19 janeiro 2010

27 meses


Ontem, foi dia 18.
Mais um dia 18 ...
Sei que não tem qualquer significado, ser dia 18.
E, no entanto, a cada dia 18, ao acordar, ainda meio sonâmbula, sinto que é um dia especial.
É um dia em que o peito tem mais dificuldade em encher-se de ar.
A cabeça tem mais dificuldade em se fixar num objectivo definido.
Os olhos vêem mais do que ao redor.
É um andar lento para trás ...
Mais atrás ainda, antes do dia 18 de Outubro.
Detenho-me no dia 16.

16 de Outubro de 2007
Foi o último dia em que vi os olhos e o sorriso do David.
Foi a última vez que lhe ouvi a voz.
Uma voz, creio que risonha ...
Sim, uma voz risonha!
Porque me lembro dele, nessa noite, com um sorriso nos lábios...
Um sorriso de desafio!!
Mas um ar meigo!!
Como se soubesse que ia adormecer.
Como se soubesse que seria para a mãe, aquele último sorriso.
Aquele último desafio!
"Mamã, vamos dançar??"

Passaram tantos dias,...
Tanto tempo!!!
Tanta saudade.
Tantos momentos de estranheza.
Tantas páginas de lágrimas...
Tanta doçura nos olhos e no sorriso do meu neto.
Tanta coisa estranha ...
Como esta minha doença, agora.
Que, novamente, me aproxima do David e me faz ver como ele foi, mesmo, espantosamente ...

Como ele foi capaz de, todos os dias, ao acordar, levantar a cabeça, sempre na direcção dos palcos, dos amigos, da música, dos projectos, das luzes, do sonho ... da vida para viver.
Eu vi cada momento; foi assim ...
E, assim, se ergueu para além dele próprio.
E, no entanto, era apenas um menino ...
Ia começar "a viver" a sua vida ...
Ontem, foi dia 18.

"Sons do David"

16 janeiro 2010

Depende...




Depende dos dias, furtivos e solitários.
Gosto dos dias mansos ...
De sossego e SEM repouso.
Que repouso os poderia sossegar?
A ponto de não reconhecer neste campo verde, que se estende à minha frente, o palco de outras cenas.
Ou este vidro a que, outrora, encostava outro rosto e olhava a escuridão, em busca de outros (impossíveis) cenários.
Depende dos dias ...
Não ouço sequer o que me dizem as memórias.
Sei.
Não depende dos dias.
Não volto a voar.
Larguei as asas, debruçada numa varanda, ao pé da Rambla.
Depende dos dias ...
..........................................



Ao longo da muralha que habitamos
Há palavras de vida há palavras de morte
Há palavras imensas, que esperam por nós
E outras frágeis, que deixaram de esperar
Há palavras acesas como barcos
E há palavras homens, palavras que guardam
O seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
As mãos e as paredes de Elsenor

E há palavras e nocturnas palavras gemidos
Palavras que nos sobem ilegíveis à boca
Palavras diamantes palavras nunca escritas
Palavras impossíveis de escrever
Por não termos connosco cordas de violinos
Nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
E os braços dos amantes escrevem muito alto
Muito além da azul onde oxidados morrem
Palavras maternais só sombra só soluço
Só espasmos só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
E entre nós e as palavras, o nosso dever falar.

Mário Cesariny

13 janeiro 2010

! vida da sentido O


David, meu filho

Despedi-me, ontem, dos meus alunos da noite.
Algumas das "minhas meninas" ficaram de lágrima no canto do olho.
Acho que gostam de mim e percebem que gosto delas.
Despedi-me, por uns tempos.

Diagnóstico dos exames e biópsia que fiz "carcinoma mamário".
Um nódulo pequenino ...
Alguém, na escola, disse "é o cancro da tristeza".

Mas vou sossegar e concentrar-me no que tenho a fazer.
A escola fica para depois.
Depois de ti, nunca mais voltou a ser a minha segunda casa, apesar de regressar, a casa, sempre reconciliada com o que ela tem de bom - os meus alunos.
Fossem jovens...
Sejam adultos...

Contigo, aprendi muito ... E espero ser uma aluna de quem te orgulhes.
Sei, cá dentro, que sofri a maior dor que se pode sofrer.
Portanto, estou bem.
O meu coração não se afoga em ansiedade como quando tu adoeceste.
E eu sentia aquela falta de ar!
Desta vez, no meu coração, há espaço de sobra para o outro filho, para o neto, para o Manel e todos ... a quem a minha vida está ligada.
Portanto, vou sossegar ...

Mesmo assim ..., às vezes,
... muito frequentemente até, me pergunto, ainda, qual será o sentido da vida.
Desta minha vida que, de tão estranha, vou procurando já não questionar.

Mesmo assim ...
Porque será que, para alguns, a vida é tão mais difícil de levar a bom porto?

Mesmo assim ...
... este estranho sentido da minha vida ... procuro-o na força de viver que tinhas e no inesgotável entusiasmo com que te lançavas em cada novo projecto.
És tu, meu filho, quem me guia com a grandeza e coragem com que acordavas bem vivo, para cada dia.
Ao som da música.

Isso sossega-me.

De quoi a besoin l' amour?

02 janeiro 2010

As parcas


(As parcas)

I
Moledo, novamente.
Uma lareira acesa.
Lá fora, o frio gela.
Espreito as eólicas, ao longe.
As minhas pequenas laranjeiras a abanarem com o vento forte.
Não saio.

II
A última fotografia do David, escondida numa gaveta.
Abro-a. Tenho-a, ali, só para mim.
Mesmo assim ..., pálido, mais magro,
... a mandar um beijo pelo ar.

III

Acordes do Toumani Diabaté.
O 2º dia de ano novo.
Igual ao velho.
Tantas partidas e chegadas, numa mesma viagem.
Outro cachecol.
Mais uma acha na lareira.
Os meus cachecóis, no hospital, para abafar o pensamento e contrariar o tempo.
Gosto dos meus cachecóis, sempre diferentes.

IV
A cabeça um pouco vazia.
O receio do regresso à escola...
O receio, aliás, de tudo o que implique ver gente, orientar-me no meio da confusão, ouvir demasiado barulho, sair de casa.

V
O meu neto a perseguir as gatas;
a ameaçá-las de colher de pau do mel na mão;
a atacá-las com o enorme hipopótamo de peluche;
a brandir a canadiana da minha mãe, perseguindo-as pela sala fora;
a atirar-lhes uma bola saltitona pequenina enquanto ri às gargalhadas por as ver a correr atrás dela ...
ou a fugir dele ...;
ou uma laranja
ou livros,
ou tudo, à mesa
quando alguma passa por perto.
Tudo serve de arma de arremesso.
Até o grito de ataque.
E depois, o ar meigo com que se deita ao lado da "perigosa" Jenufa e tenta abraçá-la.
E lhe puxa nas orelhas.
E lhe mostra a caixinha de música.
E ali fica, até que ela se canse.
E fuja.
E o jogo recomeça.

VI
O fim e o início de cada ano ... partes da mesma viagem.
A minha cabeça um pouco vazia.

VII
Um "poema adolescente" de um fim de ano ou início de outro, coincidentes e sobrepostos no tempo.

Deixem-me em paz

Batem ruidosamente à porta do meu quarto
Nunca mais quero ver ninguém
Todos me soam pouco amigáveis.
Quero que me deixem em paz!

Todos me chateiam.
Como serei livre?
Só acontece a mim?
Amanhã o que irei ver?
O que se segue?
O que irei fazer?
Como escolher o meu modo de vida?

Desejo ser quem quero
Já não sou uma criança
Por ti ...
Não vou sorrir.

Decidi viver a minha vida
Abrir os olhos
E limpar a mente
Fazer o que devo
Num mundo só meu

Não olharei para trás
O passado, devo esquecer
Nunca perderei mais tempo

E todos os dias
Verei o sol

David Sobral
(1.janeiro.1994)