29 julho 2009

Agora




Houve o antes e há o depois.
Tudo diferente.
É mesmo assim...
Não sabia, porque nunca pensei nisso.
Nunca se pensa na morte (que virá) de um filho.
Bloqueia-se.
Impossível qualquer reflexão.
Rejeita-se.
Mas, agora, vejo.
Agora, sinto.
E o meu sentir é diferente.
Eu própria me espanto com o meu novo modo de estar.
Sou, de facto, outra pessoa, num corpo semelhante.
Alguém que se reconstruiu com pedaços do passado.
Alguém que se ancorou no que se faz e não no que se diz.
Alguém que não projecta o futuro.
Vive cada dia.
Alguém que se formatou para resistir, ausente, aos outros e às suas pequenas "dores".
Alguém que, onde, antes só encontrava escolhos, vê, agora, que tudo é relativo.
E suspira.
Serão penas imensas resgatadas duma dor pungente?
Valerão a minha inquietação?
Valerão, sequer, que se inquietem os outros por tão pouco?
Sou, mesmo, uma pessoa completamente diferente.
Derrotada.
Muito protegida no seu escudo moldado pela tragédia.

Serei pior? Melhor?
Pior para os outros?
Melhor para mim?
Não sei.
Diferente.
Mais lúcida.
Mais exigente.
Menos disponível.
Mais frontal.
Menos tolerante.
Mais calada.
Menos sociável.
Indiferente, perante "dores" menores deste carrocel que se chama vida.
A minha forma de ver as coisas, ... filtro-a pela "visão do Mundo" do David.
Era o nosso "filósofo de serviço".
E
Aprendi a apreciar a luz e outras cores, para além do preto e do branco.
No palco, nas pessoas, na vida.
Não aprendi conviver com a ausência dele.
Nem a suportar a saudade.



Envoltura

Só quando te apercebes é que te mexes.
Vives desenfreado, numa avidez constante
O que é esta mescla coisa, a que chamamos vida?
Quem está aí para responder sobre isto, que passa de rompante?
Que só nos seus últimos momentos é tão desejada.
Só aí nos apercebemos do quanto desperdiçámos.
Só aí nos lembramos daquela estrela que nunca alcançámos.
E, quando tudo acaba, que será que nos resta?
Será que todo este cansaço ainda presta?
Eu não quero saber...
Até ao dia em que vou ter de conhecer
A razão que nos leva a deixar de viver.

David (1995)

27 julho 2009

Aniversários




Julho 2009.
Julho de 2007.
Rupturas.
Não baixar os braços apesar de os sentirmos mais presos pela crueza da inevitabilidade.
O coração mais perto da boca.
Um castelo, construído de esperança, prestes a desabar.
Ainda não; ainda é cedo.
Só mais um pouco, aqui, ou em qualquer lugar.
Mãos estendidas a um tempo que corre.
E corre e corre...
E a areia do tempo a escorrer por entre os dedos.
E o coração, líquido vermelho, no meio de tanta dor.
Os olhos transparentes; duas crateras negras dum vulcão antigo.
Só um pouco de tempo; é o que peço.
Mas não! Tempo ... já não há.
Já não houve. Colhemo-lo todo, lentamente, sedentos, no côncavo das mãos.
Não há.
Esgotou-se ... esgotámo-nos a persegui-lo.
Parou num dia azul e quente.
Passou ... e eu fiquei, nesta estranheza que sou eu própria, dividida em dois, num tempo que não sei contar.
Dia de anos, 27 de Julho...
54 anos?
Ou apenas 2, de uma vida desgarrada do tempo?
Tu, 29!
Quem sou?
Se o tempo de mim tanto levou?
E apagou memórias doces...

Queria portas e janelas fechadas. Silenciar as vozes.
Que o céu escurecesse e fosse amanhã.
Novo dia igual aos outros, despido de emoções.
Ficar aqui, nesta casa sem portas nem janelas.
Sem ecos de fora
Distante de mim.
Tendo por companhia quem me escuta no silêncio.



Oferta de um aniversário longínquo


Eãm Lebasi (Mãe Isabel)

Nunca tive jeito para frases poéticas,
não domino o estilo,

nem a rima,

nem o verso,

nem o falar do amor,

da alegria, da injustiça ou guerras.

Mas sinto.

Eu sou assim

sem jeito para escrever.

Penso e repenso.

Mas escrever...

Nada.

A mente fica bloqueada

e a mão paralisada.


David


Você não me ensinou a te esquecer

22 julho 2009

Isto e aquilo



Mas o sossego não vem; nem a serenidade volta.
Uma barreira impede-me de ver mais além; não me importo.
Que veria? Nuvens por cima de mim e uma pesada nostalgia.
E o tempo, sempre o tempo a teimar em me empurrar por este plano inclinado do futuro... e eu a resistir; a tentar não avançar.
O tempo afasta-te e eu recuo.
Afasta-se mais e eu recuo mais.
Sem uma asa invisível para me abrigar e repousar desta viagem contínua entre este agora, a que ainda pertenço, e o antes, o quase há pouco, a que estou presa pela ordem natural das coisas.
Pertenço aqui e pertenço lá.
É possível?
Pois se é assim que vivo!

Não peço que me compreendam.
Apenas que me façam companhia...
Não peço que me consolem.
Apenas que me contem histórias, fora de qualquer moral ou sentimento de culpa.
Não peço que me apontem tudo o que tenho aqui.
Sei bem o que tenho aqui...
É muito.
Por isso, fico.
Quase inteira.
Aqui.

Embora eu me empurre, continuamente, de lá, onde me perco e me quedo, a qualquer momento de súbita saudade.

Sou isto, duas.




Ben Monder

Olá, caros ouvintes, bem vindos a mais um "jazz faz tarde".


O convidado do programa de hoje é o guitarrista Ben Monder. Este senhor é jovem mas já é uma referência para os novos guitarristas. É um inovador no que diz respeito ao som de guitarra eléctrica.

Ben Monder trabalha quase sempre como sideman e espero que ainda se lembrem do que é um sideman.
Entre muitos outros músicos e grupos, Ben Monder faz parte da orquestra da compositora Maria Schneider.
Ben já gravou discos em nome próprio ou a solo, como quiserem: Flux, Dust e Excavation são os nomes dos seus discos.

Oiçamos o Ben Monder e até logo que...jazz faz tarde.

David

15 julho 2009

Dores


Ando um pouco à toa...
É Julho; Julho de 2007; Julho de idas a Paris e Madrid e Barcelona.
Ando um pouco à toa.
Saltito de pensamento para pensamento; de agora para antes.
O meu cunhado veio do Brasil, passar uns dias de férias.
Contou que tinha visto numa das ruas de S. Paulo, uma rua de instrumentos musicais, um "sósia" do David.
O meu cunhado gostava muito do David e esta amizade era, igualmente, retribuída.
O sentido de humor era uma característica que tinham em comum.
Não duvido, portanto, das semelhanças que ele disse ter visto.
Ando tão à toa!
O David gostaria de aproveitar o alojamento do tio, no Brasil.
Adorou o Brasil quando lé foi com o Drumming e disse, muitas vezes, que lá voltaria - a boa música, a boa comida, a boa luz - apesar do calor!
Não tenho dúvidas.
Mas...ando à toa.
Não imagino o que seria eu ver alguém muito parecido com o David.
Não teria o mesmo brilho, ironia e meiguice nos olhos. Disso tenho a certeza.
Mesmo assim ... ficaria triste.
Mais triste.
Mais dorida.
A tristeza é também uma forma de dor.
A saudade é uma manifestação de dor.
Que sinto.
Mas não dói.
Ou dói muito, mas de forma diferente.
Verga-nos também.
Dói mais?
Dói menos?


P.S. Também a propósito, da dor, no blog "A música das palavras", do Jaime.
A quem desejo melhoras.


Dores
"Até o fim" de Chico Buarque

11 julho 2009

Deste lado do espelho




O meu neto fez 11 meses.
O meu neto é meigo e alegre como nunca vi nenhum bebé.
Quando me sorri, sei que é para mim que sorri.
E que o sorriso dele é doce e maroto.




E ... vertiginoso o tempo passa.
E penso num outro sorriso também bonito, também doce.
Num sorriso que foi ficando lento e cansado e dormente.
Também me sorria e eu sabia quando aquele sorriso era para mim, mesmo quando se foi alongando frágil, numa almofada branca.
O tempo não encobre a doçura, às vezes, irónica e cúmplice desse sorriso.
Os meus olhos têm saudade; às vezes, vagueiam pelas fotografias espalhadas pela casa...
Não são mais que braços que se me estendem do passado.



O tempo passa sem que eu o sinta em mim, como se eu tivesse ficado presa, lá distante.
Relembro um dia, na Primavera de 2007, em que o David, com o seu natural (ou talvez não) optimismo, me disse "Estás a ver, mamã, um ano passou tão depressa!"
Fora um ano de quimioterapias contínuas, de sobressaltos entre a esperança e o desatino.
Mas passara depressa...
Embora, às vezes, nos parecesse lento o andar do tempo.
Mas ele achava que dali à cura seria só mais um "saltinho"!
Não custaria; aguentaríamos firmes como rochas.
Esse ano passou depressa, ... demasiado depressa passou tudo o que se seguiu.
Fomos arrastados por um vendaval que nada deixou, à passagem.
Só despojos.
Não houve abrigo para nós.
O tempo passa, passou, ... já não sei se depressa, se devagar.
Sei, apenas, que pesa muito.
Sei que, com facilidade, trepasso com o olhar todo o tempo que passou, como se fosse transparente, e revivo, com toda a nitidez e o mesmo tremor nas mãos e no peito, aquela migalha de tempo que nos permitiram, ainda, viver.



O meu tempo não é uma linha contínua que se desenrola, como o chegar das manhãs e o partir das noites.
No meu tempo, é-me permitido estar, estando ausente, noutro tempo.
O meu tempo rege-se por estranhas vertigens que ondulam ao sabor de invisíveis fios a que me agarro e me transportam, entre um lá e um aqui.

Devia ser possível viver a dois tempos ou a duas dimensões e sentir o calor que se estende, ainda, da mão esguia do meu filho e a ternura impetuosa das "turrinhas" do meu neto.
Devia ser...
Para que as lágrimas não irrompessem, às vezes, tão bruscamente, destes olhos que nunca vão secar.
Devia ser possível existir do "outro lado do espelho"...

05 julho 2009

Há bocadinho



7h 30min., levantei-me.
Fui abrir a porta do quarto do David, como se ele me tivesse chamado.
Como, tantas vezes, aconteceu. Eu levantar-me, ao mais pequeno barulho.
Estava vazio.
Fora o acordar do meu neto, pelo intercomunicador.
E desci.

Passaram quase 21 meses e foi ontem, há bocadinho...
O coração a apertar-se.
Outra realidade por detrás desta realidade.
..................





Khi Wu Lun


Construí um palácio em que cada quarto

tem um jardim

corredores que talvez não tenham

fim e salas que a água

refresca, em canos de jade. Foi

a mais doce forma do desespero.

Kao Wan tocava o seu alaúde, antes

de as dúvidas e o cansaço


apodrecerem as maçãs. Sentei-me

no chão, observando o pó nas gretas

dos dedos dos pés. Pó de vários

caminhos, lama e a marca

dos dentes dos cães. Pó de estar

à espera mais do que andar;

de nunca saber quando serei
sonho e quando borboleta

e quando voarei ao acordar.

José Alberto Oliveira