Fala-se de dias e dias que escorrem ... sem um filho que partiu! Fala-se à toa ... e escreve-se, sempre, para silenciar a saudade ou as lágrimas. À toa ...
15 outubro 2018
Jazz faz tarde - David Sobral - Swing
Já se fazia tarde
Estava ciente disso, embora não acreditasse
Afinal, há coisas que não podem, nunca, acontecer
A minha incredulidade, ainda hoje
Saídos de casa, no dia 13, sábado, em direção à urgência
Internamento, a dois
Um quarto branco, a dois
Sorrisos tímidos e cansados, os teus
Meigos, os olhares de frente
E francos
Conversas sussurradas
De quem não deixa nada por dizer
Entre quatro mãos entrelaçadas
Dias que se iam desfazendo, a dois
Numa enfraquecer súbito
Na lonjura da casa, os dois
Donde chegavam só rumores
Que já não ouvíamos
Nada para além daquele quarto branco
Já nem a tua música
01 outubro 2018
"terapia de checkpoint imunitário"
1
Outubro recomeça.
Um Nobel da Medicina
Ensaio clínico
Falhado em Barcelona
Já então - Imunoterapia
Obrigada, David
2
Ouço a voz da minha mãe
"Isabelinha, quando deixarás de chorar?",
Sabendo ela que nem eu, nem ela, deixaríamos de chorar
A par do respirar
Ouço a voz dela, ouço a tua voz, David!
O meu silêncio entre soluços inaudíveis
Uma multidão de vozes entre assuntos que se vão sobrepondo e misturando
Uma amálgama de anos que se contorcem
Sem que se sobreponham ou confundam
Protegidos pela ternura
Antes
Agora
Dias a fio de dor
Outros de quase serenidade
Mas em outubro
Tudo é disforme, porque sim
Nada faz sentido
O que não pode acontecer
Acontece
Embora não possa acontecer
Porque há certas coisas que não podem acontecer
Diziam-me
E eu fingia que sim
Que não
Com certeza, não
E então
Aconteceu, David
Mesmo sabendo que não podia
Porque, afinal, às vezes, acontece
Ainda que fiquem
A voz
Uns olhos verdes alegres de ternura
Uma certa ironia
O pronunciar do teu nome que me faz virar, na rua
Os palcos vazios
A luz
E o convite
"Mamã, vamos dançar?"
3
1 Outubro 07"A minha vida é um caos. Todas as horas são dedicadas a tratar do David, das refeições, da medicação, das idas ao Sr. António, das idas à psiquiatra. Nada disso me cansa. O furacão é cá dentro. Só o deixo um bocadinho quando vou ao supermercado ou a Santo Tirso, mas nunca fica sozinho.
Foi a nova consulta com a psiquiatra. Já falámos com o médico, no passado dia 28. Esperança? Pouca! Já morri mil vezes! Não sei porque pergunto; a resposta é sempre a mesma.
Estamos à espera de começar o tratamento no HGSA. Sinto-me endoidecer e a ter dificuldade em manter a calma e a energia que o David precisa de ver em mim. Anda com crises de diarreia; o Imodium não resolve. Fezes brancas da icterícia. Está com pensos de 100mg de morfina, 1 Servedol, ao deitar; Xanax e Kainever. Para além do Dacortin e do Lasix, por causa da retenção de líquidos e dos pés e das pernas inchados.
Mesmo assim, vou dar com ele acordado e sentado na casa de banho, às duas ou três da manhã. Lá está, magro, esguio, quietinho. Não quer incomodar ninguém e não me chama; eu é que o ouço. Continuo a não tomar nada para dormir e sinto o mais leve movi- mento dele. Às vezes, ficamos, ali, os dois sentados! Ele a cambalear de sono; eu, para estar ao pé dele e... o levar de regresso ao quarto, para o ajudar a deitar-se.
As lesões aumentaram tanto! A quimioterapia, que vai fazer, tem de dar algum resultado. Apesar de triste, delgado, muito cansado (por causa do fígado), continua com projectos de espectáculos. O que é espantoso, impressionante e comovente! Eu incentivo-o; pergunto-lhe se já conseguiu programar mais algum espectáculo ou se vendeu outros. Ofereço-lhe a minha ajuda para qualquer coisa que possa fazer se ele me ensinar.
Como se a vida continuasse normal.
Dorme muito e não tem dores, felizmente. As dores que começou a ter em Barcelona fizeram do mês de Agosto um inferno. Com a morfina fica um pouco estonteado mas conversa bem connosco sobre o que vão noticiando os telejornais; fala mal do Rui Rio, sempre que há mais notícias sobre o abandono a que é votada a cultura e deita-se no sofá a ver a Mezzo, com os pés em cima de almofadas (por causa do inchaço) e a fazer algum zapping, como antes. É bom que ele esteja, assim, um pouco sonolento!! É estranho dizer isto, mas é mesmo o que sinto. Queria que o sofrimento, as dores, a ansiedade não o atinjam, que passem ao lado. Tenho a mesma energia de sempre, para fazer tudo o que é necessário, com uma luzinha de esperança em cada sorriso que lhe dirijo.
Eu vigio; estou sempre à distância daquele “Mamã,...”, mesmo dito em voz quase inaudível! É a única forma de o proteger! Sei que a solidão o assusta, quer-me por perto e gosta de saber se algum sintoma novo será normal. Como se eu soubesse! Nada é, agora, normal... Mas digo-lhe que vou telefonar ao médico. Quer que seja, sempre, eu a falar. Nunca mais falou com o oncologista, desde Junho, quando se soube que não podia ser operado ao fígado.
“De não saber o que me espera” do Zeca Afonso é a canção que me martela os ouvidos, de tanto a ouvirmos, desde que o David me chamou a atenção para ela, já em Maio. Tal como a canção “Do que um homem é capaz” do álbum “Resistir é vencer” do José Mário Branco. Sempre me transmitiu mensagens, assim, sub- repticiamente! Nunca mais se ouviu aquela outra canção “Happy! My life is O.K.”, com que começava os dias.
Pobre David! São os olhos tristes e lentos... o que mais me dói. Dói muito e de forma indescritível. Por isso, não desabafo com ninguém; dizer o quê? Qualquer descrição desta ferida que trago escondida ficaria sempre aquém da dor real. Já repeti, para mim própria, mil vezes – a minha dor não interessa aos outros.
E a mim, só me interessa o David. Este meu filho tão doente! Como o protegerei dessa ameaça negra?
O silêncio é o escudo protector contra o choro convulsivo do meu coração rasgado."
Eu vigio; estou sempre à distância daquele “Mamã,...”, mesmo dito em voz quase inaudível! É a única forma de o proteger! Sei que a solidão o assusta, quer-me por perto e gosta de saber se algum sintoma novo será normal. Como se eu soubesse! Nada é, agora, normal... Mas digo-lhe que vou telefonar ao médico. Quer que seja, sempre, eu a falar. Nunca mais falou com o oncologista, desde Junho, quando se soube que não podia ser operado ao fígado.
“De não saber o que me espera” do Zeca Afonso é a canção que me martela os ouvidos, de tanto a ouvirmos, desde que o David me chamou a atenção para ela, já em Maio. Tal como a canção “Do que um homem é capaz” do álbum “Resistir é vencer” do José Mário Branco. Sempre me transmitiu mensagens, assim, sub- repticiamente! Nunca mais se ouviu aquela outra canção “Happy! My life is O.K.”, com que começava os dias.
Pobre David! São os olhos tristes e lentos... o que mais me dói. Dói muito e de forma indescritível. Por isso, não desabafo com ninguém; dizer o quê? Qualquer descrição desta ferida que trago escondida ficaria sempre aquém da dor real. Já repeti, para mim própria, mil vezes – a minha dor não interessa aos outros.
E a mim, só me interessa o David. Este meu filho tão doente! Como o protegerei dessa ameaça negra?
O silêncio é o escudo protector contra o choro convulsivo do meu coração rasgado."
in "Mamã, vamos dançar?"
11 setembro 2018
10 Setembro 2007
11 anos!
Tempo difuso para além de qualquer contagem em ponteiros de relógio ou sol-pôr ou alvorecer.
Tempo palpável, rugoso e lamacento.
Lodo.
Tempo retilíneo de então para hoje, pontilhado de flashes de conversas a dois, de imagens soltas na intermitência dos dias ...
Todos os dias.
11 anos!
O ensaio clínico falhou, viram-nos as costas!
David, ... nunca foi nome. Apenas código de um número atribuído quando se mergulha de cabeça num ensaio clínico.
Davides, heróis anónimos, contra Golias.
Descobrimos que estamos assustados e sós.
Tu estás só; talvez penses ainda que eu tenho um plano!
Sossegas, dormente, ...
Afinal, a mãe já rascunhou a próxima janela.
Eu não! Eu sei que estamos sós numa jangada sem rumo.
Qualquer porto serve.
11 anos!
Anoiteceu no calor infernal daquele verão em Barcelona.
Num banco de jardim, distante dos ouvidos de um filho, entre cigarros alvoroçados, uma prece aflita ao outro filho cá longe.
Desenhar uma janela que se chame Paris!
11 anos!
As malas, feitas à pressa, estão à porta.
O Manel chegou do Porto. Último voo, urgente.
Amanhã, um regresso desassossegado, a uma casa sem rosto.
11 anos!
Tempo difuso para além de qualquer contagem em ponteiros de relógio ou sol-pôr ou alvorecer.
Tempo palpável, rugoso e lamacento.
Lodo.
Tempo retilíneo de então para hoje, pontilhado de flashes de conversas a dois, de imagens soltas na intermitência dos dias ...
Todos os dias.
11 anos!
O ensaio clínico falhou, viram-nos as costas!
David, ... nunca foi nome. Apenas código de um número atribuído quando se mergulha de cabeça num ensaio clínico.
Davides, heróis anónimos, contra Golias.
Descobrimos que estamos assustados e sós.
Tu estás só; talvez penses ainda que eu tenho um plano!
Sossegas, dormente, ...
Afinal, a mãe já rascunhou a próxima janela.
Eu não! Eu sei que estamos sós numa jangada sem rumo.
Qualquer porto serve.
11 anos!
Anoiteceu no calor infernal daquele verão em Barcelona.
Num banco de jardim, distante dos ouvidos de um filho, entre cigarros alvoroçados, uma prece aflita ao outro filho cá longe.
Desenhar uma janela que se chame Paris!
11 anos!
As malas, feitas à pressa, estão à porta.
O Manel chegou do Porto. Último voo, urgente.
Amanhã, um regresso desassossegado, a uma casa sem rosto.
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