28 novembro 2008

Esconderijos



Procuro-me.
Ando por aí, espalhada em gavetas, em caixas de papel, em diários dispersos.
Ando por aí, perdida nos quartos onde cheiro restos dum tempo que se fixou, imóvel, nos meus olhos, na pele.
Perco-me, por aí, por estradas e ruas que percorro, na fuga de mim própria, numa imitação de actividade e de urgência, para que não me quede em nada.
Finjo que me movo; dentro de mim, agitada, estou parada.
Páro a cada esquina da casa; onde cada foto conta uma história.
Disperso-me por entre projectos inacabados ou nem mesmo começados, apenas sonhados.
Refugio-me entre sons do dedilhar de guitarras, dum sopro de clarinete ou duma voz mais rouca.
Sigo, com os olhos perdidos, o rasto branco dos aviões que rasgam o céu amarelo do lusco-fusco.
Ainda, nos vejo, em cada um, cansados mas persistentes na busca duma brecha no destino.
Refugio-me nesse teu "Redondo Vocábulo", numa sala de espera..., nuns degraus de um quarto de danças, onde a fúria cresce, ... clamando vinganças.
Ando por aí, num tempo e espaço sem nome.
Parti-me em mil pedacinhos de dor e lágrimas que vou espalhando, dia a dia, por aí.
Nada mudou.
Vejo a distância separar-nos e eu tento resistir ao curso do tempo.
Não me empurrem.
Ainda é cedo para recolher dentro do coração toda a saudade e memórias que deixaste ... dispersas, por aqui.
Por isso, ando por aí, seguindo os teus passos, as tuas imagens tão nítidas.
Procuro-me, por aí.

23 novembro 2008

"Navegar é preciso, viver não é preciso." Caetano Veloso



Cansaço.
Tanto cansaço!
Cansaço pela contínua e repetida perplexidade perante os sofás vazios; perante o silêncio que substituiu a música e os teus sons; perante o lugar de alguém que se ausentou, à mesa; perante o cheiro, o teu cheiro, que se mantém no quarto que ficou vago; perante a ausência do movimento da tua silhueta ao descer as escadas à hora do jantar; perante um bengaleiro onde já não estão os teus Kispos ou a tua sacola de pôr a tiracolo; perante o espaço vazio da secretária, onde pousavas a agenda de cada ano; perante o quadro magnético da parede, onde não há mais registos de espectáculos.
Lá só escrevi - 16 de outubro "Mamã, vamos dançar?"
Mas a letra é a minha.
A forma da tua letra, tenho-a desenhada na mente.
Letra vincada, letra um pouco torta, um pouco infantil, letra de quem escreve com a mão esquerda.
Embora tocasse guitarra com a direita.
Numa constante dualidade - ingenuidade e auto-confiança.
Ando cansada de levar cada dia ao fim do dia.
E não me revejo na que vejo que era antes.
No tempo de lá, a outra era uma fera que lutava, do nascer ao pôr do sol, pela sua cria. Decidida, silenciosa, risonha até ao escuro da noite.
Esta,
a que acorda perplexa para dureza da vida,
é um animal ferido de morte
que se esconde em si,
que se protege dos olhares, para lamber as feridas.
Até ao amanhecer.
Onde, antes, era o anoitecer.





Fui envenenado

Fui envenenado pela dor obscura do Futuro,
Eu sabia já que algo se preparava contra o meu corpo,

agora torço-me de agonia

nos versos deste poema.

Esta é a terra outrora fértil que os meus dedos dilaceram.

Os meus lábios são feitos desta terra,

são lama quente.

Vou partir pelo teu rosto para mais longe.

A minha fome é ter-te olhado

e estar cego. Agora eu sei que te abres para o fogo

do relâmpago.

Tenho a convicção dos temporais.

já não sei nem o que digo nem o que isso importa.
Guia
dos meus cabelos rasos, da melancolia,
da vida efémera dos gestos.
Nesse dia fui melhor actor do que a minha sinceridade.


A cesura enerva-me no estômago.

Cortei de manhã as pontas dos dedos mas sei já que

elas crescerão de novo a proteger as unhas.

Talvez a vida seja estranha.

talvez a vida seja simples,

talvez a vida seja outra vida.


A linha branca da Beleza é a minha atitude que se transforma.

A violência do sono sobe

sobre o meu conhecimento.


Fui algures um horizonte na secessão das pálpebras.

Nuno Júdice

18 novembro 2008

Não sinto!




Quase sem pensar, sei, ao acordar que é de dezoito o dia.

Quase sem pensar, sei que as forças, neste dia mais do que nos outros, vão soçobrar.

Este zumbido na cabeça aumenta e tudo à volta se resume a sombras sem cara que passam por mim.

As vozes que ouço vêm de longe e não lhes entendo o significado, embora responda.

É assim que quero andar, porque só assim consigo avançar.

Sabendo que é por um filho que parte, a cada novo dia, e deixa atrás de si uns olhos que o procuram...

As luas passarão e eu continuarei à procura.
Dezembros seguidos de Janeiros e mais outro Abril e outro e outro; não vão desistir os meus olhos de procurar.
Uma feição, um som, uma cor de olhos, uma gargalhada, uma certa forma de andar,um sorriso e uma tristeza no olhar...

Em vão!

Mas não deixam de procurar.

Faço-o sem pensar.

Hoje.

Quero que não me perguntem nada.

Não saberei responder...

Que não me consolem.

Não está nas vossas mãos...

Que não tentem convencer-me de que vai mudar.

Não vai, seguramente...

Que não olhem para os meus olhos vermelhos de chorar.

Não os sinto...





PARA DENTRO

Como serão as entranhas sem filho
Perdido
Despido de cá e lá
Lá longe no Mundo
Andar de andarilho
Como será
Óh como será

-.-

Como será o vazio sem sentido
Sentindo-o comigo
Sem ver o que sinto
Ao vê-lo despido
Sem querer o castigo
Como será
Óh como será

-.-

Olhando para dentro não sei o que digo
Se tudo o que sinto e trago escondido
Neste labirinto
Perdido e que finto
Sem dar-se por extinto
Como será
Óh como será

Jaime Latino Ferreira
Estoril, 17 de Novembro de 2008

17 novembro 2008

Uma certa forma de prisão




Não.
As minhas ausências temporárias não significam que ande bem ou, mesmo, melhor da saudade que tomou conta de mim.
Não se melhora duma saudade desta dimensão.
Apenas me absorve de tal modo que até escrever se torna, já, inútil.
Nem as fotografias, nem as músicas, nem os textos, nem as palavras ou os gestos mil vezes recordados, nem os diários me serenam.
Nada abranda e, a cada momento de inacção, me sinto perto de novo e cada vez mais fundo precipício, próxima de desistir, de me afundar, de cruzar os braços...e chorar.
E, então, choro salgado. É como se toda a água do mar onde te deixei me percorresse os olhos e brotasse sempre e sempre e sempre.
Faltas-me ... e é tudo.
Nada a perceber ou compreender ou esquecer.
O tempo corre, mas eu permaneço entre telas brancas e virgens que nada conspurca.
Perante os meus sentidos, debruçados para dentro, continuam a passar as sequências dos dias e dos caminhos que percorremos; continuam a desenrolar-se os combates que travámos; continuam a sorrir tenuemente algumas boas novas que nos empurraram para a frente; continuo a afundar-me em cada ilusão, logo e cada vez mais cruelmente, desfeita; continuamos a apertar as mãos num acordo tácito e mudo de que vai ser preciso ter coragem.
E tivemos tanta coragem; tu tiveste tanta, tanta coragem ... a chegada é sempre igual...

Nestes últimos dias, tem-me vindo à mente uma conversa brincalhona que o David tinha comigo.
Dizia-me, ele " Apesar de mãe galinha, portaste-te muito bem quando o Sérgio saiu de casa. Não choraste, não fizeste "cenas". Como eu passo o dia por aqui, contigo, vai custar-te muito mais, quando eu sair. Vai-te mentalizando!! Está a chegar o meu dia!"
E sorria-me com ar gozão!
E chegou esse dia.
E nada foi como sonhara.
Ficou prisioneiro, aqui.
E eu com ele, com os sons da música dele.

13 novembro 2008

Diário


Óleo da minha amiga Lucília Figueiredo


Terminei o livro

diário

percurso da tua doença

nossa vivência

da tua coragem

da minha luta

do teu carinho

da minha secura de olhos

das noites em branco

das mãos que se uniram

dos teus passos determinados

da música sempre presente

de desentendimentos

de calor humano

da solidão

de um convite para dançar

já fora do nosso tempo

da libertação no mar.


Não sou capaz de o reler... Para já!


Fio

No fio da respiração,
rola a minha vida monótona,
rola o peso do meu coração.

Tu não vês o jogo perdendo-se
como as palavras de uma canção.

Passas longe, entre nuvens rápidas,
com tantas estrelas na mão...

— Para que serve o fio trêmulo
em que rola o meu coração?

Cecília Meireles

11 novembro 2008

Corredores nocturnos




Deserto estava o pátio à noite, no escuro frio de Novembro.

Sem os risos, sem o tilintar de copos, sem os sons do David oferecidos ao homenageado, sem os gestos de ternura imensa, sem as suas gargalhadas cristalinas verdes dum sonho ... talvez concretizável.
Onde se esconderam os raios de sol, no entardecer desse Julho distante?
Deserto continuou, pela manhã iluminada pelo sol tímido deste Outono.
Deserto ficará e silencioso e repleto de palavras mudas de saudade estrangulada.
Não há cores, nem sons, nem passos que o percorram.
Nem mais gestos de ternura.

Quedo-me na luz que se apagou.
Olhos fechados, afundada no escuro.
Onde estou que não me vejo?
Percorro corredores nocturnos e as imagens esfumam-se, no pátio deserto.
As lágrimas...




DESERTO


Seco

De areias escaldantes

Que enregelam pela noite

Filtra-se na mágoa

De um lugar granítico

Pátio de um desnorte

Que avança às arrecuas

Perdido de uma mão

De outra querida

Em brasa infernal

Que afinal

Sustém o porte

E como dantes

Interroga como ser

O que tu cantes

-.-

Canta Amiga minha

e não te espantes

-.-

Jaime Latino Ferreira
Estoril, 10 de Novembro de 2008

09 novembro 2008

Um pátio deserto



O tempo, o meu tempo, é de avanços e recuos contínuos.
Não chego a saber se avanço mais do que recuei ou se me mantenho no mesmo patamar de sempre; naquele tempo difuso e incerto em que me vou movendo.
Movendo lentamente para não me magoar; com passos cautelosos porque tenho medo; ansiosamente porque não sei onde repousar; movendo, sempre, muito muito lentamente porque não me quero afastar daquela mão poisada na minha.
Cada dia surge como um tempo que só se define ou redefine, no seu termo.
Cada dia, há uma lágrima que não seca e arranha os olhos que já não ficam vermelhos de chorar, quando, ao deitar, olho para aquela foto em que o David dorme sereno, entregue à confiança que depositava na mãe e que não o conseguiu proteger...
E confirmo o rasto dos nossos passos.
Revejo os olhos; os meus e os dele.
Ele sabia o quanto eu me sentia desesperada por não o conseguir ajudar.
Lia-lhe nos olhos essa tristeza pela tristeza (nem sempre disfarçada, afinal...) da mãe.
"Só me custa por ti..."

Este fim de semana foi tempo de recuar; de regresso à Casa de Sampaio, onde o David foi convidado de honra do seu amigo do peito (quase pai, como o David dizia) Simas, na festa de aniversário dos seus 60 anos.
Uma vaga de tempo passou; já não o conto; apenas o sinto.
Estavam, novamente, os mesmos amigos dos almoços de grupo moledense.
Encostei a cara à janela, para olhar para aquele pátio de granito minhoto, escurecido pela falta de luar...
Vi-o lá, vi-me lá, vi-os todos lá, naquele fim de semana de Julho, antes de partirmos para Barcelona.
Havia uma corrente de esperança, unida à volta do David.
Todos os adoravam e admiravam.
Tinha que correr bem "Porque há coisas que não podem acontecer
Pensávamos que seria a nossa âncora.
Foi o nosso Inferno.

Dormi no mesmo quarto onde o David dormiu, dessa vez; ainda confiante.
Barcelona seria o nosso porto de abrigo e, depois, cais de partida.
Ontem, o pátio estava deserto, cinzento e frio.
E recuei no tempo, ali deitada no escuro e no silêncio da noite
Regressei ao inferno.




TEMPO

Eu podia dispender o meu tempo em muitas coisas e em algumas o tento conciliar.
Podia dizer para mim que na inconsolável dor da Isabel não valeria a pena dispendê-lo já que ela é um dado adquirido mas prefiro juntar a minha voz à do David e reforçar com ele a tónica que A faz ouvir, olhando para as suas recordações vivas e dispersas por aí:

"Então, mamã, avança! Há tanta coisa interessante p'ra fazer. E tens tanto tempo. Não vais ficar aí sentada, pois não?"
Sem me deixar acorrentar ao tempo, isto é, sem ficar preso ao passado e ainda que dele seja presa, sem me virar ao futuro com medo de poisar mas esvoaçando por aí criando um elo, por mais imperceptível que seja mas um elo que ligando passado ao futuro me permita evoluir e poisar, dinâmico, numa relação que, se ao tempo não pode deixar de estar ligada, connected, não esteja, porém, a ele acorrentada, subjugada, escravizada.

Isto, na relatividade da nossa circunstância espaço/temporal!

Então, Querida Isabel, dê tempo ao tempo, invista nele, não adianta muito correr nem ficar excessivamente parada, esvoaçe e poise, dê tempo à respiração como o faz em A Casa da Venância, olhe nos olhos, olhe o Seu filho David nos olhos e continue como o faz na Sua vida quotidiana e em Pintada de Fresco, no projecto do Seu doutoramento, que o tempo até pode concorrer, concorrerá estou certo (!), a Seu favor!

Logo porque sabe, é a minha Amiga que o escreve, o que o Seu filho gostaria que fizesse como o faz!

Logo porque foi, seguramente, a minha Amiga que lhe incutiu isso!!

Logo porque o sabe embora Lhe possa, hoje, custar a fazer!!!

Eu podia dedicar o meu tempo a outras coisas e não o conciliar, também, com o Seu ...

Mas concilio-o e não o dou como perdido!

Sabe, Querida Isabel, o meu porquê?

Porque se de algum modo, na Sua pessoa e no Seu sofrimento eu Lhes poder instilar alguma cor adicional sei, sei que numa pessoa, na Isabel que seja, desculpe-me (!) e que nem conheço pessoalmente (!), também a estou a instilar, a colorir o Mundo inteiro!

Por que num, numa se vê o todo e no todo está o um!!

Porque na Minha Querida pode estar, está o Mundo inteiro e se nele nos limitarmos a instilar o sofrimento não o poderemos redimir!!!

Não poderemos inverter ou inflectir todos aqueles sinais que O parecem, ao Mundo, conduzir à irremediável perda ...

As pessoas, as pessoas concretas, não se mobilizam, apenas (!?), pelo sofrimento.

Jaime Latino Ferreira
Estoril, 8 de Novembro de 2008

07 novembro 2008



É este o olhar que me sossega, ainda agora ... passado tanto tempo!
Só nele, encontro força para olhar em frente.
Quando tudo me parece vazio de sentido ou tudo pesa demasiado.
Olho as fotografias espalhadas pela casa e sei que me dizem "Então, mamã, avança! Há tanta coisa interessante p'ra fazer. E tens tanto tempo. Não vais ficar aí sentada, poi não?"
Tempo, ... sempre o tempo a comandar todas as vidas, a minha vida, sem olhar para o lado; sem ver quem leva arrastado, atrás de si.
E eu, agora, aqui, sentada acorrentada ao tempo.
Olho estes olhos que falavam...
Sabia sempre o que diziam!
Alegria, amargura, cansaço, ilusões, sonhos...
Sempre soube o que diziam.

Não passou

Passou?
Minúsculas eternidades
deglutidas por mínimos relógios
ressoam na mente cavernosa.

Não, ninguém morreu, ninguém foi infeliz.
A mão- a tua mão, nossas mãos-
rugosas, têm o antigo calor
de quando éramos vivos. Éramos?

Hoje somos mais vivos do que nunca.
Mentira, estarmos sós.
Nada, que eu sinta, passa realmente.
É tudo ilusão de ter passado.

Acordar, viver

Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.

Drummond

Ouvi-a sozinha e cantei um bocadinho.

in Casa da Venância, Isabel Venâncio



UM BOCADINHO


Ouvi a cantiga

Pairava no ar

Chorei de mansinho

Sem a conspurcar

-.-

Murmura o que diga

Ondula a rodar

Era um novelinho

Que queria fiar

-.-

Cantava uma espiga

Brilhante a suar

Cantei-a baixinho

Por tanto a amar

-.-

Colhi-a há quem diga

Deitei-a ao mar

Regressa ao cantinho

Por tanto querer dar

-.-

Jaime Latino Ferreira
Estoril, 6 de Novembro de 2008

06 novembro 2008

"A verdadeira medida de um homem não é como ele se comporta em momentos de conforto e conveniência, mas como ele se mantém em tempos de controvérsia e desafio"
Martin Luther King


Hoje, ao acordar, a primeira coisa que fiz foi ligar a televisão.
Raramente, ligo a televisão; a não ser à hora do telejornal.
No entanto, hoje, foi o que fiz...
Acordei com a urgência de ter que saber quem era o novo presidente dos E.U.
Na noite anterior, deitei-me tarde, com uma já anunciada vitória de Barak Obama.

Não sei o que se passou na minha cabeça, durante o sono, mas tinha uma urgência enorme em saber o que se passara...para dizer ao David.
Sabia que ele iria pular de alegria, com a notícia...
Ainda houve tempo para ele acompanhar as campanhas...
Ainda houve tempo para preferir o Barak Obama.

Não houve tempo para ver a mudança na história.
Ficou do lado de lá, como diz, hoje o Rui Tavares, no Público.

Eu fiquei contente, senti-me emocionada porque esta vitória me fez acreditar que milhões de pessoas, ainda, têm um sonho.
Ainda é possível acreditar...
No entanto, uma imensa nostalgia, tomou conta de mim.
O não ter o David, aqui, deste lado de cá.
Ele seria o mais entusiasta; provavelmente, deitaria uma lágrima de alegria porque era um sonhador.
Era de sonhos que se alimentava, em cada dia que viveu e conviveu com a doença.

E este é o meu dia-a-dia.
Ter o David aqui dentro, não o podendo tocar por fora.
Sentir o que ele sentiria, não o podendo partilhar.
Vivo, através do olhar dele; dos sonhos que eram dele mas já não são os meus porque se desfizeram em lágrimas.
Junto do mar.
Há um ano, em Novembro, libertei-o no mar de Moledo.
Acreditei que o libertava porque, assim, tinha que ser.
Ele gostava do mar; tinha ido até ao areal, alguns dias antes de morrer.
Libertei-o, debaixo de um pôr-do-sol do sol estranhamente bonito e com as gaivotas por perto.

Fiquei eu aprisionada naquelas ondas.
Os meus dias ondulam, também, ao sabor da tristeza e da saudade.
Regresso, continuamente, àquela rocha, sem me deslocar.
Não é preciso.
A distância que nos separa é fictícia, demora o tempo de um abrir e fechar de olhos a percorrer.

Hoje, acreditei, por um minúsculo espaço de tempo que ia dizer ao David que o Barak Obama era novo presidente.
Apenas, um minúsculo espaço de tempo.
Antes de acordar...mesmo.

Se o David estivesse do lado de cá da História, talvez ouvíssemos e cantássemos em coro a canção " Tanto Mar" do Chico Buarque.
Ouvi-a sozinha e cantei um bocadinho.


Letra "Tanto Mar":

Sei que estás em festa, pá
fico contente
e enquanto estou ausente
guarda um cravo para mim.
Eu queria estar na festa, pá
com a tua gente
e colher pessoalmente
uma flor do teu jardim.
Sei que há léguas a nos separar
tanto mar, tanto mar
sei também que é preciso, pá
navegar, navegar.
Lá faz primavera, pá
cá estou doente
manda urgentemente
algum cheirinho de alecrim.

Letra "Tanto Mar II":

Foi bonita a festa, pá
fiquei contente
'inda guardo renitente
um velho cravo para mim.
Já murcharam tua festa, pá
mas, certamente
esqueceram uma semente
nalgum canto de jardim.
Sei que há leguas a nos separar
tanto mar, tanto mar
sei também como é preciso, pá
navegar, navegar.
Canta a Primavera, pá
cá estou carente
manda novamente
algum cheirinho de alecrim.

04 novembro 2008

É assim...



.....Isabel, seguramente, Ela também se sente inteira na e com a Sua dor.
A dor do Seu amado filho.

Jaime Latino Ferreira
Estoril, 3 de Novembro de 2008




Tem razão quando diz que me sinto inteira com a minha saudade e tristeza.
Estranhamente, é assim.
Não é masoquismo, claro...
Fazem parte de mim; incorporei-as.
Quando me dizem "Isso vai passar ou aliviar..." e eu contraponho, dizendo que não, processa-se um diálogo algo surrealista.
Como se me estendessem, numa bandeja, a cura para este mal e eu não a aceitasse.
Teimosia, minha?
Não há cura para a minha tristeza.
Nunca haverá.
Ninguém pode prometer o que não tem!
O David levou uma parte de mim, que não volta.
Nunca se volta a ser quem se era, quando um filho nos deixa
assim, desta maneira abrupta
dolorosa para ele
e para a mãe.

Haja, ainda,
dias bons,
um sol luminoso na praia de Moledo,
neto amoroso e de olhos sorridentes,
filho timidamente doce,
nora delicada e dedicada,
marido amigo e paciente

.... o David
não volta
um filho doce, amigo, meigo
abandonou a casa
sem o querer.
Foi obrigado a deixar projectos,
a vida
muita vida.
Friamente.
Sem margem de manobra...

E nada volta a ser o que era.
Haverá sempre uma tela de saudade
interposta entre mim
e o mundo.

Não está na mão de ninguém
restituir-me
o que perdi.

Não está na minha mão
aceitar ou não.

Choro, aqui?
Choro.
Continuarei a chorar?
Sempre.
Faz parte de mim.
Aceito a dor, embora não a cale.
Estranha dor esta
que dói,
de que me lamento,
mas que não quero que me abandone.

Esta dor é o que me resta do David.

E não vai passar.
Nunca.
Vive comigo...
Esta dor
Sou eu.


02 novembro 2008

Nunca mais



A memória é uma coisa espantosa.
Há sempre qualquer coisinha e sempre uma coisinha diferente que me traz o David e o torna mais vivo.
Hoje, aconteceram duas dessas coisinhas que pareceriam inócuas a quem presenciasse, de longe, as cenas mas que para mim foram o reavivar de cenários antigos.
Antigos... Estranho esta palavra...
De manhã, não muito cedo, saí para ir comprar o Público e pão. Fui ao Corte Inglês que fica perto e posso estacionar sem pagar.
Ao aproximar-me, reparei que uma condutora estava com alguma dificuldade em sair de marcha atrás, do largo da igreja de Mafamude.
Vinha a presenciar aquilo, já de longe.
Ninguém deixava entrar a pobre da condutora.
Foi então que ouvi, nitidamente, o David que me diria " Mamã, deixa lá passar a senhora. Eu já estava parada... E ela passou e agradeceu-me de lá de dentro...
E revisitei todas as vezes em que eu tinha que dizer ao David "David, não vamos deixar passar toda a gente que quiser entrar ou sair, pois não?"
Ele sorria e deixava, sempre, passar quem viesse...
Até punha o braço de fora, a mandar o condutor avançar.
E sorria, satisfeito.
E o sorriso dele acompanhou-me, hoje, por um bocadinho.
Mas, logo me provocou aquela dor duma ausência estranha que perdura.

Mais ao fim da tarde, fui à NOKIA trocar de telemóvel.
Inicialmente, escolhi um baratito porque não uso nem metade das "coisas".
A menina já me vinha entregar o telemóvel depois do trabalho todo a transferir. Perguntei se tinha conseguido manter tudo o que estava no antigo.
Disse-me que sim...
Lembrei-me de perguntar se também tinha transferido as fotos que estão no visor.
Que não; que fotos, não.
E não tinha bluetooth, portanto não seria possível transferi-las do computador.
Apercebi-me, então, de que não seria possível.
Tive mesmo de comprar um telemóvelum pouco mais caro e de lhe pedir que voltasse a fazer tudo.
E expliquei-lhe.
No visor, tenho fotografias do David e do Miguel.
Ao Miguel, posso tirar novas fotografias.
...
Ao David, não...
A realidade bate-me à porta, a cada instante.
Sou confrontada com a palavra NUNCA. No seu verdadeiro e duro sentido.

Ao David não posso tirar mais fotos.
Nunca mais...

01 novembro 2008

Estranha forma de ausência

A ausência é um estar em mim.
(Drummond)



Não será esta ausência a do próprio perante os outros?
Porque está , somente, em si. Porque se ausentou...

Se falo de ausência, é ao David que me refiro. Eu estou presente ... mesmo quando não estou. Vagueio entre cá e lá.
Entre uns olhitos grandes, alegres e negros e uns olhos grandes, tristes e verdes.
Entre as recordações e o aqui.
As recordações são sempre más, de maior ou menor angústia.
As boas recordações são as mais difíceis; torna-se ainda mais penosa a ausência do meu rapazinho. Fazem-me sentir ainda mais o que perdi.

Por estranho que possa parecer, prefiro as recordações mais tristes porque são as que me "dizem" que tudo se passou na hora certa.
Se é que, alguma vez, se possa dizer que há (houve) uma hora certa para a morte de um filho.
No entanto, é isso que se passa.
É o que continuo a fazer...

Mesmo agora, é só o David que me interessa; o continuar a ver, através dessas recordações mais tristes, que o David não se apercebeu.
E que foi bom para ele; ao menos isso, na morte; já que, na vida, sofreu.

Naqueles dias (ontem?), apesar do não estar em mim (ou estar exclusivamente para ele), da dor das entranhas, do terror pânico, da certeza de que o nosso tempo a dois corria e não voltaria mais - o adormecimento que lhe vi; o lento afastar-se de mim que presenciei, os últimos sorrisos que partilhei, sob aquele estranho e quente sol de Outubro, dizem-me que foi bom assim.
Foi bom para o David que fosse assim.
Tento imaginar (ainda agora, aqui) que o David acordou daquele sono prolongado, algures, onde os nossos sorrisos, as nossas conversas a dois continuam para ele.
Onde há palcos e luzes e música e amizade e cultura.
Aqui, resisto sem ele.
Mas eu não conto.
Por isso, sinto que as piores recordações são as que me ajudam a suportar a ausência dele, porque foi o melhor para ele.
Não para mim...
Nunca para mim ... mas eu não conto.
Nem agora a minha saudade conta.
Só conta que tenha sido melhor para o meu rapazinho.
Mesmo não existindo ele já, nem aqui, nem agora.
Existe dentro de mim, numa certa forma de ausência estranha.
Mas eu não conto...