Gosto de ter, por aqui, a companhia de quem me lê, pacientemente, e não se cansa do que digo.
Porque digo, sempre (parece-me) o mesmo.
É engraçado como nos afeiçoamos a pessoas que são nomes, palavras e uma foto (excepto a Nini) - Jaime, Manuela, António, Graça, Branca, F. Ferreira, Marina, Filomena ... .
Tenho-os por companheiros, jardineiros amantes de cultivar estes jardins de palavras que ganham raízes e crescem, imitando as tulipas, os cravos, os malmequeres, os meus três pinheiros, a oliveira e um ou outro carvalho.
São palavras-flores de que só alguns jardineiros mais afoitos sabem cuidar, teimosamente e dia a dia, transformando-as em sentimentos de amizade, compreensão e tolerância.
Eu escreveria, aqui, tivesse ou não tivesse amigos daí.
Continuarei a escrever aqui, haja ou não haja, um dia, quem me ouça daí.
Mas é bom sabê-los aí, a ouvirem falar do David ... de mim, daqui.
Talvez, um dia, os nossos encontros não sejam tão frequentes ...
Ou talvez continue a ser tudo, exactamente, como é.
Escrevendo sempre (mas não tão bem como o J. Ferreira crê!).
Mas sempre...
Sempre
Que me sentir mais amargurada com a falta que o meu filho me faz.
Que o vazio se instale, à noite, com o chegar do crepúsculo.
Que, à mesa, olhar para aquele lugar, à cabeceira, onde ele não está.
Que comprar um cravo vermelho.
Sempre que vir um palco iluminado.
Sempre que ouvir certos timbres musicais - os sons do David.
Sempre que ouvir alguém chamar "David!"
O parceiro que me calhou, na escola, nas aulas de substituição chama-se David.
Acho que mais ninguém reparou.
Nem ele...
Virei...
Sempre que o areal cheire a algas e a água do mar vá lamber aquela rocha em Moledo.
Sempre que a senhora da estrada tenha a tenda da fruta montada, a caminho de Caminha.
Sempre que for à Grécia, àquele mar azul e transparente; e sentir o aroma das comidas, dos temperos, dos grelhados.
Sempre que uma melancia revelar o seu interior vermelho.
Sempre que procurar algum descanso, como o David fazia, em frente à Mezzo.
Sempre que vir as guitarras dele encostadas à parede, ao fundo da sala, em Moledo,
ou guardadas, aqui em casa.
Sempre que ouça o Zé Mário Branco, o Sérgio Godinho, o Fausto, o Lenine, a Maria João, o Mário laginha, o B. Sassetti, o Alexandre Frazão, a Lhasa, a Susana Bacco.... jazz, música cigana, africana, e tantas mais, mais e mais que repousam nas prateleiras e nos gavetões do escritório dele.
Digo ao meu neto "Vá, Miguel, tira uma música para, hoje, ouvirmos." E é assim que vou tentando ouvi-las todas.
Sim , acho virei aqui...
Sempre que ler uma notícia de jornal, sobre a (talvez) cura do cancro.
Sempre que a minha gata Valquíria me dá turrinhas nas pernas.
Sempre que vejo, pendurado no bengaleiro da entrada, o chapéu com que se protegia do sol, quando estava doente.
Quando passar por um clube de jazz.
Ou me detiver em frente da montra duma loja de instrumentos musicais.
Sempre que conseguir sorrir, perante a letra dele, torta, de esquerdino, nos papéis que guardo nas minhas gavetas.
Ou vejo a assinatura dele de criança - David "O BOM" (como os heróis da B.D.)
"O BOM" (de bondoso) foi o que o irmão acrescentou ao nome que identificava o David, na chapa do hospital, por cima da cama, no quarto 24, no dia 17 de Outubro.
Ele já não se apercebeu deste gesto de ternura.
Tinha adormecido.