1
Outubro recomeça.
Um Nobel da Medicina
Ensaio clínico
Falhado em Barcelona
Já então - Imunoterapia
Obrigada, David
2
Ouço a voz da minha mãe
"Isabelinha, quando deixarás de chorar?",
Sabendo ela que nem eu, nem ela, deixaríamos de chorar
A par do respirar
Ouço a voz dela, ouço a tua voz, David!
O meu silêncio entre soluços inaudíveis
Uma multidão de vozes entre assuntos que se vão sobrepondo e misturando
Uma amálgama de anos que se contorcem
Sem que se sobreponham ou confundam
Protegidos pela ternura
Antes
Agora
Dias a fio de dor
Outros de quase serenidade
Mas em outubro
Tudo é disforme, porque sim
Nada faz sentido
O que não pode acontecer
Acontece
Embora não possa acontecer
Porque há certas coisas que não podem acontecer
Diziam-me
E eu fingia que sim
Que não
Com certeza, não
E então
Aconteceu, David
Mesmo sabendo que não podia
Porque, afinal, às vezes, acontece
Ainda que fiquem
A voz
Uns olhos verdes alegres de ternura
Uma certa ironia
O pronunciar do teu nome que me faz virar, na rua
Os palcos vazios
A luz
E o convite
"Mamã, vamos dançar?"
3
1 Outubro 07"A minha vida é um caos. Todas as horas são dedicadas a tratar do David, das refeições, da medicação, das idas ao Sr. António, das idas à psiquiatra. Nada disso me cansa. O furacão é cá dentro. Só o deixo um bocadinho quando vou ao supermercado ou a Santo Tirso, mas nunca fica sozinho.
Foi a nova consulta com a psiquiatra. Já falámos com o médico, no passado dia 28. Esperança? Pouca! Já morri mil vezes! Não sei porque pergunto; a resposta é sempre a mesma.
Estamos à espera de começar o tratamento no HGSA. Sinto-me endoidecer e a ter dificuldade em manter a calma e a energia que o David precisa de ver em mim. Anda com crises de diarreia; o Imodium não resolve. Fezes brancas da icterícia. Está com pensos de 100mg de morfina, 1 Servedol, ao deitar; Xanax e Kainever. Para além do Dacortin e do Lasix, por causa da retenção de líquidos e dos pés e das pernas inchados.
Mesmo assim, vou dar com ele acordado e sentado na casa de banho, às duas ou três da manhã. Lá está, magro, esguio, quietinho. Não quer incomodar ninguém e não me chama; eu é que o ouço. Continuo a não tomar nada para dormir e sinto o mais leve movi- mento dele. Às vezes, ficamos, ali, os dois sentados! Ele a cambalear de sono; eu, para estar ao pé dele e... o levar de regresso ao quarto, para o ajudar a deitar-se.
As lesões aumentaram tanto! A quimioterapia, que vai fazer, tem de dar algum resultado. Apesar de triste, delgado, muito cansado (por causa do fígado), continua com projectos de espectáculos. O que é espantoso, impressionante e comovente! Eu incentivo-o; pergunto-lhe se já conseguiu programar mais algum espectáculo ou se vendeu outros. Ofereço-lhe a minha ajuda para qualquer coisa que possa fazer se ele me ensinar.
Como se a vida continuasse normal.
Dorme muito e não tem dores, felizmente. As dores que começou a ter em Barcelona fizeram do mês de Agosto um inferno. Com a morfina fica um pouco estonteado mas conversa bem connosco sobre o que vão noticiando os telejornais; fala mal do Rui Rio, sempre que há mais notícias sobre o abandono a que é votada a cultura e deita-se no sofá a ver a Mezzo, com os pés em cima de almofadas (por causa do inchaço) e a fazer algum zapping, como antes. É bom que ele esteja, assim, um pouco sonolento!! É estranho dizer isto, mas é mesmo o que sinto. Queria que o sofrimento, as dores, a ansiedade não o atinjam, que passem ao lado. Tenho a mesma energia de sempre, para fazer tudo o que é necessário, com uma luzinha de esperança em cada sorriso que lhe dirijo.
Eu vigio; estou sempre à distância daquele “Mamã,...”, mesmo dito em voz quase inaudível! É a única forma de o proteger! Sei que a solidão o assusta, quer-me por perto e gosta de saber se algum sintoma novo será normal. Como se eu soubesse! Nada é, agora, normal... Mas digo-lhe que vou telefonar ao médico. Quer que seja, sempre, eu a falar. Nunca mais falou com o oncologista, desde Junho, quando se soube que não podia ser operado ao fígado.
“De não saber o que me espera” do Zeca Afonso é a canção que me martela os ouvidos, de tanto a ouvirmos, desde que o David me chamou a atenção para ela, já em Maio. Tal como a canção “Do que um homem é capaz” do álbum “Resistir é vencer” do José Mário Branco. Sempre me transmitiu mensagens, assim, sub- repticiamente! Nunca mais se ouviu aquela outra canção “Happy! My life is O.K.”, com que começava os dias.
Pobre David! São os olhos tristes e lentos... o que mais me dói. Dói muito e de forma indescritível. Por isso, não desabafo com ninguém; dizer o quê? Qualquer descrição desta ferida que trago escondida ficaria sempre aquém da dor real. Já repeti, para mim própria, mil vezes – a minha dor não interessa aos outros.
E a mim, só me interessa o David. Este meu filho tão doente! Como o protegerei dessa ameaça negra?
O silêncio é o escudo protector contra o choro convulsivo do meu coração rasgado."
Eu vigio; estou sempre à distância daquele “Mamã,...”, mesmo dito em voz quase inaudível! É a única forma de o proteger! Sei que a solidão o assusta, quer-me por perto e gosta de saber se algum sintoma novo será normal. Como se eu soubesse! Nada é, agora, normal... Mas digo-lhe que vou telefonar ao médico. Quer que seja, sempre, eu a falar. Nunca mais falou com o oncologista, desde Junho, quando se soube que não podia ser operado ao fígado.
“De não saber o que me espera” do Zeca Afonso é a canção que me martela os ouvidos, de tanto a ouvirmos, desde que o David me chamou a atenção para ela, já em Maio. Tal como a canção “Do que um homem é capaz” do álbum “Resistir é vencer” do José Mário Branco. Sempre me transmitiu mensagens, assim, sub- repticiamente! Nunca mais se ouviu aquela outra canção “Happy! My life is O.K.”, com que começava os dias.
Pobre David! São os olhos tristes e lentos... o que mais me dói. Dói muito e de forma indescritível. Por isso, não desabafo com ninguém; dizer o quê? Qualquer descrição desta ferida que trago escondida ficaria sempre aquém da dor real. Já repeti, para mim própria, mil vezes – a minha dor não interessa aos outros.
E a mim, só me interessa o David. Este meu filho tão doente! Como o protegerei dessa ameaça negra?
O silêncio é o escudo protector contra o choro convulsivo do meu coração rasgado."
in "Mamã, vamos dançar?"
1 comentário:
E é assim em cada Outubro, as memórias voltam vivas e dolorosas. Beijinhos Isabel.
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