O Miguel adormeceu e a casa está em silêncio.
As gatas sossegaram, deitadas, nas proximidades dos sofás, já que não há o perigo de serem "atacadas" subitamente.
Parte da manhã, passámo-la enfiados no quartinho do David.
Preciso de arrumar aquelas prateleiras, onde se misturam os meus dossiers de trabalho, com caixas cheias de CDs de fotos do David, de espectáculos iluminados pelo David, de músicas de que o David gostava especialmente e que gravava para os amigos, com libretos de Ópera do Estúdio de Ópera do Porto com quem o David colaborava, com as revistas de Jazz do David, com as revistas de design de luz do David, com os trabalhos dele de iluminador e com as pastas dele bem organizadas nos seus lugares ... e que ainda não olhei com olhos de ver.
Não é urgente; não quero esgotar o que que há do David e que continua por abrir.
Tenho tempo!
E passo à frente; fecho novamente ou nem toco e rasgo e deito para um saco de lixo papéis meus, material que não voltarei a usar.
Talvez amanhã ...
Enrolo novelos de lã, arrumo roupas do Miguel que já não lhe servem, ...
O Miguel a tirar brinquedos antigos (2 anos?) da caixa amarela, olhando-os como se fossem novos.
Abóbó ... qui ...qui ...
Para que eu me aproxime.
Quer mostrar-me que sabe dar corda a um gatinho de peluche e põe-no a subir uma passadeira.
Ó ... Ó, continua ele, delirante com o que vai encontrando.
Agora, quer pintar. E sento-o na minha secretária. Um grande calendário à frente. Um marcador vermelho na mão.
Vou folheando uma agenda do David. Esta é de 2003.
Está lá tudo - projectos, actividades em curso, marcação de encontros de trabalho, tarefas diárias, aniversários, ... desenhos de bonecos ... uma planta de um auditório riscada à pressa.... e um verso ou uma frase que lhe agradou, de vez em quando.
E aquela letra torta de esquerdino. Inconfundível.
Não me desperta saudade. Acho que a saudade já vive naturalmente em mim.
É, antes, um sentir um certo cansaço do futuro!
O tempo confunde-me.
...
Bóbó! Bóbó! Um A "gannn!" de grande e abre os braços; um A "niii" de pequenino e junta as mãos; um B, um M de Mimi e de Mamã, um P de Paíi.
Bóbó! Ó.. Ó... um 2 e os dois dedos em pé, um 6 e os 5 dedos de uma mão aberta e o indicador da outra mão bem empinado!
Pintou tudo! Tudo, não!
Reparo que só pintou os nomes dos meses e tentou não passar para fora dos limites das letras!
Espectacular, Miguel!
Horas de almoçar!
....
Agora, o Miguel dorme.
2 comentários:
ISABEL VENÂNCIO
Volto, não resisti ...!
Dois anos, interroga!?
Dois anos é uma eternidade na vida de uma criança, feita da sua história, do antigo, brinquedos antigos e do moderno!
Dois anos, mais ou menos do que os meus cinquenta e seis, quem o poderá responder ...?
A sua história, a sua imensa história a perder-se no tempo ...
A fixar-se no momento que passa, Presente-Passado que é Futuro!
Àmanhã, o que escreveu ainda estará cá, feito Presente.
Um beijinho
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 5 de Janeiro de 2011
sotto voce
o Miguel continua a dormir
sai dos limites, Miguel! ensina a tua avó...
um beijo
aos dois
manuela
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