Fala-se de dias e dias que escorrem ... sem um filho que partiu! Fala-se à toa ... e escreve-se, sempre, para silenciar a saudade ou as lágrimas. À toa ...
Dizer que o David ficaria muito contente, sorriria de satisfação, com o Fado - Património.
Sim, estranhamente, o meu rapazinho do Jazz aprendeu a apreciar certas sonoridades do fado. E eu, com ele.
Também eu e o Manel ficámos contentes (e tristes)!
Sempre a satisfação permeada de tristeza ... por ele.
Dizer o quê?
Dizer que fui, mais uma vez, a Arouca.
Terra lindíssima ... porque a trago comigo nas recordações doces da minha adolescência (em que fui feliz) - o vale, a Senhora da Mó, a Serra da Freita, o meu colégio, depois a avenida que sobe por entre o largo e o Mosteiro de Santa Mafalda, o edifício da câmara ao cimo e a rua (onde vivemos) ao lado.
E o cheiro da terra fria, embebida de gotas de orvalho, ao anoitecer.
Eu e a minha amiga Belita.
A nossa juventude por entre piqueniques, passeios à Serra, descidas da Frecha da Mizarela.
O eco dos risos, por entre as escarpas, misturados com o som da cascata.
O twist ensaiado, nos intervalos das aulas!
As aulas de viola e bateria ...
Lembro-me tão bem!
Depois, aquela mesma sensação de um tempo silencioso que escorreu, veloz, por entre imagens desfocadas.
Em que o perfil do David sobressai.
E se fixa debaixo das minhas pálpebras.
Tão nítido.
Há uma ponte suspensa entre esse tempo antigo e agora.
Como se, algures, eu tivesse errado no caminho.
"Sou dois, e ambos têm a distância - irmãos siameses que não estão pegados."
composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa
O tempo.
A percepção do fluir do tempo.
E a recusa em deixar que o passado se afaste, levando-te de nós.
O largar da tua mão; uma bifurcação ... o ter de deixar que te vás por um caminho diferente. E o meu não querer ; o meu não poder sequer já querer.
O saber-nos viajantes por estradas que jamais se cruzarão.
O saber-te sem regresso!
Apesar de, ainda, parada, à tua espera, junto ao abismo desse instante de tempo; os olhos embebidos de luz que já escurece e de sons que, subitamente, emudecem.
Levaste-os contigo.
E tempo ficou vazio e eu com ele, privada da tua harmonia mágica de luz e som.
Do brilho risonho, simples e cativante do teu olhar.
Sempre o tempo e a estranha sensação de que não consigo medi-lo.
Enrodilhada entre passado e futuro; nesta ânsia tão presente.
O tempo que se estende, certamente.
Mas não sinto.
Não decorre ... porque o penso, a cada instante.
Abril, o teu mês de Abril ... em plena e luminosa primavera.
O meu tempo é de fios tintos de saudade doce e amarga que percorre vastos espaços transparentes, ausentes de hábitos, fora da realidade comum.
Vivo, flutuando instável! Num vaivém contínuo; perturbada do passado, descrente no futuro.
Que ponte do tempo permitirá a passagem a quem já foi e a quem se procura ... sendo que as duas somos apenas uma.
Titubeio nos atalhos entre passado e futuro.
E penso no quanto me tarda a sensação de estar viva.
Talvez só se possa sentir o fluir do tempo, quando não se pensa.
Tenho saudades de novembro, apesar de, já então, estares doente.
Mas nunca, ou quase nunca, a doença te impediu de perseguires e concretizares os sonhos musicais e luminosos que tinhas.
Eram sonhos mágicos, em que eu e o Manel nos embalávamos para seguir contigo, até onde a tua paixão pelo palco iluminado e pela música nos levasse.
Levou-nos a tantos, tantos concertos da Maria João, do Mário Laginha, do Bernardo Sassetti, do Drumming (com os sons do Zeca Afonso), do Remix Ensemble, ...
Agora, são também tu!
Tantos locais diferentes e tantos cine-teatros, tantos auditórios percorridos, através de ti ...
E tu e os teus desenhos de luz, na tua secretária.
Os teus rabiscos mágicos.
E eu, na secretária em frente, a espreitar-te pelo cantinho do olho.
Para que não visses a sombra cá dentro.
Tantos espectáculos ... tanta luz ... tanta força a tua .... tanta alegria misturada com a dor de te saberes num combate desigual.
E sempre, sempre, a tua insuspeita coragem e força sobre-humana para continuares a percorrer os caminhos pouco nítidos da doença que te ia dobrando e que tu, cada vez com mais cansaço físico ... mas com vontade férrea de te superares a ti próprio, ignoravas.
E todos (os dois, os quatro, os cinco) te seguíamos, nessa estrada, nesse desígnio que era ... foi, afinal, também, o nosso.
E este fim de semana, com os amigos do costume, passei pelo teatro de Tomar, pelo de Santarém ... que me saltaram aos olhos, sem que os visse.
Ou procurasse.
É sempre assim.
Misturam-se contigo, com a tua luz, com o mês de Novembro ...
O primeiro sem ti.
Do medo do medo que pode regressar, se eu voltar inteira a mim.
De vir aqui.
De tantas saudades para este apertado espaço etéreo.
Ligado ... a nada.
Mas se é o que sobra ... venho para te dizer que ontem ouvi falar de ti.
Porque se trata de ti, quando um aluno diz, na aula da tua madrinha adoptiva, a Helena, que vai apresentar "o livro - Mamã, vamos dançar? - da minha ex-professora de português, Isabel Venâncio".
(Teria 11 anos quando tudo aconteceu! Foi há quase 5 anos!)
E falou desse livro aos colegas ...
Falou de mim ... falou de ti!
Porque se trata de ti, quando uma desconhecida me aborda e me sorri e me pergunta se me pode dar um beijo. E dá! E eu sei que tem de ser a tua recordação ... entre nós!
E só depois me diz que me viu na televisão, que fixou as nossas caras, que me ouviu e leu o livro.
Que te admira!
E ficamos ali, duas desconhecidas, a falar de ti!
Despedimo-nos; não devemos voltar a encontrar-nos.
Vive em Coimbra.
Tem o filho, que vive com ela, ali, à espera e tem uma outra filha.
Acrescenta. São dois!
Sorrio-lhe ... enquanto os olhos choram; percebo o que me quer dizer.
Sim, eu sei!
Apesar de perdida na amálgama de saudades, de amargura e dor ... tenho outro filho ... tenho um neto ... tenho sorte!
Nesta casa, música ainda há ... é o som da saudade.
Jim Hall
Olá caros ouvintes, bem vindos a mais um jazz faz tarde... Hoje, o programa é sobre um guitarrista que é um dos pais da guitarra jazz moderna. O seu nome é Jim Hall.
Este senhor já tem muitos anos desta vida e influenciou muitos outros como, por exemplo, Pat Metheny.
Jim Hall tocou com músicos de peso - Ella Fitzgerald, Lee Konitz, Sonny Rollins e também Art Farmer.
O tema que vamos ouvir hoje é de um disco de colaboração entre Jim Hall e o também aclamado guitarrista Pat Metheny; duas guitarras, portanto. Para que não se confundam, aviso já que o Jim Hall ouve-se do lado ... e o Pat Metheny ouve-se do lado...
Um abrir de gavetas, há muito fechadas.
Um folhear de dossiers, entreabertos.
Um fortuito escutar um Cd não catalogado e ...
Fico sem saber quem sou; regresso àquele vazio tão familiar de quem perdeu todas as certezas.
Se é que, alguma vez, tive muitas.
Mesmo as poucas certezas que a rotina da saudade instalada vai conquistando ... até essas, num relampejar de tristeza se apagam.
Porque passei a mão pelas poucas roupas que guardo do David.
Porque, num relancear de olhos, o que fixo é a letra tão caracteristicamente esquerdina do David.
Porque as músicas que invadem os meus ouvidos têm o tal swing de que o David falava.
São aquelas gravações de músicas especialmente apreciadas pelo meu filho e que ele gostava de ter sempre por perto, por onde quer que andasse.
Escolhia um Cd, desses "mix", e sabia que seria sempre uma boa escolha.
São sons de alegria de viver; são sons de quem sonha acordado e, confiante, sabe que o sonho será possível.
Para ti, foi possível ... até ao adormecer, sob os teus olhos fechados.
Apesar de tudo ter sido, afinal, impossível. Perante os meus olhos desertos.
Que bom só eu saber que o teu "palácio encantado de ventura" encerrava só "silêncio, escuridão - e nada mais!"
Que bom!
Apesar da amargura que há pouco, ainda agora, me invadiu.
Que bom, meu filho ...
Apesar do ferrão da perda e do bosque de saudade impenetrável que entre nós se instalou.
Talvez devesse ir-me habituando a este calendário virtual, existente apenas dentro dos meus olhos, do meu sentir os dias, da mais ou menos violenta intensidade da saudade.
Ou ...
Talvez não devesse abrir o peito de espanto pela ansiedade com que vejo Outubro ir-se ... para dar lugar à contagem em crescendo de emoção e sensação de perda até Dezembro.
Ou ...
Talvez devesse acertar as minhas horas pelas horas lunares ou pelas constelações que vão girando no céu, em função, também elas, do giro da terra em torno do sol.
Assim o disse Galileu!
Ai Galileu, Galileu!
As folhas caem, as plantas crescem, a lua atrai as marés, o rebanho das ovelhas persegue a inclinação do sol ...
E esta bola girando, girando.
Mas inerte de emoção.
Sempre certinha, no lugar exacto quando chega a primavera; ... conforme a cruz no calendário.
Tinhas razão, Galileu!
...
Se a dor não alongasse as horas; se o medo não escurecesse o sol; se a saudade não cobrisse de tule a lonjura do passado; se a tristeza não tivesse esse poder imenso de me fazer recuar, recuar sempre ... em busca daquela nesga de tempo ... em que o verde ainda era esperança.
Em que havia luz, sol, nós em volta do sol, a lua à nossa volta, tudo em invisível e plácido movimento.
Em que havias tu.
Agora ... que sei eu do tempo?
Nada sei.
Sinto-o como um casulo em que me embrulho ...
E que espero ... me proteja.
O David morreu.
E eu continuo sem saber como o deixei morrer.
Há coisas que não podem acontecer!
E não sei como não o consegui evitar.
Foi um terrível e irremediável engano!
Talvez tivesse bastado que eu tivesse continuado a olhar por ele ... como quando era criança.
Mas não!
Deixei-o crescer e lutar por quem queria ser.
Confiei e entreguei-lhe nas mãos as rédeas do futuro que sonhava ter.
Descobri (tarde demais) que os filhos devem ser sempre olhados, discretamente, pelo cantinho do olho, ... como fazemos desde o dia em que os vemos nascer.
Tivesse eu visto, com olhos de ver, o olhar pálido do meu filho ... uns meses antes!
Agora, é com o tempo, esse meu Golias rude e brutal, que tenho de conviver.
O David morreu há 4 anos.
Anos ... que eu conto pelas noites de insónia.
Por isso, o meu filho me morre todos os dias.
Ontem, tal como hoje.
Tal como amanhã.
O sol não vai nascer para ele.
Um extenso lago oval, de águas paradas, alguns limos verdes que escondem peixes vermelhos que ondulam, de onde em onde.
Talvez um som de rã a coaxar em uníssono com um fio de água que escorre do lago, em direção ao roseiral.
Que eu não ouço, mas sei.
Olaias, choupos, castanheiros de troncos engrossados pelos anos e ramos seminus; folhas douradas dos mais diversos matizes, ainda presas por um fio já delicado.
Que eu não vejo, mas sei.
Uma brisa quente de um outono que tarda em chegar e empurra de leve penas de pássaros que partiram e outras folhas que rodopiam trémulas à volta do tronco que as viu nascer.
Que eu não sinto na pele, mas sei.
Um melro ou dois que saltitam por entre as aromáticas, em busca de restos de sementes que se abandonaram à terra, em hibernação.
Que eu não vejo, que eu não ouço, mas sei.
Estreitos e sinuosos caminhos, entre muros de toscas pedras, tapetes sombrios, espessos mantos silenciosos de uma imensidão folhas, escurecidas pelo verão, caídas e cansadas, já, de preservarem a terra e a vida do sol abrasador.
Debaixo desse manto,
protegida dos dias,
ao abrigo dos olhares,
a respiração suspensa,
silenciosa,
quieta e invisível ...
eu!
La route chante,
Quand je m'en vais.
Je fais trois pas,
La route se tait.
La route est noire,
À perte de vue.
Je fais trois pas,
La route n'est plus.
Sur la marée haute,
Je suis monté.
La tete est pleine,
Mais le coeur n'a pas assez.
Sur la marée haute,
Je suis monté.
La tete est pleine,
Mais le coeur n'a pas assez.
Mains de dentelle,
Figure de bois,
Le corps en brique,
Les yeux qui piquent.
Mains de dentelle,
Figure de bois.
Je fais trois pas
Et tu es là.
Sur la marée haute,
Je suis monté.
la tete est pleine,
Mais le coeur n'a pas assez.
Sur la marée haute,
Je suis monté.
la tete est pleine,
Mais le coeur n'a pas assez.
Vou gastando, pouco a pouco, coisas que o meu filho deixou, para que permaneça brilhante o rasto luminoso e irónico do olhar
... com que me fazia sorrir.
Triste consolação, agora, que tempo se partiu!
Com ele levou os palcos de luz com que iluminava a música.
E o sonho.
E a doçura.
Um curriculum ... vitae
"David Sobral Nunes, nascido 4 anos e 2 dias depois da Revolução dos Cravos, cedo se mostra um rebelde.
Enquanto muitos bebés choram e berram, nos primeiros tempos, este resolve sorrir, para espanto e encanto da própria mãe.
Nos primeiros anos de vida, demonstra boas capacidades comunicativas e corporais, ganhando o direito a ter um nome artístico, "Babide, o bailarino".
Poucos anos depois, passa por uma fase exploradora das suas capacidades como pintor, fazendo belos desenhos nas paredes de sua casa. Vai desenvolvendo a sua própria linha estética.
Depois de algumas chineladas paternas, abandona esta arte e dedica-se à música; dando os primeiros passos como flautista.
A partir daí, foi saltitando de escola em escola e de instrumento em instrumento; passando da flauta para o órgão electrónico, deste para o piano e, posteriormente, para o seu instrumento de eleição - a guitarra.
No seu percurso escolar de aluno médio, vai demonstrando várias tendências nas suas escolhas profissionais.
A primeira profissão que lhe desperta interesse é a do pai, Engenheiro Civil, mas outras virão. Com o passar dos anos, "o nosso Babide" foi pensando seguir promissoras carreiras - cozinheiro, bombeiro, dentista, professor, educador de infância, psicólogo.
Mas houve um momento na sua vida que o fez mudar de rumo.
No 12º ano escolar, perdeu completamente a motivação pela área em que se encontrava; as ciências já não lhe despertavam qualquer emoção. Sendo assim, decidiu aproximar-se novamente da música e enveredou por um curso superior de Prof. de Educação Musical. Mas também não era bem isto ...
Ao fim de um ano (bem sucedido, de qualquer modo), deixou este curso para escolher aquele que verdadeiramente lhe interessava.
Os espectáculos de música, o cinema ... sempre o tinham fascinado. O processo de criação, a integração numa equipa de criadores, era algo por que se sentia atraído, desde há muito tempo.
A interacão, a troca de ideias, a busca de novas tendências estéticas, novas experiências motivaram-no muito.
O ingresso no curso de design de luz e som fez com que pudesse dar largas à sua imaginação e, sobretudo, estar sempre próximo da sua verdadeira paixão - a música.
A tudo isto acrescentara-se uma nova área, até então desconhecida, mas que, dadas as suas potencialidades, logo se torna uma outra paixão para o "Babide", a luz.
E descobriu o seu rumo - iluminar a música."
Tenho a nítida e dolorosa percepção de que a tua imagem, meu filho David, se vai esbatendo e submergindo na areia fina, no fundo do mar, por entre as algas, e, talvez, corais ... onde, talvez, habites.
Tenho a nítida e dolorosa sensação de que outros a quem estiveste ligado e que, de alguma forma, te fizeram sofrer, vão emergindo ...
Como se a tua partida não tivesse sido tão, tão trágica; tão violenta e irreparável.
E dói. Dói-me muito.
No que diz respeito à desumanidade de alguns que te eram próximos, não sou capaz de ser clemente ou tolerante. Nem quero perdoar ou esquecer.
Essa parte do meu coração transformou-se em pedra ... de tanto te ver sofrer.
Alguns vão esquecer!
Outros vão perdoar o imperdoável.
Sei-o, ouço, pressinto-o, percebo alusões ocasionais e inocentes... apesar do silêncio.
"É da natureza humana!" - dizem-me.
Sim.
Sei que vai ser assim e cada vez mais assim só nós perdidos naquela luta inglória e distante; sei que te irão deixando cair e serás só tu; cada vez mais só tu, no meu coração só.
Porque hoje é o dia em que a tua última morada passou a ser aquele branco quarto 24, no 4º piso, ao fundo de um corredor, à esquerda ...
Porque hoje foi também o dia em que eu, contigo, comecei a desprender-me da parte de mim própria que não voltou a sair daquele quarto, já só iluminado pela luz dos teus olhos.
Que me interessava a luz do sol que víamos lá fora?
Hoje, como há 4 anos, há estados de alma que não se partilham.
E sinto-me só; estarei, irremediavelmente, cada vez mais só, neste sentir.
Com a minha dor.
Com a minha saudade.
Com a minha revolta.
Mas também com aquele outro eu; rude e incapaz de perdoar quem não te perdoou.
Quem não perdoou por nos amarmos assim, mãe e filho, em frente à morte, de forma incondicional.
Poderia ter havido outra forma?
07 outubro 2011
"Eu não sei de mim. Não tenho nada, não sei se sinto, não sei se penso, não sei se vejo, não sei o caminho. Há um muro alto, parado à minha frente. Antes de dormir, encosto-me ao muro do terraço, a olhar para o vazio da noite que sinto dentro de mim." 7 de Outubro 07, in Mamã, vamos dançar?
Como se o tempo curasse feridas destas!
Qualquer som mais teu, qualquer sensação de que vais descer a escada, a qualquer momento ... a reabre.
E a ferida vai ficando cada vez mais funda.
Quanto mais invisível aos olhos dos outros que seguiram em frente ... mais dolorosa se torna para mim.
Que vou devagarinho, ...
Tentando acompanhar os da frente, sem largar quem me ficou para trás.
O mês dos dias longos que, outrora, quis intermináveis e sonâmbulos.
Setembro.
Noites brandas de sorrisos, envoltas na ternura de olhares que trocávamos, plenos de silêncios ... rasando a loucura em pânico.
Que importa? Se havia sorrisos, ternura, olhares, silêncios, loucura, ... mesmo o pânico. Que importa? Se havia calor e vida ... e as garras escondidas mas afiadas, prontas a arreganharem a luminosidade quente dos dias de que nos queriam privar.
Havia luz ..., teimávamos em manter-nos protegidos pela luz.
A tua luz; a do brilho dos teus olhos tão verdes de esperança e sonho; a dos teus palcos onde soavam os derradeiros acordes que, na lonjura da memória, trauteavas ...
Tu, em setembro, à beira mar, e o suave marulhar das ondas que te haviam de levar. E o sol, já prisioneiro dourado, lá onde os azuis se entrelaçavam.
A tua silhueta a confundir-se com a areia ainda morna de vida e já quieta de cansaço.
Todas os dias, se vão soltando vidros do meu coração em pranto, tantas vezes partido, quantas remendado.
Todos os dias, os volto a colar, pacientemente, no lugar vazio.
Sem outro querer que não seja o de me acompanhar inteiro até àquela hora lusco-fusco que cega os olhos e em que as emoções se misturam numa teia indefinida.
Feita de sol poente e dor; de lua e sombria solidão.
Cenário - Um supermercado
Actores - Um casal de professores (do David ...) e meus colegas. Eu.
Eu - .... Olá, etc... etc...
Eles - Como vais?
Eu - Etc... Etc...
(Sobre a morte do David)
Eles - Todos temos a nossa cruz! Tu tens a tua; nós temos a nossa. Agora, andamos às voltas com a restauro da casa da aldeia. Também nos tem dado cabo da cabeça!
Eu - Pois!!! Adeus ...
O sol instalou-se e aqueceu os corpos, deixando-os lassos. O céu sempre azul convidou à serenidade. Os olhos alongaram-se na busca do infinito, na paisagem.
Nem uma brisa perturbou a quietude das cortinas.
Ou o verde das folhas das árvores silenciosas.
Ou o chilreio dos inúmeros pássaros pousados nas linhas.
E, no entanto, as minhas mãos tremem.
Trago na garganta um nó que impede que outras palavras mais doces sejam ditas
A cabeça rodopia em torno de si própria e dos fantasmas que a habitam, numa inútil fuga do ressentimento e da dor que acompanham a minha contínua saudade.
De ti, meu filho.
Rodopia em torno do medo (incompreensível) que tenho de que ainda possas sofrer mais; do medo de que sejam ditas palavras cruas que te toldem os olhos de tristura.
Apesar da branca brandura do dia, vivo como se dentro de mim, o sol tivesse escurecido, o céu se tivesse toldado de nuvens, chicoteadas pelo vento, e um terrível vendaval se anunciasse.
Em moto contínuo.
A saudade do que foi e o medo do que virá ... fazem dos meus dias, dias de inquietação em que percorro incansável o corredor sombrio da minha mente e onde esgoto as minhas forças para te obrigar a ficar.
10 de Setembro, o de hoje, pleno de notícias sobre o 11 de amanhã, sobre os que sobreviveram, sobre os que, em desespero, se atiraram do alto das torres do WTC, sobre a estupefação do mundo perante as imagens que, durante todo o dia, passaram na televisão.
10 de Setembro, o de hoje, ainda, pleno de sentimentos contraditórios e tão penosos, prenúncio do amanhã, Dia Nacional da Catalunha, feriado em Barcelona, donde nos expulsaram, porque o nosso tempo, ali, terminara.
Abruptamente, sem uma palavra de esperança para o dia seguinte.
Relembro todos os nossos passos desse dia 10.
De 2007.
Ao teu lado, David.
10Setembro07
Chamaram-nos ao hospital e deram-nos a notícia de chofre! Suspensão do ensaio! Bilirrubinas demasiado altas! Aumento das metástases! Mandaram-nos embora, assim! Sem aviso, sem tábua de salvação, sem alternativa, de forma seca e crua. Sem preâmbulos, sem aquele “mas ...” misericordioso que nos mantém a respirar.
O David não devia ter deitado aquela lenta lágrima que lhe vi, quando o Dr. A. nos informou. Pesam-me tanto algumas lágrimas que ele deitou, apesar da coragem e da determinação com que enfrentou a doença. Mas esta lágrima queimou mais do que todas as outras. Ainda queima!
Viemos embora! Nem amanhã, nem depois … não voltaremos ao hospital. Não há segunda fase de ensaio! Estamos entregues a nós próprios. Sós! Os dois! Ninguém nos perguntou se precisávamos de alguma coisa, de algum apoio. Será assim que as farmacêuticas funcionam. Pessoas apenas cobaias? Desumanamente? Mas se são essas pessoas corajosas como o meu filho que ajudam na descoberta de curas, sujeitando-se à escuridão da incerteza dos efeitos de drogas nunca utilizadas!!
...
Logo ali, no gabinete do Hospital de Dia, despedaçada cá dentro, tracei os passos a seguir. E disse-o ao David. Temos Paris! Vamos embora daqui, o mais cedo possível.
O médico ficou calado, depois de dizer que não havia, aqui, nada a fazer. Não podia ter dito isto! Assim, daquela forma! Acho que, enquanto eu tentava sorrir ao David para o serenar e lhe segurava na mão, os meus olhos gritavam por socorro. O Dr. A. deve ter visto esse pedido de socorro; terá percebido que não se pode destruir, assim, uma esperança. E colaborou comigo; disse que o Prof. Machover é reconhecido, mundialmente, pelo seu método no tratamento deste tipo de cancro. E repetiu-lho e disse-lhe que o aumento das metástases era pequeno. E o David aquietou-se e concordámos quanto ao que íamos fazer.
Paris será o nosso próximo cais. Vamos descansar uns dias; vamos, finalmente, respirar mais fundo, em Moledo. O Sérgio e a Carla irão, com certeza, ter connosco. O David vai estar com a Olga; ela saberá animá-lo. E fomos para casa, para o David dormir. Anda entorpecido! Acho que não reage; algo o está a adormecer. Vi na internet que os males graves do fígado esbatem a percepção da realidade. Será que esta lentidão que tenho notado no David é isso?
Liguei ao Manel. A seguir, liguei ao Sérgio a pedir que arranje forma de se marcar nova consulta urgente para o Prof. Machover. Ou que me digam se querem que eu marque; tenho o contacto telefónico comigo. Andei numa correria louca, a arrumar tudo o que trouxemos, enquanto o David dormia. É uma infinidade de coisas; vínhamos preparados para ficar até próximo de Novembro. Enfiei tudo em sacos, à sorte, quatro sacos enormes e pesados. Roupas misturadas com livros, com calçado, com medicamentos meus, com o que encontrava pela frente. Há os portáteis e o material de música do David que irão connosco. Quanto ao resto; não vou conseguir levar tudo.
Tanto faz! Deixo cá a roupa mais velha, os produtos de higiene pessoal, o secador de cabelo, os cremes. O frigorífico e a despensa vãoficar cheios; detergentes, as cortinas que comprei para escurecer o quarto do David. Já avisei as meninas da imobiliária que fica muita comida, fruta, bebidas e mercearia. Nem sei bem, já, o que lhes disse. Não interessa!
Andei à procura, na internet, de um posto de correios que fique próximo para ver se conseguia despachar os sacos. Carreguei com tudo (não sei com que força!), chamei um táxi e lá me enfiei num posto de correios. Aí, passei mais de uma hora a embalar os sacos em caixas, a colar endereços, a pesar, a despachar. Chegarão a Gaia quando calhar. E se não chegarem, tanto faz. Levo comigo, no avião, tudo o que pode fazer falta ao David. Amanhã é feriado, é o Dia Nacional da Catalunha e estará tudo encerrado. Tive mesmo de fazer tudo, hoje. Não queremos ficar aqui mais tempo. Quero sair deste inferno!
O David dormiu durante toda a tarde. Ainda descansava, quando cheguei. Assim, felizmente, não se apercebeu da minha agitação. Que bom que durma!
O Manel conseguiu um voo e chega amanhã, para irmos embora, depois de amanhã. Já! Talvez eu conseguisse resolver tudo sozinha, tenho uma força física que nunca imaginei ter, mas estou no limite da minha resistência. Não confio na minha capacidade de decisão. Preciso de ajuda, do Manel ao meu lado para conseguir suportar esta tormenta.
O David continua com os olhos esverdeados, sem brilho. E está sonolento. Mesmo assim, sorri, quando conversamos e planeamos o próximo fim de semana em Moledo.
Mais sons ...
Mais programas de Jazz do David.
Um de cada vez, de longe a longe.
Quero poupar!
Quero que durem e me acompanhem aqui ... durante muito, muito tempo.
O Jazz do Mundo c/ Shakti
Nas rubricas passadas falamos sobre o jazz latino e o jazz europeu mas o jazz não chegou só à América ou à Europa. O jazz também chegou a outras partes do mundo associando-se à música de cada terra.
O jazz também chegou à Índia.
Na música indiana a improvisação é uma componente essencial e portanto a sua mistura com o jazz foi relativamente fácil.
Uma questão importante que eu gostava de colocar aqui é que um programa de jazz nem sempre é fácil de fazer e a razão é simples.
Muitos do temas de jazz são bastante mais longos do que os temas habituais da música pop-rock o que faz com que haja imediatamente uma limitação nas escolhas.
Aquilo que faz com que os temas sejam longos são os solos de cada elemento do grupo porque o tema em sim é relativamente curto.
O tema que tenho para vos mostrar hoje é longo e é de um dos grupos mais famosos da world music. Este grupo é liderado pelo guitarrista inglês John McLaughlin e chama-se Shakti.
Vamo-nos conhecendo, sem nos vermos, sem falarmos olhos nos olhos ...
Vamo-nos "descobrindo", sem nos procurarmos.
As mães orfãs entendem-se, dizendo pouco. São sorrisos tímidos, doces e tristes.
São olhares que, brevemente, se ausentam. São trocas de curtas expressões que sabemos só serem possíveis da parte de quem sofreu e sofre a morte de um filho.
É da morte anti-natura.
Mas há também longos desabafos ... para dizer o que já foi mil vezes dito, sendo que é como se fosse sempre a primeira vez.
Não há manifestações de impaciência; não há constantes olhares para o relógio no pulso.
O tempo não tem pressa.
Estamos ali, umas para as outras; aceitando, sem acordo tácito, que a dor de cada uma é a maior dor.
Há um elo invisível mas forte que se instala entre nós ... porque sabemos o que a outra ou o outro sente. O quanto lhe dói aquele dia de aniversário do filho perdido; a impotência amarga perante o sofrimento físico ou psicológico do filho e que continua (talvez mais forte ainda) depois da morte dele; o pedido de ajuda a que não conseguiu acudir; aquele último olhar a desprender-se ... mas a querer ficar.
As palavras que ficaram por dizer.
Vi e senti este olhar no sorriso do Tiago Alves, numa fotografia em que está com a mãe no hospital.
Sorriem os dois!
Mas quanta dor, quanto sofrimento, quanto desespero, quanto amor se desprendem desses olhares que se despedem!
E imagino uma lágrima que cai dos olhos do Horácio ... do outro lado da máquina fotográfica ... pedindo-lhes que sorriam.