26 maio 2011

A minha circunstância



Sinto a inquietação latejar-me no sangue. Reconheço os sinais que anunciam que nova vaga de angústia e de medo se avizinha.
Reconheço-o pelo tremor nas mãos, pelo olhar turvado de névoa, pela necessidade absoluta de pronunciar o nome do meu filho. Repetidamente ... repetidamente ...
Sempre que as rotinas do dia a dia se vão alterar, perco a serenidade que vou conseguindo manter no isolamento em que me instalo.  Poderia chamar-se solidão, mas não o vejo como tal porque não me sinto só, não no sentido de quem não tem amigos ou vive sem companhia.
É uma solidão diferente, pacientemente construída cá dentro, invisível aos olhares de quem quer certificar-se de que "estou bem". 
Eu tenho tantos bons amigos! Como poderia sentir-me só?
Uma família tão dedicada! Porque haveria de me sentir só?

E, no entanto, sinto-me tão só!
É tão triste e solitário dizer "Morreu-me um filho!"
Porque, mesmo perante outras mães que partilham a mesma dor, a minha realidade é a mais dura ... porque é a minha ... porque é do meu filho que sinto a falta ... porque me entreguei inteira para o salvar ... porque, no fim, foi por entre os meus dedos cerrados que escorreram, como areia, todos os sonhos partilhados a dois ... mãe e filho ... 
Por isso, são solitárias ... todas as mães que perderam um filho. 
Filho que é único ... para qualquer mãe.
Poque todos os filhos são filhos únicos.

Só quem viveu (e vive) neste limiar do medo, neste saber desesperado de que por mais que se grite o nome do filho ele não voltará nunca ... sabe que não é possível descrever com palavras este vazio ardente que nos seca e nos impede de abrir os olhos e ver o que os outros vêem. 
Falar do que os outros falam ...
Sentir as coisas simples da vida ...
É tão duro e tão cruel ser aquela que, diariamente, grita silenciosa  "Morreu-me um filho! Chamava-se David."
Porque é isso que eu digo, repito e repito.
Porque é este viver no limiar da dor e da saudade que, também, me define.


Blossoming Almond Branch In A Glass With A - Vincent Van Gogh



25 maio 2011

Em cada folha de papel, procuro o meu filho.

Acontece continuar a abrir dossiers do David, relacionados com o curso ou com música. Na maior parte das vezes, limito-me a folhear as páginas, em busca da letra dele, sempre escrita com caneta de tinta permanente (não usava esferográfica). Só para olhar para a letra dele.
É uma letra torta mas muito perceptível; fora do vulgar mas perfeitamente legível.
Descobri, hoje, que nas páginas de trás dos textos sobre o Jazz, também escrevia.
Para aproveitar o papel.
O David tinha o vício de rabiscar coisas, em todo o lado. Um pouco como eu ...
Mas os textos dele tendiam a ser textos de opinião sobre espectáculos, sobre a luz ou sobre a música. Alguns são muito interessantes.
Outros, um pouco juvenis, ainda.
Hoje, fica mais um aqui.
Para que não se percam.
Em cada texto, procuro o meu filho.





Posfácio
O design será sempre uma nova área. Um bom designer, na minha opinião, distingue-se por procurar estar sempre. Assim como os cientistas e investigadores que quebram as barreiras do conhecimento e saltam do escuro, à procura de luz. 
Os designers são os investigadores, os cientistas da estética, do gosto,  dos desejos de cada um.
Eu espero chegar à frente e não perder o lugar. Quero consegui-lo mas sem perder o contacto com tudo o que está à volta. O objectivo é abrir caminho para que todos passem. Como designer, não quero servir apenas para entreter ou animar alguém. Quero ir mais além.
Assim como um designer de interiores proporciona o bem estar, ao mesmo tempo que consegue tirar melhor proveito dos espaços, também de som ou de luz deve procurar a mesma ambivalência.
Deve não só agradar mas também ser capaz de influenciar a vida através do seu trabalho.
Um momento de felicidade pode não ser momentâneo, caso fique preso na nossa memória. 
Esse momento real pode não ser vivido outra vez mas não é possível apagar apagar a recordação.
A finalidade do design, seja do som, da luz ou outra área qualquer ... é a de criar momentos que fiquem presos a nós e, se possível, mudem o nosso trajecto pessoal.

David Sobral

21 maio 2011

Tio Rui


Ao meu tio Rui, de quem recordarei sempre um sorriso de quem está de bem com a vida.





"Devia morrer-se de outra maneira.

Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
à despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"

E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pòlen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis..."


José Gomes Ferreira







18 maio 2011

Outra vez!

18
O meu acordar sente que são dezoito.
Mais um mês a interpor-se entre nós.
Mais tempo.
Mais dias de espanto.
Mais lonjura.

18
Revejo-nos; eu, num estranho delírio silencioso; tu, em estranha serenidade.
Uma placidez que não compreendo.
Que me assusta, nesse respirar ... suspenso.
Perco-me, então, nesse abismo vazio, branco e pesado.
E estendo a mão para a tua imobilidade.

18
Sinto mais. Demais.
Tudo!
Saudade, dor, exaustão de tentar convencer-me que não voltas.
Dia após dia ... viver sem ti.
Sei que não!

18
Recuo no tempo, recuo até ti.
Até essa mão esguia que aceitava a minha.
Até aos teus olhos feitos de sorriso, ironia e tolerância.
Que já não olham para mim.
Gostava do teu olhar porque não o desviavas dos meus olhos.
Nem dos olhos de ninguém.
Era um desses olhares límpidos, frontais, francos ...
Tão raros.

18
Tenho saudades de ti, meu filho David!
Pouco me importa se o repito.
Pouco me importa que estranhem que me exponha.
Pouco me importa muito.
Fiquei assim!
Mãe sem um filho.
Até sempre mãe, ... desse filho (que se foi) também.
É contigo que falo aqui.
Também comigo.
Tenho tantas saudades de ti, meu filho!
Da tua mão.
Do teu olhar.
"Mamã, vamos dançar?"





09 maio 2011



" ... uma odalisca andróide que tinha uma grande dor, que improvisou com restos de cinema e com seu amor,
um disco voador..
."
(Fausto Fawcet)


Maio.
Medo.
Maio foi o mês em que a minha esperança começou a vacilar.
Sinto o suor do medo, messe mês.
O medo 
Que estivera apenas um pouco adormecido
E me permitira viver
Regressou
Mais negro
Mais pesado
Mais certo na passada.
Como se resiste a tamanho medo?
Pergunto agora
E não sei!
Também não sei o que ficou
De mim ...
Além da sombra que o medo deixou.





08 maio 2011

Mais sons do David...






Jimmy Garrison

            Na presente semana, o instrumento em destaque é o contrabaixo e teremos cinco contrabaixistas convidados.
              Hoje vamos falar de Jimmy Garrison que foi um dos baixistas mais evoluídos e musicalmente avançados dos anos sessenta.
Garrison será sempre recordado por ter tocado no famoso quarteto de John Coltrane que já foi referido várias vezes no jazz faz tarde.
Jimmy acompanhou Coltrane até à sua morte e mesmo depois continuou a tocar com Alice Coltrane, mulher de John e também com o baterista Elvin Jones.
Tocou bastante e fez bastantes progressos até que um cancro lhe finou a existência.
Deixo-vos agora com o Jimmy Garrison e até logo ... que jazz faz tarde.  




07 maio 2011




O Gato

Um gato, em casa sozinho, sobe
à janela para que, da rua, o
vejam.

O sol bate nos vidros e
aquece o gato que, imóvel,
parece um objecto.

Fica assim para que o
invejem — indiferente
mesmo que o chamem.

Por não sei que privilégio,
os gatos conhecem a eternidade.

Nuno Júdice



06 maio 2011

Valquíria, gata goordaaa!!

Tive uma gata chamada Valquíria!
Talvez ainda tenha, mas acho que já não ...
Já lhe devem ter dado aquela injecção que a liberta de dores.
Era uma gata grande, branca e preta, uma senhora dona gata. Tinha estilo no andar e fazia pose ao enroscar-se à volta, mais à volta ainda, da sua cauda, em cima de uma cadeira, aos nossos pés, no beiral do telhado.
Era a gata favorita do David! Chamava-lhe "gooorrdaaa!" e ela passava-lhe por entre as pernas, à espera de ser acariciada.

A Valquíria morreu.
Era, neste momento, a mais velha das três gatas que tinha. Tenho?
Antes dela, foi a Tosca ... também velhinha.

Hoje, quando me ligaram do veterinário, ouvi aquelas palavras que, ainda, ecoam nos meus ouvidos "ascite ... massa tumoral de grandes dimensões ..." e parecia-me, a certa altura, que me falavam do David e comecei a chorar ... do lado de cá.

Pude decidir o que pensei ser melhor para a Valquíria.
Tal como com a Tosca.
Uma injecção inofensiva, igual a outras tantas ...
Esta libertadora.
Esta ... libertador(a)!
Liberta dor (a).
(a) dor liberta.
Liberta (a) dor.
O mundo dos gatos, a sua vida, a sua morte são, provavelmente, mais humanos do que o mundo dos homens.
E lembrei-me de uma conversa triste e dolorosa que tive com o David.
Fui recolhê-la ao meu livro "Mamã, vamos dançar?"


Tive, hoje, a conversa mais longa, desgostosa e amarga com o David, desde que ficou doente. Fui ter com ele, ao apartamento, depois do almoço; estava sentado na cama, dobrado para a frente. Tinha dores. Outra vez, dores. Estas malditas dores! Aninhei-me ao pé dele e fui-lhe massajando as costas. Foi relaxando e encostou-se.
Enquanto lhe ia massajando os pés, foi-me dizendo que sempre tinha enfrentado tudo com optimismo e que aguentará tudo o que for preciso para ficar bem. Deixará tudo para se tratar. Mas ... dores, não! Não aguenta continuar a sentir-se incapacitado para o que quer que seja, com as dores que tem sentido.
Disse-me que se o tratamento (este ou outro) não resultar, em breve, e continuar a sentir as dores que tem sentido e que o impossibilitam de trabalhar, de viver ... desiste! Não vale a pena! “Lembras-te daquela reportagem que vimos, há uns anos, sobre uma clínica em Zurique, mamã ... Adormece-se com uma pastilhinha!?”
Vida sem qualidade e dores destas, não aguenta! E pediu-me ajuda! Expliquei, disse-lhe que tal não iria acontecer! Que as dores terão de passar! Mas sempre o ajudei, no que pude! Ai que dor e que vontade de gritar! Mas tenho a certeza que, exteriormente, me mantive calma!! Por um filho, faz-se tudo; finge-se tudo... Aprende-se a fingir completamente!
E pediu-me desculpa, se ... desistir. Eu não poderei pensar em mim! Ele não poderá pensar em mim, se isso acontecer!  E repetiu-me que, sem capacidade para trabalhar e realizar os sonhos que tem (incluindo constituir família e ser pai de dois ou três filhos), a vida não vale a pena. A vida, como ele a entende, ... com autonomia, com entusiasmo, até com sofrimento e luta, sim, mas só se houver esperança de melhores dias ... A não haver esperança, desiste de viver!
E que eu terei também de pensar só nele; que eu não mereço (já mo tinha dito em Junho), mas terei de o compreender, de o ajudar e perdoar por me abandonar. Não sabe viver desta forma; já aguentou muito e aguentará mais ainda ... Mas sem dores!
Fiquei, ali, deitada aos pés dele, a fazer-lhe festas ... E não falei. Dizer o quê? Limitei-me a acenar com a cabeça; num sinal de assentimento silencioso.
Sequei, por dentro. Não são precisas palavras.
O silêncio é, por vezes, ensurdecedor."





02 maio 2011

Utopias


Dizer o quê? Que nada esbate a tua luz, dentro de mim.
Sentir o quê? A saudade, a melancolia de todos os dias.
Pensar o quê? Que é e será sempre assim.
Que serei sempre duas que coabitam em mim.
A que regressou aos dias que se vão sucedendo no calendário da vida.
A outra, a que ficou vergada e cega de dor, 
num dia vermelho de Outubro.  
Sem que uma amordace a outra.
Porque é assim!
Sem ti. 
Que viverei cada hora como se tu tivesses ido, há pouco, 
há poucochinho.
Ainda duas mãos mornas.
A tua e a minha.



Luz

Há uma luz intermitente na esquina.
Prende os pássaros; suspende a gente.
A noite demora-se à sua volta. O rio
estagna, como se não houvesse corrente.

É por isso que gosto dos candeeiros de
luz apagada, os que não atraem insectos,
os que podem cair, que ninguém dá
por isso; e passo por eles, sem me deter.

Deixo para trás os que esperam que
a luz se acenda. Não me importo com os
pássaros mortos durante a espera.

É sem luz que podemos andar; é a
treva que nos empurra para a frente.
E chegarei ao fim da noite à luz do poente.

Nuno Júdice, O Breve Sentimento do Eterno

01 maio 2011

À minha mãe, mãe-avó, mãe-bisavó ...


É dia da mãe!
Dia de todas as mães-avós, todas as mães-bisavós ... mães-tetravós ... duas, três vezes mães, .. de filhos de filhos, de netos de avós, de filhos de netos.
Sempre mães!
.......
Mãe
Também dos que se foram ...
Num cada vez mais tímido e lento respirar
Num penoso largar de mãos
Sempre mães!
Com lágrimas de dor, embaciando os vidros das janelas
Quando procuram numa nuvem
Na parede branca da frente
Distinguir o sorriso do que partiu.


Sempre mães, em moto contínuo,
Dos filhos que são
E permanecerão
Porque é vindo da boca desses
que ganha sentido
ouvir
pronunciar a palavra
mãe.