02 janeiro 2010

As parcas


(As parcas)

I
Moledo, novamente.
Uma lareira acesa.
Lá fora, o frio gela.
Espreito as eólicas, ao longe.
As minhas pequenas laranjeiras a abanarem com o vento forte.
Não saio.

II
A última fotografia do David, escondida numa gaveta.
Abro-a. Tenho-a, ali, só para mim.
Mesmo assim ..., pálido, mais magro,
... a mandar um beijo pelo ar.

III

Acordes do Toumani Diabaté.
O 2º dia de ano novo.
Igual ao velho.
Tantas partidas e chegadas, numa mesma viagem.
Outro cachecol.
Mais uma acha na lareira.
Os meus cachecóis, no hospital, para abafar o pensamento e contrariar o tempo.
Gosto dos meus cachecóis, sempre diferentes.

IV
A cabeça um pouco vazia.
O receio do regresso à escola...
O receio, aliás, de tudo o que implique ver gente, orientar-me no meio da confusão, ouvir demasiado barulho, sair de casa.

V
O meu neto a perseguir as gatas;
a ameaçá-las de colher de pau do mel na mão;
a atacá-las com o enorme hipopótamo de peluche;
a brandir a canadiana da minha mãe, perseguindo-as pela sala fora;
a atirar-lhes uma bola saltitona pequenina enquanto ri às gargalhadas por as ver a correr atrás dela ...
ou a fugir dele ...;
ou uma laranja
ou livros,
ou tudo, à mesa
quando alguma passa por perto.
Tudo serve de arma de arremesso.
Até o grito de ataque.
E depois, o ar meigo com que se deita ao lado da "perigosa" Jenufa e tenta abraçá-la.
E lhe puxa nas orelhas.
E lhe mostra a caixinha de música.
E ali fica, até que ela se canse.
E fuja.
E o jogo recomeça.

VI
O fim e o início de cada ano ... partes da mesma viagem.
A minha cabeça um pouco vazia.

VII
Um "poema adolescente" de um fim de ano ou início de outro, coincidentes e sobrepostos no tempo.

Deixem-me em paz

Batem ruidosamente à porta do meu quarto
Nunca mais quero ver ninguém
Todos me soam pouco amigáveis.
Quero que me deixem em paz!

Todos me chateiam.
Como serei livre?
Só acontece a mim?
Amanhã o que irei ver?
O que se segue?
O que irei fazer?
Como escolher o meu modo de vida?

Desejo ser quem quero
Já não sou uma criança
Por ti ...
Não vou sorrir.

Decidi viver a minha vida
Abrir os olhos
E limpar a mente
Fazer o que devo
Num mundo só meu

Não olharei para trás
O passado, devo esquecer
Nunca perderei mais tempo

E todos os dias
Verei o sol

David Sobral
(1.janeiro.1994)

5 comentários:

Jaime Latino Ferreira disse...

VIRAR DE PÁGINA


Este virar de página
é sempre um reinício
um mergulhar no precipício

Vira-se a página
e que será do seu início

E todos os dias
verei o Sol
dizes-me tu David
e que vontade tenho
de o ver
sem alterações
ou bemol

Vira-se a página
afastam-se as parcas
e que fica para lá delas
nestas arcas

Um poema
dir-me-ás
dois
e um Ás
jogo de cartas
Júpiter
o que farás

Rir-me-ei
irreverente
e num poema adolescente
no meu quarto
fecho o batente
de tanto querer
ser mais contente


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 2 de Janeiro de 2010

Branca disse...

Querida Isabel,

Gostei tanto de a ter por lá, mem sabe quanto.
Peço desculpa de só hoje voltar, muitas coisas andam a acontecer na minha vida ao mesmo tempo, mas estou aqui, sempre estou mesmo quando não venho.
Li tudo, desde a saudade até às traqunices do neto e maravilhei-me com a ternura com qua as conta e tão bem, que parece que estamos a vê-las.
Gostei muito do poema do David, sobretudo da sua conclusão:
"E todos os dias
Verei o sol"

É o que lhe desejo para 2010, que todos os dias veja o Sol, sei que fará um esforço.

Beijinhos de muita amizade
Branca

Anónimo disse...

Um grande, grande beijinho, Isabel...
MM

Ana Cristina disse...

"...
E todos os dias
Verei o sol..", é uma mensagem do David para ti, para com ela acordares nos próximos "dias" que se avizinham.

Todos estaremos contigo para o que de nós precisares.

A maior força tê-la-ás, sem dúvida, bem junto do coração,do teu neto,do Manel, do Sérgio e SEMPRE do David.

Bjis.
Nini

(o Tony telefonou hoje e mandou-te um abraço)

manuela baptista disse...

parca tenho sido eu
que nunca mais aqui vim!

Isabel

que nunca sejamos parcas em afectos e que aquilo que nos une

seja sempre mais

do que aquilo que nos separa!!

Beijos

Manuela