03 dezembro 2021

Percurso de memória





Moledo, ainda agora.
Até ao virar da esquina
O sol, lá atrás, a adormecer no mar.
Pudera, ali, um dia, a cabeça repousar!

Regresso 
Chamo-lhe, sempre, regresso
De ti, como se foras ninho,
Afogada em lembranças 
De tempo entre pinhais e chilreios
De crianças

Porque tu ficas
Agora, ficas sempre
Sou eu quem parte
E com o olhar digo adeus
À quieta imensidão da água
Que te guarda

Contínuos regressos 
Vão-se acumulando
Na memória escurecida
Tão saudosa e gasta.
Montes verdes e castanhos serpenteiam na estrada
A mesma
Mas tão diferente a vejo.

Mais longe, já no fundo de mim 
Eólicas gigantes, as pás cansadas,
De batalhas e farrapos
Onde me acena
O teu sorriso ainda ...
Mas tão distante!

Que sonhos perseguirá D. Quixote?
Se eu, Sancho Pança, deixei de sonhar.

03 julho 2021

Sob o céu cinzento de julho

 




Chegou cedo

O tempo em que o tempo se rasga.

Basta um dedilhar de guitarra 

Para que o meu sangue

Em movimento incessante

Se sobressalte

Basta, tão só

Cerrar os olhos

E regresso a ti.

À ternura.

Donde nunca saí.

Basta um som de tango

Um swing ondulante

Ou tão só o vibrar das teclas de um piano triste

Cerrar as pálpebras

Cerrar os punhos

Encerrar-me num silêncio

Musical e luminoso

E, devagar,

Ao som da dor

Regressar a mim

Despida de enfeites

De sorrisos feitos

Depois que o tempo 

Ficou vazio de ti.

Então

Na planura da saudade

Sem sonhos

Sem timbre ou melodia

Sem luz de projetores

Sem papagaios de papel

A fugir no alto

Em direção ao mar

Esqueço a claridade

Que vem de fora

Devagar

Sem dominar o porquê

Volta o tempo

Em que o tempo se estilhaçou

E eu me quebrei!


Apanho, então, cada pedacinho de mim

Da minh' alma deserta

E recomeço 

Recomeço

Recomeço

E recomeço



26 abril 2021

O meu rapazinho no Tempo
















EU mãe que perdi um filho
ainda acredito
 que há coisas que não podem acontecer ...
Como o morte do filho, 
acontecida,
sorrio por entre lágrimas, quando falo dele
choro sozinha dentro do carro 
e mergulho nos sonhos dos outros.

EU mãe que perdi um filho.
estando presente, estou sempre ausente ...
Não compreendo o tempo
que se fixou por detrás do choro das pálpebras.

Mães ... um filho
choram a perda dos filhos das outras mães ...
criam laços de ternura imensa com quem as ouve,
ouvindo só ...
como somam e subtraem dias, 
a partir daquele dia ...

Mães que perderem filho
têm  um coração imenso, ocupado por inteiro por todos os outros filhos
e filhos dos filhos ...

EU mãe que perdi um filho
perco-o todos os dias
sou devorada por uma revolta surda contra ninguém
acordo aterrorizada, envolta em suor ... 
com medo que mo levem de novo
que volte a ser esse
o dia.

EU mãe que perdi um filho
engulo raiva e calo soluços
enquanto
aguardo paciente a companhia da solidão amiga
onde choro,
 enfim, em silêncio, o mistério do não saber porquê

EU mãe que perdi um filho
procuro sinais no céu estrelado, encostada à janela da noite,
e persigo, de dia, silhuetas na rua.

Um certo arregaçar de manga
uma mochila ao ombro
um cabelo em rabo de cavalo
o capuz de uma gabardina cinza
uma cabeça erguida
talvez um olhar de frente
UM ar de quem sabe o caminho certo.

EU mãe que perdi um filho
desisto desolada 
não. o sorriso não é igual
aquele era misto de troça, ironia, tristeza ou ternura
não, o tal timbre de voz
que se fixou, eternamente jovem ...
era voz de menino
 o que partiu de mim

As mães que perderam, como eu
mergulham no baú das fotografias antigas
isolam o olhar, cortam perfis, recortam gestos doces
montam fotografias esbatidas
repassam filmes de família, remontam-nos
ouvem-nos e veêm-nos, mil vezes
constroem pontes, travessias de lá para cá...
de cá para lá

Há mães que, crendo em Deus, aguardam um reencontro
Acreditam na perda temporária
garantem-me que os filhos estão bem!
Um dia
Vão encontrá-los.

Outras não!
Dolorosamente, 
nada.
Eu! Nada!
A não ser poeira de estrelas ou talvez uma estrela no mar
Luz somente!

EU mãe que perdi um filho
Tenho
A mágoa que dói
A saudade que esmaga
A amargura do "never more".

São minhas companheiras de viagem, 
nesta travessia para o nada.
E para o tudo que é nada.

Um "Mamã, chegarei aos 30?"
Seguido de um sorriso doce, lento e esquecido
É também o que me sobra do David.
Guardo tudo, mil vezes tudo, na conchinha da minha mão fechada
e sob cada bater de pálpebras dos meus olhos
(mesmo assim)
abertos para os outros 
todos os meus outros

EU mãe que perdi um filho
Só sei viver desta forma!
Não conheço outra
E outra não busco, nem quero.

O meu filho David faria, hoje, 43 anos.

David!
Meu rapazinho sem tempo.








07 março 2021

Quis algo que nunca me pudesse ser tirado.




Começa março e o sol
tanto sol, que não posso continuar
como se nada fora.

Já tudo é novamente
já tudo foi
de tal maneira sol
de tal modo março,
março com sol,
que me fico exangue
despojada de força
para avançar
pensando no que ser
diferente do que possa já ter sido
neste círculo desencantado
de março a novo março
do sol que fez
ao sol que,
certamente,
fará.

Que não seja, então, março novamente
uma, outra e outra vez
mas, sendo, 
que não se abata sobre nós
 o mesmo sol indecoroso e pálido
que insiste em me insultar.

Mas, teimando o sol,
que não seja em março,
o mês do medo,
o mês que transforma em lágrimas suplicantes 
todas as certezas
toda a minha luz.

Mas, se houver sol
e tiver mesmo de ser março,
que nada tenha sido como foi
e eu e tu continuemos, num tempo coincidente.

Que problema tem
que haja um tempo (dir-se-ia) paralelo
em que possamos ser como se nada fora,
março ou não, brilhante de sol
ou negro de chuva? 


Ah, agora me lembro.

Vivi tão perdidamente um tempo absurdo e sem futuro
que o tempo ou a percepção dele me faz suar.

Prefiro, então, não sentir que existe tempo.

Certo 
é que este ou qualquer outro março
de sol se o for ou de chuva como sol
virá 
como veio aquele antigo
e me encontrei perdida
sem saber para onde seguir.

Sei!

Virá
o nó nas entranhas, o grito abafado na garganta.
Virá 
sempre e eu, 
outra e outra vez, sem saber por onde seguir.

Não há como escapar!
Embora eu continue de garras afiadas.


25 fevereiro 2021

As minhas dúvidas















Não sei ao certo quando o tempo deixou de acompanhar meus passos.
Se o reencontrei.
Terá passado ao lado, sem que eu o pressentisse
Ou reencontrarei.

Não sei o momento exato em que me desprendi dos meus passos, para antecipar os teus.
Mas aconteceu
Prever cada momento seguinte - chegar primeiro.
Calar palavras atrozes em que te ias perder - ouvir primeiro.
Suplicar que não ... à verdade assim tão nua - negociar primeiro.
Desclocar-me no tempo, no sentido inverso - sorrir primeiro.

Negociar um  ...  tantos "talvez" ...
Talvez com esperança!
Talvez com sorte!
Talvez com força!
Talvez a dois, a três!
Talvez a força de um amos jovem!
Talvez num embalo de música!
Talvez não mais ...

Adormecer, talvez,  num túnel de luz.








Do ser ou não ser quem sou ...





"Antes de julgar a minha vida ou o meu caráter... calce os meus sapatos e percorra o caminho que eu percorri, viva as minhas tristezas, as minhas dúvidas e as minhas alegrias. Percorra os anos que eu percorri, tropece onde eu tropecei e levante-se assim como eu fiz. E então, só aí poderá julgar. Cada um tem a sua própria história. Não compare a sua vida com a dos outros. Você não sabe como foi o caminho que eles tiveram que trilhar na vida."

Clarice Lispector