Fecho portas, abro portas, fecho portas, entreabro portas.
É este o meu quotidiano.
Estas portas isolam os compartimentos em que me encontro repartida. Raramento me sinto inteira, em cada um dos espaços em que me desdobro. Acho, mesmo, que ainda não tenho consciência de mim, do meu corpo, do meu "eu".
Vou sendo
O esforço e energia que gasto em manter-me inteira, aos olhos dos outros, desgasta e chego, à noite, exausta.
O pôr-do-sol vai aumentando a minha nostalgia.
Muitas vezes, me apetece sair da escola e não voltar.
Mas faria o quê?
O que sempre faço quando a saudade me atordoa - ver fotografias, ouvir as mesmas músicas, escrever sobre o David, ler poemas em que sinta retratadas as minhas emoções mais violentas.
São os poetas os intérpretes da vida, no que esta tem de fugaz, arrebatador e abandono às dores para as quais não há remédio.
Mas resisto... e dou as minhas aulas da noite.
Os alunos (pais e mães como eu) olham-me com doçura. E trabalhamos, com serenidade e seriedade.
Dizem-me que sou discreta no meu sofrer, que não aguentariam perder um filho...
Que mãe poderia dizer outra coisa?
Não se aguenta...mas há outros, outro filho, um marido amigo, uma nora, um neto...que esperam por mim...
Tento sorrir-lhes e digo que é difícil. Mas avançamos e obrigam-me a prestar-lhes atenção. É bom trabalhar com eles. Acho que é um sentimento recíproco.
Nessas alturas, tento trancar as outras portas para não desanimar e não desistir.
Mas, ao passar pelo portão da escola, que se fecha, já a porta do David se encontra escancarada e, aninhados, aguardando atrás desta porta, estão a saudade, os sons do passado e os medos que, logo, entram, mal vislumbram uma fresta por onde passar.
Instalam-se até recomeçar novo dia.
Afundo-me no assento do carro, braços indolentes, apatia por dentro.
Meto o CD "Resistir é vencer". O José Mário Branco canta "Do que um homem é capaz" .
Era uma das canções preferidas do David. Muitas vezes, a cantámos juntos, cada qual em sua secretária, frente a frente.
Sem interromper o trabalho.
Regresso, sem energia.
DO QUE UM HOMEM É CAPAZ
AS COISAS QUE ELE FAZ
P'RA CHEGAR AONDE QUER
É CAPAZ DE DAR A VIDA
PARA LEVAR DE VENCIDA UMA RAZÃO DE VIVER
A VIDA É COMO UMA ESTRADA
QUE VAI SENDO TRAÇADA
SEM NUNCA ARREPIAR CAMINHO
E QUEM PENSA ESTAR PARADO
VAI NO SENTIDO ERRADO
A CAMINHAR SOZINHO
VEJO GENTE CUJA VIDA
VAI SENDO CONSUMIDA
POR MIRAGENS DE PODER
AGARRADOS A ALGUNS OSSOS
NO MEIO DOS DESTROÇOS
DO QUE NUNCA VÃO FAZER
VÃO POLUINDO O PERCURSO
CO' AS SOBRAS DO DISCURSO
QUE LHES SERVIU PR' ABRIR CAMINHO
À CUSTA DAS NOSSAS UTOPIAS
USURPAM REGALIAS
P'RA CONSUMIR SOZINHO
COM POLÍTICAS CONCRETAS
IMPÕEM ESSAS METAS
QUE NOS ENTRAM CASA DENTRO
COMO A TRILATERAL
CO' A TRETA LIBERAL
E AS VIRTUDES DO CENTRO
NO LUGAR DA CONSCIÊNCIA
A LEI DA CONCORRÊNCIA
PISANDO TUDO P'LO CAMINHO
P'RA CASTRAR A JUVENTUDE
MASCARAM DE VIRTUDE
O QUERER VENCER SOZINHO
FICAM CÍNICOS, BRUTAIS
DESCENDO CADA VEZ MAIS
P'RA SUBIR CADA VEZ MENOS
QUANTO MAIS O MAL SE EXPANDE
MAIS ACHAM QUE SER GRANDE
É LIXAR OS MAIS PEQUENOS
QUEM ESCOLHE SER ASSIM,
QUANDO CHEGAR AO FIM
VAI VER QUE ERROU O SEU CAMINHO
QUANDO A VIDA É HIPOTECADA
NO FIM NÃO SOBRA NADA
E ACABA-SE SOZINHO
MESMO SENDO OS PODEROSOS
TÃO FRACOS E GULOSOS QUE
PRECISAM DO PODER
MESMO HAVENDO TANTA GENTE
P'RA QUEM É INDIFERENTE
PASSAR A VIDA A MORRER
HÁ PRINCIPIOS E VALORES
HÁ SONHOS E HÁ AMORES
QUE SEMPRE IRÃO ABRIR CAMINHO
E QUEM VIVER ABRAÇADO
À VIDA QUE HÁ AO LADO
NÃO VAI MORRER SOZINHO
E QUEM MORRER ABRAÇADO
À VIDA QUE HÁ AO LADO
NÃO VAI VIVER SOZINHO
José Mário Branco, in Resistir é Vencer, 2004
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