31 dezembro 2010

Seguir!



Cruzo os braços. 
Dobro o horizonte, quero regressar ao ano antigo e ao outro e ao outro. E ainda outro. Onde tenha dois filhos. Não quero ser empurrada para um novo ano. Que não seja 11. Ou 12. Não quero que cresça a lonjura que eu continuo a percorrer. 
Tenho a alma coberta de dor! Mas que alma? Quem a vê?
E que dor? A que ninguém vê porque não se vê.
A minha dor dói, corta-me, range dentro de mim, muito profundo ou  ... atrás da cabeça. Não sei. Às vezes, sinto como se uma lâmina tivesse cortado, na vertical, a minha cabeça em duas.
É na parte de trás, resguardado dos olhares e dos ouvidos, que penso outros pensamentos, que vivo mil vezes uma outra vida já vivida. É lá que sinto a saudade e ganas de dar gritos de fúria. É lá que repito até à exaustão que não, que não compreendo, que não aceito, que não sei como aconteceu tão subitamente ter gerado um filho e ele não existir. A cama nunca desfeita ... no entanto, um cheiro distante ainda no roupão. É lá que sinto que se cerraram as portas duma parte de mim. É lá que uma parte de mim já desistiu, cansada e desenganada, de projectos, de quereres. Lá, já não formulo desejos, nada de fantasias tolas. Quero encostar a cabeça, trancar os olhos, ficar-me no pensar ou sentir ou choro ou desconsolo ... o que vier.

Descruzo os braços.
A parte da frente da cabeça aberta para o mundo ... essa continua a viver, como se viver, mesmo assim, fosse normal. 
E, deste lado, é.
Tem de ser, mamã! - diria, certamente, o David

09 dezembro 2010

Razon de vivir



http://www.youtube.com/watch?v=bfIfaqCCfgo

Mercedes Sosa
Para decidir si sigo poniendo
Esta sangre en tierra
Este corazon que bate su parche
Sol y tinieblas.
Para continuar caminando al sol
Por estos desiertos
Para recalcar que estoy vivo
En medio de tantos muertos;
Para decidir
Para continuar
Para recalcar y considerar
Solo me hace falta que estes aqui
Con tus ojos claros
Ay! fogata de amor y guia
Razon de vivir mi vida
Para aligerar este duro peso
De nuestros dias
Esta soledad que llevamos todos
Islas perdidas
Para descartar esta sensacion
De perderlo todo;
Para analizar por donde seguir
Y elegir el modo
Para aligerar
Para descartar
Para analizar y considerar
Solo me hace falta que estes aqui
Con tus ojos claros
Ay! fogata de amor y guia
Razon de vivir mi vida
Para combinar lo bello y la luz
Sin perder distancia
Para estar con vos sin perder el angel
De la nostalgia
Para descubrir que la vida va
Sin pedirnos nada
Y considerar que todo es hermoso
Y no cuesta nada,
Para combinar
Para estar con vos
Para descubrir y considerar,
Solo me hace falta que estes aqui
Con tus ojos claros.
Ay! fogata de amor y guia
Razon de vivir mi vida.

08 dezembro 2010

O sonho dos outros

Mais um Dezembro que se alonga
No calendário
é
Natal
....
era um dia de sol
(na minha memória)
depois de uma noite
mais longa
feita de aromas
de canela
de casca de laranja
muitas luzes
vozes que se atropelam
entre tilintar de brindes
...
um silêncio saudoso
pelos nomes dos lugares
que foram ficando
vazios
...
histórias de outras noites jovens
de Natal
numa aldeia beirã
tantas mesas
tantas vozes
tantos sonhos
no sapatinho da menina
a luz de uma candeia
que guia o regresso
a casa
na escuridão da noite
cortada pelos risos
muitas vozes
há quem cante
há muito
muito tempo
...
não agora
agora é preciso
 que tempo avance
que avance
de olhos vendados
sem olhar para trás
sem o aroma da canela
sem o tinir dos pratos
sem o cheiro da casca da laranja
sem o tilintar dos brindes
...
agora
já sinto o vazio
do teu lugar à mesa.


O sonho dos outros








Cecília Meireles

É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.

É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.

O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome,
o som da nossa voz,
o ritmo do nosso pulso.

O que é preciso esquecer
é o dia carregado de actos,
a ideia de recompensa e de glória.

O que é preciso
é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos conosco, pois o resto não nos pertence.

Contra natura

Pois é!
Se a morte de um filho é contra natura, como se pode esperar que eu viva naturalmente?
Se viver naturalmente é deixar que os dias escorreguem, esperando muito pouco e quase nada pedindo ... talvez eu viva de forma penosamente natural.

Dizem-me "Se tal me acontecesse, enlouquecia! Não aguentava!"
Quem pode assegurar a minha sanidade mental?

"Tenho tanta admiração por ti, Isabel. Como consegues?"
Quem diz que consigo?
Só por andar por aí?
Às vezes, sem perceber o que se está a passar à minha volta ... porque "estou ausente"...

Só eu conheço bem a cor da dor que navega no sangue que me corre nas veias!
...
Escondo-me entre dedilhares de cordas que me fazem lembrar os sons do David.
Fecho os olhos.
Deixo-me escorrer.


http://www.youtube.com/watch?v=0DEKQjj6Ga0