21 maio 2011

Tio Rui


Ao meu tio Rui, de quem recordarei sempre um sorriso de quem está de bem com a vida.





"Devia morrer-se de outra maneira.

Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
à despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"

E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pòlen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis..."


José Gomes Ferreira







1 comentário:

Branca disse...

Olá Isabel,

Que bom recordar no seu tio a imagem de alguém que está sempre de bem com a vida, podermos recordar assim os nossos entes é como que uma graça que nos deixam, porque apesar da saudade nos enchem a vida de sorrisos.

O poema é lindíssimo como só José Gomes Ferreira sabe (o verbo no presente é porque o sinto assim, só ele para nos dar esta surrealista e bela ideia de nos transformarmos em nuvem.

Muito lindo este post.

Deixo beijinhos
Branca