03 junho 2008

Fecho portas, abro portas, fecho portas, entreabro portas.
É este o meu quotidiano.
Estas portas isolam os compartimentos em que me encontro repartida. Raramento me sinto inteira, em cada um dos espaços em que me desdobro. Acho, mesmo, que ainda não tenho consciência de mim, do meu corpo, do meu "eu".
Vou sendo
O esforço e energia que gasto em manter-me inteira, aos olhos dos outros, desgasta e chego, à noite, exausta.
O pôr-do-sol vai aumentando a minha nostalgia.
Muitas vezes, me apetece sair da escola e não voltar.
Mas faria o quê?
O que sempre faço quando a saudade me atordoa - ver fotografias, ouvir as mesmas músicas, escrever sobre o David, ler poemas em que sinta retratadas as minhas emoções mais violentas.
São os poetas os intérpretes da vida, no que esta tem de fugaz, arrebatador e abandono às dores para as quais não há remédio.
Mas resisto... e dou as minhas aulas da noite.
Os alunos (pais e mães como eu) olham-me com doçura. E trabalhamos, com serenidade e seriedade.
Dizem-me que sou discreta no meu sofrer, que não aguentariam perder um filho...
Que mãe poderia dizer outra coisa?
Não se aguenta...mas há outros, outro filho, um marido amigo, uma nora, um neto...que esperam por mim...
Tento sorrir-lhes e digo que é difícil. Mas avançamos e obrigam-me a prestar-lhes atenção. É bom trabalhar com eles. Acho que é um sentimento recíproco.
Nessas alturas, tento trancar as outras portas para não desanimar e não desistir.
Mas, ao passar pelo portão da escola, que se fecha, já a porta do David se encontra escancarada e, aninhados, aguardando atrás desta porta, estão a saudade, os sons do passado e os medos que, logo, entram, mal vislumbram uma fresta por onde passar.
Instalam-se até recomeçar novo dia.
Afundo-me no assento do carro, braços indolentes, apatia por dentro.
Meto o CD "Resistir é vencer". O José Mário Branco canta "Do que um homem é capaz" .
Era uma das canções preferidas do David. Muitas vezes, a cantámos juntos, cada qual em sua secretária, frente a frente.
Sem interromper o trabalho.

Regresso, sem energia.





DO QUE UM HOMEM É CAPAZ
AS COISAS QUE ELE FAZ

P'RA CHEGAR AONDE QUER

É CAPAZ DE DAR A VIDA

PARA LEVAR DE VENCIDA
UMA RAZÃO DE VIVER

A VIDA É COMO UMA ESTRADA

QUE VAI SENDO TRAÇADA

SEM NUNCA ARREPIAR CAMINHO

E QUEM PENSA ESTAR PARADO

VAI NO SENTIDO ERRADO

A CAMINHAR SOZINHO


VEJO GENTE CUJA VIDA

VAI SENDO CONSUMIDA

POR MIRAGENS DE PODER
AGARRADOS A ALGUNS OSSOS

NO MEIO DOS DESTROÇOS

DO QUE NUNCA VÃO FAZER


VÃO POLUINDO O PERCURSO

CO' AS SOBRAS DO DISCURSO

QUE LHES SERVIU PR' ABRIR CAMINHO

À CUSTA DAS NOSSAS UTOPIAS

USURPAM REGALIAS

P'RA CONSUMIR SOZINHO


COM POLÍTICAS CONCRETAS

IMPÕEM ESSAS METAS

QUE NOS ENTRAM CASA DENTRO

COMO A TRILATERAL

CO' A TRETA LIBERAL

E AS VIRTUDES DO CENTRO


NO LUGAR DA CONSCIÊNCIA

A LEI DA CONCORRÊNCIA

PISANDO TUDO P'LO CAMINHO

P'RA CASTRAR A JUVENTUDE

MASCARAM DE VIRTUDE

O QUERER VENCER SOZINHO


FICAM CÍNICOS, BRUTAIS
DESCENDO CADA VEZ MAIS

P'RA SUBIR CADA VEZ MENOS

QUANTO MAIS O MAL SE EXPANDE

MAIS ACHAM QUE SER GRANDE
É LIXAR OS MAIS PEQUENOS


QUEM ESCOLHE SER ASSIM,

QUANDO CHEGAR AO FIM

VAI VER QUE ERROU O SEU CAMINHO

QUANDO A VIDA É HIPOTECADA

NO FIM NÃO SOBRA NADA

E ACABA-SE SOZINHO


MESMO SENDO OS PODEROSOS

TÃO FRACOS E GULOSOS
QUE
PRECISAM DO PODER

MESMO HAVENDO TANTA GENTE

P'RA QUEM É INDIFERENTE

PASSAR A VIDA A MORRER


HÁ PRINCIPIOS E VALORES

HÁ SONHOS E HÁ AMORES

QUE SEMPRE IRÃO ABRIR CAMINHO

E QUEM VIVER ABRAÇADO

À VIDA QUE HÁ AO LADO

NÃO VAI MORRER SOZINHO

E QUEM MORRER ABRAÇADO

À VIDA QUE HÁ AO LADO

NÃO VAI VIVER SOZINHO


José Mário Branco, in Resistir é Vencer, 2004

Sem comentários: