

Ou a pior

Vais ter a avaliação no fim.


Todos devem pagar

Um preço na vida

Uns, pelos lugares procurados

Outros, pelo castigo

Por desperdiçarem a vida

Tão valiosa, tão valiosa.


Depois de cá estares

Tens que pagar

Quer o lamentes

Ou o sigas


David Sobral


12 julho 2008

A nitidez do passado





12 de Julho de 2007...
E vejo tudo muito nítido.
Agora, o tempo vai voar e teremos apenas mais alguns dias bons.
No caderninho, aberto à minha frente, tenho o nosso itinerário passado.
Numa das páginas, colei o bilhete do concerto de Jazz, a que nos levaste, a mim e ao Manel, na noite de 12 de Julho.
Chegámos a Madrid, pela hora do almoço, idos de Paris, para uma consulta no Hospital de Houston, MdAnderson, marcada para o dia 13.
Estava um calor tórrido.
Comemos e fomos para o hotel. Estavas cansado, apesar de bem disposto com as opiniões de Paris.
Para a noite, foste, mais uma vez, o nosso guia.
Tinhas estado em Madrid, várias vezes, com o Teatro de Marionetas e com o Drumming.
Fomos comer numa esplanada da Plaza Central. Sugeriste, escolheste… Tudo era saboroso. Eu e tu bebemos “viño de verano” bem fresco, já que estavas de folga de tratamentos.
E rimo-nos e ouvimos-te. Gravámos na memória todos os pedacinhos.
E a música, sempre a música, a acompanhar os nossos passos…que nos levaram ao Café Central, para assistir a um concerto de Jazz. O meu bilhete é o nº 001750.
No fim, não resististe e, enquanto eu e o Manel esperávamos cá fora, tu foste "estabelecer contactos" com os músicos. Para os teus projectos sempre a fervilhar na tua cabeça.
Víamos-te, cá de fora, com a pose de quem controla bem a situação e sabe o que faz... E sabias!
E saíste entusiasmado, com mais cartões e um CD que te ofereceram para venda de espectáculos, em Portugal.

Foi tão bom, ter sido assim, guiado pela paixão da música e sempre a sonhar mais alto!
Aproveitámos bem todos os momentos.
Tenho-os , aqui, fechados na mão.
A mão é pequena mas o que lá guardo vale ouro.



Estou nu na sombra
Das questões difíceis da vida
Difícil e solitária.

As sombras têm horas dentro
De si.
E quanto mais tarde se faz
Mais ensombradas se tornam
Para quem as vê
Deitando-se por cima de si,
Escurecendo a vida…
Difícil e solitária
(Ária infindável e fugidia da sua harmonia)

A vida é como uma longa ária
Que, às vezes,
Foge da sua harmonia.

David Sobral

Só um bocadinho




É só um bocadinho...este em que estou aqui.

Há alturas em que só quero e preciso de dizer isso mesmo - que estou aqui, perto de ti.
Por mais forte que os ventos soprem.
Por mais altas que as ondas rolem e tudo arrastem.
Por mais distantes que as estrelas fiquem.
Por mais gelado que se torne este universo que habitamos.
Por mais buracos negros que haja e que tudo atraiam.
Por mais amplos e invisíveis que sejam os espaços inter-galácticos.
Por mais que se expandam e nada seja como dantes.
Por mais que tudo seja mais e mais e sempre mais.
Nenhum rio me arrasta
E...
Será sempre de menos
Para me retirar daqui, ...
Mesmo que seja ínfimo o bocadinho
Em que venho dizer
Apenas
Que estou aqui

Mãe




Cheguei mais cedo

Demais

Dias à espera

Do tempo em que

As coisas hão-de tomar

O rumo certo

Dia que eu saiba

Saio à rua

P'ra beber das ruas

As coisas que me hão-de

Bater à porta

Num certo dia

Dia...

Certo dia


David Sobral

10 julho 2008

Tranco a porta...rumo a Paris



Podia ter ido com todos os alunos da noite e com os meus colegas, ao passeio de fim de ano, a Melgaço. Mas não fui. Não me pressionam.
Fiquei por aqui. Sei que, ainda , não aguento estar tanto tempo fechada num sítio e rodeada por muitas pessoas, mesmo amigas.
O som de tantas vozes atordoa-me; os sorrisos que me dirigem obrigam-me a retribuir.
São ambientes que não controlo...
Começo a "sufocar" e seguem-se as lágrimas que continuam abundantes.
Melhor o sossego do escritório, onde passo grande parte do dia.

Tranco a porta desta casa, tentando não regressar logo, porque me imponho outros trabalhos. E consigo-o, por vezes.
Encerro o ano lectivo, faço relatórios, marco reuniões,...melhoro o aspecto dos recentes relatórios, tiro e ponho Cds, confirmo os nomes das músicas que têm a tua melodia de marca, registo-as para que não me esqueça,...e surgem as recordações que, de uma forma ou de outra, são sempre as mesmas recordações.
As datas adquirem forma e vida próprias, conheço-lhes o som determinado dos passos e as pedras do caminho que percorrem.
Sinto-as aproximar-se, para me segredarem a sua história.
Como esquecer ou não ligar, se hoje, há um ano, partimos de avião para Paris?
De Paris, havia, só boas recordações... levámos esperança de as trazer, no regresso.
Saímos, ao fim da tarde, e chegámos lá a tempo de jantar, dar um curto passeio e dormir. No dia seguinte, amanhã, consulta no Hospital Paul Brousse, com os relatórios todos na mala.
O oncologista Prof. David Machôver deu-nos tanto ânimo! Quando saímos, sentíamos forças redobradas e toda a alegria do mundo brotava dos olhos do David.
À nossa espera, em frente ao hotel, estava o Manel, sentado num banco de jardim, vindo de Bruxelas...ter connosco.
Já sabia da esperança...
O David escolheu o restaurante que quis, passeámos pela ruas que quis, vimos as lojas que quis, espreitámos os clubes de jazz que quis.
Era o nosso guia feliz.
Ele sempre gostara de Paris.
E seguíamo-lo, tentando, como ele, acreditar. Estávamos felizes porque o nosso rapazinho irradiava leveza.
No dia seguinte, partiríamos para Madrid.

Agora, os meus olhos começam a embaciar-se.
Está tudo tão presente, contigo, aqui, com tamanha nitidez...



Cher Monsieur

De David je garderai le souvenir d'un garçon intelligent, courageux et extrêmement sympathique. J'ai été très marqué par lui, lors de nos brèves rencontres car il avait une personnalité très attachante et vive.
Je vous présente mes plus sincères condoléances et regrette de ne pas avoir pu l'aider davantage à surmonter sa terrible maladie. Bien cordialement à vous. David Machover

09 julho 2008



Eis-me, aqui,...quer venha, ou não!
Hoje, o dia tem-me sido mais leve. Por isso, ouço o brasileiro "Seu Jorge" - América Brasil (acho que gostarias!)
Houve, mesmo assim, um momento em que me emocionei. Um antigo colega e amigo, o Geada, foi visitar-nos à escola.
Lembro-me do dia, há uns quatro ou cinco anos, em que ele apareceu triste, magro, desesperado, com aquele olhar suplicante que tão bem aprendi (depois) a reconhecer. A filha, na altura com 30 anos, fora operada, de urgência, a um cancro e andava naquela via sacra da quimio ou radioterapia...
O tempo foi passando e a filha ia reagindo, lentamente, mas reagindo ... ao tratamento.

Entretanto, o David adoeceu e, logo, ele me telefonou...
Não atendi.
A minha forçada estabilidade aparente passava por não falar, para não chorar e o David não ver os meus olhos inchados.
Não se pode chorar, nessas ocasiões. Senão, tudo se desmorona.
Espera-se pela noite, quando os outros dormem, e tira-se, de mansinho, o coração de debaixo da pedra, onde o colocamos, ao acordar.
Mandei-lhe um sms com um beijo, apenas.
Nós, aqueles que passam por situações tão penosas e destrutivas com filhos, aprendemos a comunicar com poucas palavras.

Da última vez que nos encontrámos, a situação invertera-se. O meu filho estava a melhorar e a dele, a piorar, novamente. Aí fui eu quem lhe deu um abraço e chorámos os dois.
Hoje, soube que a filha está melhor; sofreu, é certo, mas tudo indica que superou a doença. Ficam muitas mazelas das quimioterapias e transfusões de sangue...
Mas vive, com qualidade de vida. E fiquei feliz, por ele e por ela e os filhos ainda pequenos.

Aquele pai ainda tem, no olhar, uma sombra ... mas já sorri!
Foi ele que me abraçou.
Sabe!




Máquina do tempo

Devia haver uma máquina do tempo!

Não para viajar ao passado

E refazer algo

Que nos tenha desagradado.

Melhor é viajar para o futuro!
Se as coisas não se resolvem

Passamos por cima delas
No escuro.

Pior... é chegar lá e não ver,
Não encontrar vestígios de solução,
Nem pistas para trazer de volta
Que nos ajudem a saber o que fazer...

David Sobral

08 julho 2008

Julho

Este é um blog caótico.
É diário pessoal, cantinho de silêncio com música de fundo, sofá de conversa comigo mesma, recolha de poemas (que falam de mim), arquivo de recordações de dias mais ou menos felizes, de sonhos inacabados, de registo de emoções e, às vezes, de cartas a um filho que perdi, algures, neste meu percurso que se chama vida.
Talvez dure o resto da vida inteira porque a memória vai devolvendo tudo, tal como o mar.

Em Julho 07, vivíamos, já, vertiginosamente, como trapezistas sem rede ... e tudo foi demasiado rápido e preciso, preciso mesmo de continuar a retratar o David;... não houve tempo para que fosse conhecido, por ele próprio, embora o site dele esteja activo e, ainda, tal como o deixou - davidsobral.com
É um site bonito!
Foi, desde jovem, apaixonado por música. Música de todos os géneros - jazz, portuguesa, blues, percussão, clássica, rock, brasileira, cigana, contemporânea ... sei lá.
Era um poço de informação musical.
Chegou a fazer um programa de Jazz, semanalmente, na Rádio Universitária de Coimbra - Jazz Faz Tarde. Ouço-o, às vezes.
Andou numa Academia de Música - viola e canto.
Tinha um estúdio no sótão. Ouvia-o tocar bateria e guitarra e clarinete e gravar programas. E cantava. Escrevia as próprias letras de canções, em inglês.
O destino levou-o à Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo - Design de Luz e Sonoplastia.
Nova paixão, a juntar à de sempre, a música.
Foi a Nova Iorque frequentar workshops de Luz, com os melhores do mundo (dizia ele).
Fez, ele próprio, workshops pelo país.
Decidiu fazer uma pós-graduação em Gestão Cultural.
E era a nova paixão - programar e vender espectáculos.
Sem nunca abandonar as outras.
O caminho dele estava cheio de música, luz, espectáculos, escrita, ritmo, contínua inovação e muitos amigos.
Exausto e frágil, trabalhou até à véspera de entrar no hospital, dia 13 de Outubro.
E, já sonolento, falava dos projectos, declamava Shekespeare, orientava a luz dos palcos, elogiava as enfermeiras, falava do futuro com a namorada, perguntava ao Manel os resultados do futebol.
Dizia, sempre, um "olá" leve, rouco, meigo, a quem chegava.

Antes de entrar em coma, pediu-me, com um sorriso aberto, "Mamã, vamos dançar?"
Porque, também, dançava bem...
E peguei-lhe na mão que me estendia.
Foi como se aceitasse e dançasse.
E adormeceu, longamente.
A última dança foi para a Mãe.


David com Filipa César (Moledo/06)

Biografia


E tudo se resumiu à evidência do pó.

Uma lenda, um ofício, um teia de
apertadas mágoas que nunca mais
deixará passar a luz.

A tua luz, sol, lua ou juvenil chama dos
campos livres,
apagou-se violentamente.

Nos aquários da noite caiu uma estrela.

O mundo caiu sobre os teus ombros.

José Agostinho Baptista

07 julho 2008

Le Passeur


Quando regresso, trago comigo as sombras luminosas de Moledo.
A luz que o David me ensinou a apreciar é, também, a minha casa.
Assim, trago o David comigo.
Para que não me sinta tão perdida nos corredores dos dias…
Desta vez, cuidadosamente fechada na mão, trago guardada mais uma prova do quanto ele marcou quem por ele passou.
A Filipa César, natural do Porto e residente em Berlim, dedicou ao David o último trabalho que fez.
E as lágrimas apareceram, de mansinho.
E uma enorme gratidão a quem o guarda no coração.
E são tantos...
Se ele pudesse saber, os olhos brilhariam.
E choraria de "emoção", como ele dizia.
Obrigada, Filipa querida.




Filipa César | Le Passeur | Ellipse Foundation | 5th July

04 julho 2008

Não pensar...

Choro, porque choro!
Não vale a pena escamotear razões.
Não vale a pena que me perguntem porquê.
Que responder?
Porque sim, apenas...
Por isso estou aqui, neste cantinho, onde me instalo, à sombra das saudades.
Dá-me força, suponho.
O resto é intangível e misterioso, fora do alcance do entendimento.

Se pudesse, punha aqui a música (uma das tuas escolhas) que estou a ouvir - "Ingênuo" de Nilze Carvalho, em Chorinhos de Ouro.
Deves trazê-las contigo, onde quer que andes.
Afinal, a música era a tua paixão...



Fica a música de um poema.


As velas da memória

Há nos silvos que as manhãs me trazem
chaminés que se desmoronam:
são a infância e a praia os sonhos de partida

Abrir esse portão junto ao vento que a vida
aquém ou além desta me abre?
Em que outro mundo ouvi o rouxinol
tão leve que o voo lhe aumentava as asas?
Onde adiava ele a morte contra os dias,
essa primeira morte?
Vinham núpcias sem conto na inconcebível voz
Que plenitude aquela: cantar
como quem não tivesse nenhum pensamento.

Quem me deixou de novo aqui sentado à sombra
deste mês de junho? Como te chamas tu,
que me enfunas as velas da memória ventilando: «aquela vez...»?

Quando aonde foi em que país?
Que vento faz quebrar nas costas destes dias
as ondas de uma antiga música que ouvida
obriga a recuar a noite prometida
em círculos quebrados para além das dunas
fazendo regressar rebanhos de alegrias
abrindo em plena tarde um espaço ao amor?
Que morte vem matar a lábil curva da dor?
Que dor me faz doer de não ter mais que morrer?

E ouve-se o silêncio descer pelas vertentes da tarde
chegar à boca da noite e responder.


Ruy Belo

02 julho 2008

É cedo




É cedo, muito cedo para deixar que a saudade passe por mim, sem que eu me detenha, longamente, nela.
Está entranhada, cá dentro.
Vivi no medo contínuo, durante muito tempo, sem que o pudesse manifestar; porque há coisas que não podem ser mais fortes do que nós.
Sabemos, intuitivamente, quais são, quando nos confrontamos com elas.
Como raio fulminante, soube que tinha que ser mais forte que o medo mais forte, naquele mês de Março...pelo David.
Eu arcaria com o meu medo e o dele, que seguramente também existiu, se pudesse.
E fui seguramente forte.
Tenho completa noção de que não podia deixar de ser assim.
Esse medo alojou-se, escondido mas sempre a querer transbordar. Sempre a querer sobrepor-se ao meu fingimento natural.
Poucos o viram.
Sempre fui silenciosa no fingir, na dor da tristeza.
Sempre fui exuberante no demonstrar a dor física.
Fiquei exausta.
Ainda finjo, às vezes, em situações fáceis de adivinhar...
Mas é cedo, muito cedo, ainda e ainda ... para deixar de chorar.
O rapazinho que me olha, sorridente, da fotografia, aqui ao lado, sabe que me estou a esforçar.

As personagens desta história de Amor desencontraram-se; seguiram, inesperadamente, caminhos diferentes que não se bifurcam.
A sensação do que é inverosímil (segundo Aristóteles) sempre me perturbou.
A morte de um filho, para além da saudade, da dor e da sensação de ter perdido uma batalha e ter ficado de mãos vazias, é, definitivamente, inverosímil.

Vivo, ainda, de palavras dele e sobre ele.



Cara Isabel
Num verão fui contactado pelo David para lhe dar aulas de guitarra,
Ele foi um daqueles alunos em que, possivelmente, o professor aprendeu mais do que o aprendiz.
Ele estava muito atento a tudo o que se passava musicalmente. Durante uns tempos, foi-me enviando discos ou mails para me chamar a atenção de coisas que ele achava (e eram)interessantes.
Sempre que o encontrava sabia sempre tudo o que eu andava a fazer, por outro lado era com agrado, que eu ia sabendo do trabalho que ele ia desenvolvendo com pessoas que ele muito admirava.

Durante a doença, quando o encontrava, ele era um perfeito herói. Nunca consegui perceber o que estaria a sentir, julgo que no fundo era isso que ele queria.

Sei que foi uma Mãe impressionante na forma como o acompanhou.
Possivelmente, as palavras não poderão traduzir tudo o que sinto.

Mário Delgado (Músico)