Vivo em contínuos círculos de retorno aos dezoito meses da doença do David.
Tenho escrito algumas páginas do livro sobre a doença dele e sobre tudo o que fui vivendo a par e passo e que fui registando, sempre, em diários, agendas, bocados de papel soltos. No hospital de dia da quimioterapia, nas salas de espera para exames, no bar do hospital, nos aviões, nas urgências onde passámos noites em branco, nos cafés, na escola enquanto os alunos faziam testes ou trabalhavam em grupo, na quinta do Sr. António, na cama ao deitar ... em todo o lado, fui escrevendo.
Se a quinta das Lágrimas, em Coimbra, testemunhou a morte de Inês. Todos estes locais testemunharam a minha dor e as lágrimas que, por aí, fui derramando.
Também foi uma história de amor.
Sei que não posso deixar de tentar publicar este livro. Que só poderá chamar-se "Mamã, vamos dançar!" - as últimas palavras que ouvi da boca do David, na noite de 16 de Outubro de 2007.
Se servirá a alguém na mesma situação em que me encontro, não sei.
Será escrito para mim. E sei que muitos amigos do David o lerão.
Sei que, só assim, poderei relatar o turbilhão de sentimentos da mãe de alguém que viveu com essa espada sobre a cabeça e que sempre lutou, que conseguiu ser "mesmo assim feliz" e contagiar os outros com a sua força e sentido de humor.
Os meus olhos serão o espelho onde se reflecte a luz do David.
Eu terei sido corajosa, como muitos dizem...mas quem sofreu na pele todo o desgaste, toda a incerteza, todos os medos, alternados com momentos de muita esperança foi o David.
Tinha 29 anos... Para ele, houve sempre um dia seguinte
Devo-lhe esse reconhecimento, essa homenagem.
Não foi um rapazinho qualquer.
Foi o protagonista/herói desta história que não teve um final feliz e que não começa com "era uma vez..."
Será um livro/diário, simples de ler, relativamente linear e completamente apoiado na realidade que vivemos tão intensamente e desgastante, apesar do curto espaço de tempo que abrange.
Cada página que escrevo é retirada das entranhas da memória, onde tudo está gravado com amargurada nitidez.
E demoro-me em cada dia, cada viagem, cada concerto que acompanhei, cada alegria e medos que partilhei ... cada conversa que tivemos, cada esperança que partilhámos, cada bom momento que nos foi concedido.
A cumplicidade foi total, em cada etapa.
O que não foi, explicitamente, dito, foi, muitas vezes, sugerido por olhares, por títulos e letras de canções para que eu era alertada, por um aperto mais forte na mão, por um desabafo mais triste quando se sentia alvo de incompreensão, por um olhar mais meigo, por um sorriso mais cristalino, pelo abraço de "boa noite" diário.
Será um parto lento, doloroso...
Não tem dia marcado.
Inominado
Primeiro foi o sonho,
Inopinado e louco.
Depois a audácia,
O corrupio, o sufoco.
Foi a nostalgia.
A dor da saudade.
Foram dúvidas e inseguranças.
Foi o coma da traição.
Foram os cansaços.
As olheiras. Os olhos baços.
Foram milhentas milhas
Percorridas em mil regaços.
Foi a solidão.
E, foi sempre o sonho.
Sempre a solidão e,
Dos medos o mais medonho.
Foi o bem querer!...
Apenas e só o bem querer!...
Percorri mil anos
A velocidade da luz.
Ultrapassei nebulosas.
Cabeceei asteróides
Para balizas imaginárias.
Doei os anéis de Saturno
A ninfas alucinadas.
Contornei buracos negros.
Fiz amor nas crateras da Lua
Com camisas de Vénus.
Fui amante duma marciana,
Louca e insaciável,
Loura e insociável.
Mandei para os raios que o partam... .
.....O Sol.
Passeei-me por Mercúrio...
......Crómio.
Julguei sarar minhas feridas.
Perdi Galateia.
Perdi tudo.
E, eu próprio, perdi-me
Em qualquer parte.
Luís Eusébio
1 comentário:
Isabel,no dia de hoje não pude deixar de vir aqui. Trago-te uma frase de uma mãe que sofreu e sofre como tu: "eu não perdi a minha filha. A minha filha morreu.". Também tu não perdeste o David e estás sempre a encontrá-lo e a trazê-lo até nós pelas tuas palavras. Nesta casa e no livro que vais escrevendo. Página a página. Sem voltar a página. Zé
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