Ontem a minha mãe fez, hoje, 84 anos.
Apesar da idade, apesar das dores contínuas que a atormentam,
apesar da recente cirurgia ... apesar da perda de um neto ...
estava bonita.
Estoicamente agradecida à vida que lhe trouxe, recentemente, uma bisneta
a quem puseram o nome dela -
Alice.
Que veio juntar-se ao meigo Miguel
Parabéns, mamã! Parabéns por ser como é!
Já eu ...
Até quando resistirei, sendo quem não sou?
Existir não é ser.
Eu existo.
Faço de acrobata para voltar a ser alguém; alguém de bem consigo própria,
aquele alguém parecido com aquela que o David admirava,
aquela de quem o David dizia aos amigos ser alma gémea?
Era eu?
Apenas mãe.
Se calhar somos apenas o que vemos reflectido nos olhos de quem nos quer muito bem.
E nos quer dizer que nos quer bem.
As palavras são palavras.
O que valem?
Uma desculpa pelo que não se exprime pelo olhar.
É nesse olhar límpido e raro, porque intencional, que nos sentimos ser.
Alguém.
Parabéns, mamã, por sentir e ser como é.
Já eu...
Podia até ser cegonha, no cimo da torre da minha aldeia, ao anoitecer.
Podia ser aquela alga, já escurecida, de que as ondas se esqueceram, na areia.
Até talvez um parapeito de janela vazio.
Ou uma estrela cadente de Agosto que se despenha lá longe, no monte.
Creio até que podia ser uma esquina de duas ruas sem nome.
Podia ser o escuro dos olhos brilhantes do meu neto.
Nenúfar vizinho das rãs que saltitam, de folha em folha.
Ou só um batente, em forma de mão fechada, silencioso na porta trancada.
Podia ser só silêncio.
Parabéns, mamã, por saber quem é e como é.
Parabéns, mamã, por ser.
Não, apenas, por existir.
Já eu ...
Ando perdida, a seguir as setas que indicam o caminho.
Não me desviar do percurso que sei a percorrer.
Longo, longo.
Duro, duro.
À espera ...
Em moto contínuo ...
Já eu ...
Só existo!
E tu, David, porque não podes regressar,
só por um bocadinho?
Para me serenares ...
e eu te falar disto?