A pulsão que me traz aqui acorda comigo.
Às vezes, nem sei bem o que escrever. Saber, sei... mas pouco acrescentaria a tudo o que sinto.
A intensidade do que sinto aumenta, à medida do passar do tempo.
Ando devagar, com receeio de me perder.
Canso-me de vozes que me atordoam e olho sem perceber exactamente o significado do que vejo.
Por isso me quedo aqui, várias vezes ao dia. Este é o meu porto seguro, onde nada me é estranho, apesar de saber que nada do passado volta.
Encontro-me nas fotografias do David, nos sons dele e no que escrevia.
A vida, lá fora, é tão inesperada.
Aqui, existe um quarto chamado saudade, com o teu cheiro que persiste e é aqui que me resguardo.
Ainda não estou, inteira, pronta para o futuro.
E que medo tenho dele! Agora, sei (dolorosamente aprendido) que nada de muito bom o futuro pode trazer que não seja, mais dia menos dia, desfeito por uma rajada de vento agreste mais forte.
Fiquei assim, céptica e fechada neste casulo, onde construí o palco em que me movo e vivo.
Venho, de vez em quando, até à boca de cena...
Este é um dos textos do David que, hoje, voltei a ler, enquanto rabisco, com muita dificuldade, mais uma página do livro "Mamã, vamos dançar!"
Eu não falarei das facetas David. As minhas palavras dizem pouco... talvez as dele digam mais.
Preciso de tempo para as colocar aqui.
Autocarro de Sonhos
Todos os dias passava por ele. O autocarro 9 que tinha como destino Sonhos. A primeira vez que o vi, tinha eu uns singelos 10 aninhos, andava na quarta classe. Ainda me lembro, ia para a escola, como todos os dias, mas, nesse dia, tive que fazer um percurso diferente. Esse novo percurso fez com que eu me encontrasse com aquilo que viria a influenciar todo o meu percurso de vida. Aquilo que hoje sou devo-o em parte ao 9. A partir daquele dia passei a ir para a escola sempre por aquele caminho. Ao primeiro olhar, não acreditei mas, logo de seguida, vi que no letreiro do autocarro estava mesmo escrito “sonhos”. Todos os dias passava por ele; às vezes, até duas vezes no mesmo dia. Isto durou anos; mesmo quando eu já andava na faculdade, tentava passar pelo 9. Ainda hoje, o autocarro está na minha vida. No entanto, só fiz uma vez a viagem. Foi aos 18 anos, quando tirei o meu passe. Queria experimentar, assim como qualquer jovem quer experimentar um charro ou outra porcaria qualquer proibida; o desejo era o mesmo. Queria saber se algo poderia ocorrer numa viagem de um autocarro que tinha como destino uma localidade com um nome invulgar. Queria experimentar, porque sempre me deixei enlouquecer com os sonhos e com tudo o que eles representam. Queria viajar naquele autocarro, queria saber se, ao viajarmos nele, éramos mergulhados em sonhos inimagináveis, impossíveis, sonhos etéreos fora do contágio, da influência do real. A vida sóbria e real afecta os sonhos que todos temos; dá-lhes um toque mundano e banal. Eu não queria esses sonhos, esses podia eu ter à noite enquanto durmo, como todos. Não, eu queria outros sonhos, outras viagens. Nesse dia não tive aulas à tarde e podia muito bem ocupá-la como eu quisesse porque também não tinha de estudar. Era a altura perfeita para fazer a viagem do 9. Quando cheguei à paragem não tive de esperar, ele já vinha a caminho. Era previsível; eu já conhecia perfeitamente o horário do autocarro de sonhos. Estava extremamente nervoso, todos os meus movimentos eram percepcionados e sentidos; desde o subir para o autocarro até ao sentar num dos bancos. Vivi todo aquele momento, perfeitamente consciente e acordado. Cada segundo era precioso. Vivi aquela viagem com a mesma tensão que um condenado à pena capital vive os últimos momentos de vida. Durante toda a viagem estive sóbrio e não sonhei, penso eu. Ou então, sonhei exactamente comigo a fazer aquela mesma viagem de autocarro. Pensei nos sonhos e no sonhar, reflecti sobre tudo o que é onírico. Reflecti na necessidade de sonhar e largar, por momentos, a realidade que nos prende. Os sonhos são aquilo que nos torna únicos e individuais. Um sonho é composto não só de experiências reais desorganizadas como também de um toque pessoal da nossa inconsciência. E essa, é só nossa. Depois da viagem de ida e volta, cheguei à conclusão que para sonhar eu não precisava de nenhum autocarro, nem mesmo daquele. Percebi que para sonhar basta uma referência, algo que preencha a nossa vida. O 9 era apenas mais uma referência para sonhar como muitas outras coisas. Cada um de nós tem a sua referência, qualquer que seja, mas tem. Até pode ser a mesma para várias pessoas, porque o toque pessoal o permite. Quantas pessoas não haverá que viram o 9 passar pelas suas vidas? Devemos ter sempre uma referência. Não posso crer que haja alguém sem qualquer referência. Se houver, que viaje no 9. Para mim o 9 não foi só uma referência, foi uma influência avassaladora, um marco determinante, na minha vida. Graças a ele, hoje escrevo histórias, contos, experiências e, claro, sonhos. E tenho música dentro de mim. Costumo até dizer que sou um escritor de sonhos. Não seria nunca assim se não fosse o autocarro de sonhos.
David Sobral
Dezembro/1999