14 maio 2009

Um sorriso manso.



Às vezes, como hoje, acordo na urgência de ter que levar o David ao hospital, para continuarmos o tratamento.
Às vezes, pesa-me o que vejo à minha volta.
Hoje, morreu a mãe de um miúdo da minha escola,
a quem, por acaso,dou aulas de apoio.
Não é bom aluno,
portanto...

Não sabia que tinha a mãe doente;
não sabia que a mãe era uma jovem de 34 anos;
não sabia que esta vivia com os pais,
avós deste miúdo de 13 ou 14 anos...
Esta mãe teve o filho, ainda jovem como eu...
talvez aos 20 anos.

Às vezes, pesa o que vejo à minha volta.
Pensei na dor destes avós/pais que assistem à partida da filha;
no desnorteio deste adolescente que se faz forte,
fazendo de conta que não quer saber dos estudos;
na saudade que aquela mãe terá, já, sentido do filho,
ainda antes de morrer...

E pensei na forma, mais ou menos indiferente,
com que sempre olhei para aquele miúdo com quem contacto 45 minutos por semana,
como apenas mais um adolescente que não gosta da escola,
que não tem "pachorra" para aturar esta professora que lhe quer dar mais do mesmo...
Que mundo estranho existirá no pensamento deste pequeno/grande miúdo???
Não voltarei a olhá-lo da mesma forma;
ele encerra dramas familiares terríveis e dolorosos...
Que reconheço à distância, em caras e olhares de que imagino os contornos
Às vezes, pesa-me o que vejo à minha volta.
E regresso cansada...

E choro, ao ler
as palavras tão compreensivas,
tão ternas,
tão solidárias
do Jaime,
da Manuela,
do António...
como, hoje,
há bocadinho.

Às vezes, na sala, encosto-me ao móvel, junto à fotografia minha e do David.
Olho-a longamente; procuro vestígios de mim.
Mas não os vejo.
A que me observa do lado de lá da fotografia não reconhece esta
que a observa, daqui.
Não acredita, ainda, que seja possível que aquela cena não se repita.
Permanece, ali,
numa esperança intocável...
Com a cabeça encostada no ombro do filho,
sorriem os dois.
Um sorriso manso.

4 comentários:

jaime latino ferreira disse...

VESTÍGIOS


Os vestígios de Si
Estão aqui
Derramam-se pelo
Do David
No Seu aluno
Na família dele
Em nós
E eu imagino

E se o Seu aluno lesse
O que aqui Lhe deixou!?

Como passaria ele a olhar para Si!?


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 15 de Maio de 2009

Anónimo disse...

Ganhamos todos mais Humanidade quando comungamos do sofrimento humano e quando o sentimos como nosso...

Sérgio disse...

"E obrigam-me a viver até à Morte!
Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois, achando tudo mais novo?"

José Gomes Ferreira

António disse...

A Morte provoca a nossa perplexidade.Estamos todos naturalmente apegados aos afectos dos nossos entes queridos e parece-nos uma heresia existencial que,abruptamente,ela nos desligue dos seus laços corporais,já que dos sentimentos nunca o conseguirá.Mas a verdade é esta:quando os nossos filhos vão crescendo,as suas identidades corporais vão-se alterando e,num certo sentido,em cada fase da vida,cada um dos nossos filhos se vai transmutando fisicamente em pessoas aparentemente diferentes.A essência,essa,é,contudo a mesma:as suas almas permanecem inalteráveis a todas as transformações físicas.Que quererão estes sinais da vida dizer-nos ? E se de facto a alma sobreviver ao corpo ? Onde procurar e como contactar os nosos entes queridos ? A Morte suscita imensas questões.Uma delas pode ser a Eternidade da Vida...