31 março 2008

Luz a mais


Esta nova luminosidade dos dias cega-me e não saio de casa.
Fico suspensa dos dias em que a vida cessou. O Porto brilhava debaixo dum sol triste.
Não há nada lá fora que me interesse e esta luz entristece-me. Gostavas destes dias cheios de sol fresco e longos; era como se as tuas energias se renovassem e arregaçavas as mangas da camisa.
Não, não gosto desta luz.
E, hoje, acordei triste...com tremuras nas mãos e o coração apertado.
Vou viajar.
As últimas vezes que viajei foram sempre na tua companhia e foram viagens tristes, de torturante ansiedade. Porto - Paris - Madrid - Porto - Barcelona - Porto - Barcelona - Porto - Paris - Porto.
Fim de linha.
Outras viagens foram sendo e ficaram, para sempre, adiadas.
Por isso, esta melancolia sempre que vejo um avião riscar o céu.
Será que vamos lá, eu e tu, "firmes como rochas", num outro tempo paralelo?


Fluir

Talvez em ti acabem hoje todas as nascentes,
e nas rugas que, numa e noutra face,
esculpiram o medo e a sabedoria,
se possa ler em comovido olhar
o princípio, o meio e o fim desse caudaloso
fluir que outrora chamámos vida.

Talvez agora, tal como ontem e sempre,
comece a própria morte,
aquilo que nos devora,
aquilo que nos convoca para o silêncio e para
a mão que escreve, sonâmbula e feroz,
estremecendo.

José Agostinho Baptista

30 março 2008

Os dias passam


Mas não passo pelos dias. Todos me parecem iguais e cada vez mais longos.
Durmo até tarde para que durem menos...
Mais umas férias da Páscoa passaram e não sinto que sejam férias. De quê?
Anda tudo desfocado.
Dizem-me que me devo esforçar por esquecer.
Não percebem que esse esforço me leva a pensar ainda mais em ti!
As imagens, que tenho sempre presentes, são demasiado intensas e impossíves de desfocar. Surgem em contínuo rodopio.
Portanto, não faço esforço nenhum. Aguardo.
Vivo porque se vive automaticamente, sem pensar como é viver.
E penso em ti, porque pensar me leva sempre a ti.
Não há saída de emergência...
Espero um sorriso de criança que não olhe para os meus olhos inchados de chorar.

Mas há sempre um poema.


Tarot

Venho dizer-te, por fim,
na periferia das cidades inventadas,
que no livro desta geografia se lê apenas
uma página,
onde alguém descreveu a dolorosa hora
dos naufrágios.
Grito ainda,
com a rértia de ar concedida aos meus
pulmões,
grito o primeiro nome dos homicidas do
amor.
Procuro, em vão,
o cristal ardente que na garganta me
torturou,
frase após frase,
destruindo a bondade e a luz que os
deuses me tinham destinado,
quando as mãos lançaram as cartas sobre
a mesa.

José Agostinho Baptista

28 março 2008


Foi tarde de me passear por ti, pelas tuas fotografias, pelos teus textos, pelas tuas luzes, pela tua música.
Há um ano, ontem, estreavas o concerto "João", com a tua LUZ.
Estávamos lá todos...até a tal prima que tanta dor te traria!! Não via como a vida estava a ser madrasta para ti.
Mas, há um ano, estavas feliz!
E eu aqui.


30
Já a luz se apagou do chão do mundo,
deixei de ser mortal a noite inteira;
ofensa grave a minha, que tentei
misturar-me aos duendes na floresta.
De máscara perfeita, e corpo ausente,
a todos enganei, e ninguém nunca
saberia que ainda permaneço
deste lado do tempo onde sou gente.
Não fora o gesto humano de querer-te
como quem, tendo sede, vê na água
o reflexo da mão que a oferece,
seria folha de árvore ou sério gnomo
absorto no silêncio de uma rima
onde a morte cessasse para sempre.

António Franco Alexandre

27 março 2008

Nuvens negras


Saí de casa; coisa que faço, cada vez mais, raramente.
Fui ao médico. Custa-me ir aos médicos.
Fazer exames de rastreio. Por que razão hei-de ter o que nunca tiveste?
Só me sinto a salvo dentro do círculo que construí.
A porta permanece fechada.
A minha desordem vai-se amontoando...
E, de noite, o desassossego dos sonhos.

Mas haverá sempre um poema, mesmo que eu não tenha nada a dizer.

Coração batendo sem que se ouça

Dias se sucedem
semanas se sucedem,
torvelinham
num galope célere;
como se cavalgássemos
sobre um tempo de aço
voando.

Assim a vida,
ela nos atravessa -
o ouvido zoa,
o coração dispara,
como se quisesse
saltar para
fora,
- é só o que lhe resta!

Se alguém
tenta detê-lo,
ele se altera:
toca a rebate,
dá por paus e pedras!

E quantas vezes
o coração
explode
e não se ouve
a explosão
que o sacode.

Nikolai Asséiev

26 março 2008

Sempre e de repente!


Ao longo de todos os dias, o tempo pára, de repente.
Escurece cá dentro e caio no abismo do tempo, que me leva de regresso àquele tempo que se escondia entre nós e o som da esperança.
E as imagens ressurgem.
Penosamente...


(Escrito de memória)
  1. Um pequeno depósito de incredulidade no fundo dos teus olhos.
  2. Um breve estremecimento no movimento do coração (do meu coração).
  3. A impressão de alguém olhando-te atrás de ti.
  4. Uma voz familiar num sítio cheio de gente (que só tu ouves dentro de ti).
  5. Um súbito silêncio entre as sílabas de certas palavras que fica depois a pairar perto dos lábios.
  6. A ignorância de alguma coisa que ainda não sabes que não sabes.
  7. Uma palavra só, aguardando uma palavra que basta dizer ou não dizer, abrindo caminho entre ser e possibilidade.
  8. O que não sou capaz de dizer dizendo-me.
  9. Eu (um lugar vazio) para sempre; tu para sempre.
  10. Outras duas pessoas de que outras duas pessoas se lembram.
  11. Esse país estrangeiro, o tempo.
Manuel António Pina

Somos feitos de estrelas


A vida são restos de estrelas e novas vidas virão doutras estrelas.
Porque tudo se transforma; nada se perde.
É nas noites claras e estreladas de Moledo que olho para o céu em busca duma nova estrela que tenha o teu nome.
Ainda é cedo, o percurso é lento.
É nisso que acredito porque somos todos feitos da mesma matéria.
Sofre muito quem vê só escuridão, depois do ciclo da vida.
A alma não existe; está no brilho dos olhos que me espreitam das fotografias.
A "alma" está na poesia, na saudade e na bondade.


"No tempo em que Deus criou todas as coisas,
criou o sol.
e o sol nasce, morre e volta sempre.
Criou a lua.
e a lua nasce, morre e volta sempre.
Criou as estrelas
e as estrelas nascem, morrem e voltam sempre.
Criou o homem.
E o homem nasce, morre e não volta mais.
"

Denka, Oração dos homens

25 março 2008

Entre mim e o David


Todas as palavras de amor foram ditas.
Nenhuma mágoa ficou.
Nenhum ressentimento me pesa.
Nenhum olhar foi fingido.
Nenhum remorso persiste.
Tristeza e uma imensa saudade...
É tudo o que existe!


"O Homem só se apercebe, no mundo, daquilo que, em si, já se encontra; mas precisa do mundo para se aperceber do que se encontra em si; para isso são, porém, necessários actividade e sofrimento."
Hugo Von Hofmannsthal

23 março 2008

E a saudade cola-se à pele...


Ponto de orvalho

Nem se chega a saber como
um inusitado sorriso,
um volver de olhos doentes,
um caminhar indeciso
e cego por entre as gentes,
chamam a si, aglutinam,
essa dor que anda suspensa
(e é dor de toda a maneira)
como o vapor se condensa
sobre núcleos de poeira.
É essa angústia latente
boiando no ar parado
como um trovão iminente,
que em muda voz se pressente
num simples olhar trocado.
Essa angústia universal,
esse humano desespero,
revela-se num sinal,
numa ferida natural
que rói com lento exagero.
Não deita sangue nem pus,
não se mede nem se pesa,
não diz, não chora, não reza,
não se explica nem traduz.
A gente chega, respira,
olha, sorri, cumprimenta,
fala do frio que apoquenta
ou do suor que transpira,
e pronto, sem saber como,
inútil, seco, vazio,
cai na penumbra do rio,
emerge, bóia, soçobra,
fácil e desinteressado
como um papel que se dobra
por onde já foi dobrado.



António Gedeão

19 março 2008

As agendas do David


Guardo comigo todas as agendas do David. Folheei-as todas, duas, três vezes... Em busca de sinais de dor ou sofrimento.
Não encontro e só isto me sossega.
Hoje é Dia do Pai! Dia do meu pai que fez, anteontem, 80 anos. Penso nele. Gosto de o ver com saúde, mas não sou capaz de lho dizer.
Saem-me lágrimas, em vez de palavras.
Há um ano, o David também não almoçou com o pai. Teve uma sessão longa de quimioterapia.
Na agenda dele, só há referência ao tratamento.
A página está cheia de apontamentos de desenho de luz para o espectáculo da Maria João!
Era assim que ele combatia a doença, com palcos cheios de luz.
O David indica-me o caminho e diz-me que tenho que seguir em frente, com a mesma determinação.
Mas é tão difícil.
Os dias já não são...
Tudo é demais.
Nada é de menos.
Revejo-me nos espelhos.
E já não sou quem fui.
Quem sou ou quem serei.
Um dia, não terei rumo.
Do silêncio não há eco.
Ninguém responde ao nada que pergunto.
Não perguntando, errante, sei todas as respostas.
Quero a dormência.
E que me envolva a neblina.
Ou se liberte a dor que lateja, incessante, na nuca de gelo.

18 março 2008

Passaram 5 meses!


Passaram cinco meses e eu não percebo o que, repentinamente, se desmoronou.
Tento aprender a viver com este novo mundo disforme e com o facto de só poder ver o David através de fotografias que me sorriem de cada canto da casa.
A vaga de sentimentos contraditórios que me assaltam, ao longo do dia, cansam-me e chego à noite exausta.
E encolho-me no sofá que não reconheço, numa sala que me parece estranha, numa casa assente em areias movediças.

Nada me pertence... não me revejo aqui, sentada, em frente ao prado, nem nas mesmas ruas que, ainda, percorro.
Só passaram 5 meses! Tanto tempo e, no entanto, tão pouco. Ou será tão pouco tempo e, no entanto, tanto?
Não sei.

Ouço as músicas do David. Não as escolho, ponho-as ao acaso. Na esperança de que me tragam a coragem e a força que ele tinha.
Espero o sorriso dum bébé que me aceite como eu sou, agora. Sem perguntas e sem passado!
Procuro as palavras de poetas que falem por mim.

Sobre o seu retrato

Quando a idade fizer de mim o que agora não sou;
E cada ruga me disser onde o arado
Do tempo sulcou; quando um Gelo fluir
Atravessando cada veia e toda a minha cabeça se cobrir de neve;
Quando a morte exibir o seu frio sobre as minhas faces,
E eu, a mim mesmo no meu próprio retrato procurar
Não encontrando o que sou, mas o que fui;
Duvidando em qual acreditar, neste ou no meu espelho;
Embora eu mude, este permanecerá o mesmo;
Tal como foi desenhado, reterá a compleição primitiva
E a tez primeira; aqui poderão ainda ver-se
Sangue nas faces e uma penugem sobre o queixo.
Aqui a testa permanecerá lisa, o olhar intenso,
O lábio rosado e o cabelo de cor jovem.
Contemplai que fragilidade podemos ver no homem,
Cuja sombra é menos do que ele propensa à mudança.

Thomas Randolph

17 março 2008

As minhas insónias...



Acordei sobressaltada.
De repente, pouco depois de ter, talvez, adormecido.
Regressei ao dia 13 de Outubro de 2007. É uma da tarde! Estou na urgência do Hospita de Santo António. Já não tem segredos para mim.
Mas esta ida à urgência é diferente, porque sei o que se vai passar. E eu transpiro e tenho o coração acelerado.
Entrarei, irei ter com o David que me espera no corredor... sorrirei sempre, como doutras vezes. Brincaremos com algumas "cenas engraçadas" a que já nos habituámos.
Só que, desta vez, não sairemos os dois.
Sairei só eu, seis dias mais tarde, pela porta principal, pela mão do Sérgio e do Manel.
Envolta num despertar estranho, estará sol e verei o David, mais tarde...deitado numa "chapa" metálica, onde me parece desabrigado. Na viagem que encetou, não vai dar-me a mão para me dar coragem.
Mas está bonito. E só penso num barquinho que levam as cinzas para o mar de Moledo.
Era o refúgio dele
Fico ali enquanto posso e regresso a casa. Alguém me empurra. É a primeira noite que vai passar sozinho e não haverá abraço de despedida.
Nem mão como aconchego...E eu gosto da mão dele, meiga, suave e grande, quando a esbatia sobre a minha.
E regresso. Alguém me empurra para longe dum filho doce... O tempo foi tão curto!

Mãe do David "O BOM"

Ode do Desesperado
(Egipo)

A morte está agora diante de mim
como a saúde diante de um inválido,
como abandonar um quarto após a doença.

A morte está agora diante de mim
como o odor da mirra
como sentar-se sob uma tenda num dia chuvoso.

A morte está agora diante de mim
como o perfume do lótus,
como sentar-se à beira da embriaguês.

A morte está agora diante de mim
como o fim da chuva,
como o regresso de um homem
que um dia partiu para além-mar.

A morte está agora diante de mim
como o instante em que o céu se torna puro
como o desejo de um homem de rever a pátria
depois de longos, longos anos de cativeiro.

Versão de Helberto Helder

14 março 2008

Talvez um dia...


Dizem que o tempo sara as feridas deixadas pela morte daqueles a quem queremos muito.
Não sara! As minhas feridas chamam-se tristeza, raiva, melancolia, desânimo, desconcerto e raiva, novamente.
O tempo tem passado; as feridas mantêm-se abertas e há dias em que a saudade do David me domina, por completo, e só me resta o regresso ao passado.
Ainda assim, dizem-me que sou forte!
Talvez!

Escolhi este poema.
É bonito, mesmo sendo triste.
Talvez, um dia, as escolhas mudem...
Não vale a pena espantar a tristeza. A vida é apenas o que é!


A vida da morte

Ouvir chover, não mais, sentir-me vivo
o universo convertido em bruma
em cima a consciência como espuma
por onde as compassadas gotas crivo.

Morto em mim tudo quanto seja activo
enquanto toda a visão a chuva esfuma
e, lá em baixo, o abismo onde se suma
da clepsidra a água; e o arquivo
desta memória, de lembranças mudo
o ânimo saciado em inércia forte;
sem lança e, por isso, já sem escudo,
tudo à mercê dos vendavais da sorte;
este viver, que é o viver desnudo
- não é acaso o viver da morte?

Miguel de Unamuno

12 março 2008

A morte dum filho


Ao David

Escrevo menos! Bem sei... Mas não é por falta de sentir menos a tua falta. Muito pelo contrário... Os dias são mais pesados, lentos e silenciosos. Fecha-se o círculo, neste mês de Março, dia 22.
A tristeza aumenta e não sei que escrever porque o silêncio também se instalou, mais penetrante, cá dentro.
E dói-me o peito. E é dor física. Talvez por me ter curvado tanto; a melancolia dobra-nos. Talvez por falta de ânimo para respirar com força.
Gosto, cada vez mais, da solidão; as vozes perturbam-me e canso-me dos outros, com facilidade.

Os pequenitos da escola, a quem dou apoio, são das poucas excepções. Sinto-me bem, ao lado deles; são ternos e têm aquela alegria inocente nos olhos, própria de quem sabe que tudo é eterno e tem a vida pela frente.
Mas...olham para mim e reparam quando estou triste e dizem-mo, abertamente "A professora, hoje, está triste!". Não é uma pergunta; é uma constatação.
E não tentam animar-me ou dar-me conselhos. Reconhecem a dor.
São assim e eu gosto e até lhes digo que sim, que é verdade. E trabalhamos.
Para eles, a tristeza e a alegria são estados naturais. Têm uma sabedoria feita de ingénua clarividência; reconhecem o sentimento de perda.
Quando se é adulto é que parece ser necessário convencer os outros de que devem afastar a tristeza. Dizem-no por bem...

Mas há tristezas que não se afastam, que correm (depois e sempre) no sangue, que se colam à pele, que suspiram cá dentro, que entram na pupila dos olhos e se fixam e é com esse novo olhar que vemos o mundo.
E o mundo estreita, torna-se pequeno, reduz-se aos espaços onde fomos felizes e infelizes e é num limbo que permanecemos, mesmo quando, aparentemente, saímos desse círculo para "trocar umas palavrinhas" com os outros.
Até aqueles que, sempre, fizeram parte do nosso mundo se tornam sombras, memórias, vultos doutro tempo. Do tempo em que estava inteira.

Agora, a forma do corpo, a cara e os gestos poderão ser os mesmos, mas falta o bocado de sonho, de carne e de sangue que me foi arrancado, antes do fim do meu tempo.
O tempo duma mãe que perde um filho fica em suspenso; imutável no turbilhão da dor que nos agarra, no momento em que se ouve o último som ténue duma mais ténue, ainda, respiração.
Estou suspensa, tal como me encontrei suspensa, junto daquela cama de hospital, atenta a que o meu filho inspirasse e expirasse, inspirasse e expirasse...cada vez mais devagarinho, mais lentamente...
Foi nesse espaço de silêncio que fiquei; onde o respirar é o último elo, o único fio. E que se rompe.
É nesse silêncio pesado que, ainda, vivo; num tempo que parou.
Sou uma marionete num espectáculo, presa pelos fios que ficaram e me agitam para que o público não reclame a devolução do dinheiro que pagou.
E aguardo...

"Vou onde o vento me leva e não me deixo pensar."
A. Caeiro

10 março 2008

Simulacro de vida



Já não sei o que é mais doloroso; se o desaparecimento do David, se os pesadelos nocturnos e as imagens entrecortadas que me aparecem e em que regresso ao passado e o revivo, passo a passo, sabendo o desenlace.
Nesses pesadelos, nesse "regresso" diário ao passado não há fuga, nem a esperança.
Deve ser, por isso, que se diz "Enquanto há vida, há esperança".
Agora não há vida, nem esperança. Cada dia é apenas mais um dia.

Gosto das palavras dos poetas que dizem parte do que eu sinto.


Princípios

Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.

Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez não precisássemos de viver
tanto, quando só o que é preciso é saber
que temos de viver.

Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor.

Nuno Judice

06 março 2008

A minha solidão não é uma invenção...


Ontem, a Olga fez anos. Há um ano, jantámos cá em casa. Fiz-lhe um jantar simples...tu estavas cansado porque tinhas feito quimioterapia.
Agora, a cada instante, sou transportada para o passado e revivo-o, passo a passo; dia a dia. Sei, desta vez, que a história não acaba bem. E sofro, ainda mais desesperada.
É melhor um poema do que as minhas palavras...


NUM TAPETE DE ÁGUA


Num tapete de água
vou bordando os meus dias,
os meus deuses e as minhas doenças.

Num tapete de verdura
vou bordando os meus sofrimentos vermelhos,
as minhas manhãs azuis,
as minhas aldeias amarelas
e os meus pães de mel amarelos também.

Num tapete de terra
vou bordando a minha efemeridade.
Nele vou bordando a minha noite
e a minha fome,
a minha tristeza
e o navio de guerra dos meus desesperos,
que vai deslizando p'ra mil outras águas,
para as águas do desassossego,
para as águas da imortalidade.

THOMAS BERNHARD

03 março 2008

Março


Ironicamente, Março passou a ser o mês do cancro colo-rectal...

Até nisto, o tempo esteve contra nós, contra o David; porque, quem sabe,...se os médicos estivessem mais motivados pelas campanhas, talvez tivessem mandado fazer exames mais atempados e dirigidos.
Não tenho dúvida de que o David se curaria se tudo tivesse sido diagnosticado mais cedo, antes de o fígado ter sido atingido. A força dele teria combatido a doença.
David teria vencido Golias, mais uma vez. Porque o David era um vencedor!

Mas, agora, que fazer com o vazio que ficou dentro de casa, dentro de mim, no meio dos amigos e a indescritível dor e revolta que se instalou?
Talvez o novo pequenino que aí vem me faça olhar para a vida e destape esta neblina em que me encerro.
Talvez seja possível...

Nascer de novo

Nascer: findou o sono das entranhas.
Surge o concreto,
a dor de formas repartidas.
Tão doce era viver
sem alma no regaço
do cofre maternal, sombrio e cálido.

Agora,
na revelação frontal do dia,
a consciência do limite,
o nervo exposto dos problemas.

Sondamos, inquirimos
sem resposta:
nada se ajusta, deste lado,
à placidez do outro?
É tudo guerra, dúvida
no exílio?
O incerto e suas lajes
criptográficas?

Viver é torturar-se, consumir-se
à míngua de qualquer razão de vida?

Eis que um segundo nascimento,
não adivinhado, sem anúncio,
resgata o sofrimento do primeiro,
e o tempo se redoura.

Amor, este o seu nome.
Amor, a descoberta
do sentido no abzurdo de existir.

O real veste nova realidade,
a linguagem encontra seu motivo
até mesmo nos lances de silêncio.

A explicação rompe das nuvens,
Das águas, das mais vagas circunstâncias:
Não sou eu, sou o outro
que em mim procurava seu destino.

Em outro alguém estou nascendo.

A minha festa,
o meu nascer poreja a cada instante
em cada gesto meu que se reduz
a ser retrato,
espelho,
semelhança
de gesto alheio aberto em rosa.

Drummond de Andrade

02 março 2008

Os labirintos da memória


As recordações instalam-se, a qualquer hora do dia, sem que as chame e tenho que as transpor para o papel antes que fique submersa e não consiga subir à tona.
Devo isso aos que estão comigo e vivem comigo. São a minha âncora.
Por isso, este é um Blog triste; feito só para mim, como terapia...
Falarei, até à exaustão, do David – um filho que perdi!!!
Se puder consolar alguma mãe como eu...ainda bem!


E era assim o meu filho David Sobral

Para além da paixão da música, do espectáculo e das luzes bonitas, tinha um inigualável sentido de humor, bem conhecido de todos os que com ele lidaram até ao fim.
O dinheiro, não muito, que tinha, gastava-o em música. Para ele e para dar aos amigos. O prazer dele era passear-se pelas FNAC e ouvir música.
Roupa, sapatos, camisas novas não lhe diziam nada. Era um “rapazinho” de gostos simples.
Amigos…tinha muitos. Não os posso referir todos, porque a todos cativava, como a raposinha do principezinho de Saint Éxupery, pelo cantinho do olho, pela bondade, pela solidariedade, pela entrega total.
Só não foi assim com quem não olhou verdadeiramente para ele.
Era um “rapazinho” de grandes sonhos e paixões, de grandes projectos, de grande profissionalismo na sua profissão.
No dia 22 de Março de 2006, “eu soube”, antes de saber, que o David tinha um cancro. O meu pesadelo de sempre, em relação aos meus filhos!...
Foi um ano e meio de muita coragem e grandeza impressionante da parte dele, gostava de viver e não desistia… O sonho e a música acompanharam-no sempre. Ia, de quimioterapia em quimioterapia, com a malota de CDs, para não ouvir nem ver o que se passava à volta. Não queria pensar que poderia ter que fazer o mesmo percurso longo a que assistia no caso de outros doentes que estavam, também, ali! Isolava-se num mundo paralelo, durante as quatro ou oito horas que duravam as sessões.
Era a força dele que me dava força e eu sorria com o sorriso dele. E portei-me bem. Tenho consciência disso e do desespero que escondia.
Mas tudo se foi desmantelando, dentro de mim, à medida que o tempo passava. E fui deixando de existir. Esqueci-me de como se vivia. Não descubro rotinas. Não encontro o meu espaço..
Ando a apanhar os meus pedacinhos, espalhados por aí, por todos os sítios onde estive com ele, desde Barcelona, Paris, Madrid (por causa da doença!) ... até Moncorvo ou Portalegre ou Castro Verde ou Estarreja ou Santiago de Compostela ... (para espectáculos!). Tento colá-los.
Tenho que acreditar que o David ouvia música, via palcos cheios de luz e imaginava novos projectos, quando adormeceu, depois de dizer “Mamã, vamos dançar?”.
Tenho, mesmo, que acreditar que só pode ter sido assim...