Aqui estou, David.
Nove anos passados ou apenas
ontem?
Um tempo sem nexo, parado
dentro de mim, em tudo diferente do tempo cósmico em que o mundo avança
indiferente a esta tragédia avassaladora.
Sempre tu, ao meu lado, a cada
acordar
À minha frente, em cada
percurso diário.
Atrás, desde há muito, a tua
cabeça pousou sobre o meu ombro. Aí
permanece porque é pelos teus olhos que sinto o que vejo.
O teu coração guia-me, em tudo o que faço.
O teu AMOR atravessa
intocável o tempo da minha existência e todo o imenso mar de saudades, em que
navego.
Mas, hoje, recordo nitidamente cada momento de há
nove anos.
18 de outubro 2007
“O meu filho morreu, no
início da tarde. Não notei qualquer movimento de abandono. Não ouvi qualquer
tipo de lamento, som ou suspiro mais fundo. A mão dele manteve-se imóvel, na
minha, e o braço pousado ao longo do corpo, sobre o lençol branco. Mas parou o
respirar já lento,... muito lento e espaçado.
Fui a correr, aflita,
chamar o enfermeiro. O meu filho deixou de respirar! É o fim!? É assim,... a
morte? Um estar e não estar súbito? Este ausentar-se para um espaço
impenetrável, onde está imune a toda a dor?
E chorei todo o
desespero, chorei a saudade, a impotência, a raiva e a dor... Tanta dor, revolta
e saudade... Tanta saudade já e um imenso e indescritível vazio. Só vazio, só
saudade, uma saudade já desmedida! Uma saudade doida e dilacerante!
Oh, David! Porquê,
David? Não podes ir-te assim! E eu? Que faço, agora, David? Estou tão habituada
a que me guies! Foste tu quem me amparou e foi a tua força admirável que me deu
força! Não me deixes, meu filho. Leva-me contigo, deste lago de dor imensa.
Deixa-me afundar contigo.
Um enfermeiro toca-me no
ombro. Lamenta. Dá-me mais 15 minutos. Porquê só 15 minutos? Já mo querem
tirar? Porquê tão depressa? Onde vamos? Acabou-se! Terminou tudo? Mas estou
aqui e respiro, ainda,... porquê? Não faz sentido que eu respire, estando o meu
filho morto! Não pode ser assim. Não posso ser eu... esta mãe não se despede.
Quero morrer com ele...
A mão do David está
presa na minha e faz-me festas, para um último abraço da noite. Mas não é ele,
sou eu que seguro a mão dele e a arrasto, pela minha cara, pela minha cabeça,
pelo cabelo. As minhas mãos entre as do Sérgio e a do David. A mão do Manel no
meu ombro. Mas a solidão e uma insuportável saudade... Gostava que me
arranjassem um barquinho para as cinzas do David, no mar de Moledo.
Chegou a hora!
Novamente!? Mas hora de quê? Afastam-me do David! Não quero, o que farei? Queria
ficar ali; que o mundo escurecesse para mim, mas queria ficar ali! A Olga
aparece; vem a correr!! Deixem-na ver o David. Por favor, esperem! Tem de ser.
Ela, sim! Ela precisa de se despedir deste amor tão recentemente descoberto e
já perdido. Porquê tanta pressa? Só restam nostalgia, lodo e saudade! E o
David, ali, silencioso!
Os enfermeiros esperam à
porta. Acho que sei o que querem fazer. Empurram-me, levemente, mas empurram-me
e eu vou ... Arrependo-me, não devia ter ido!! Para onde me mandam?
Um imenso sol.
Transpiro. Que estranho sol! Porque não chove? Subitamente, estou cá fora, à
entrada das consultas externas, onde estive tantas vezes, com a Berta Ribas,
nas esperas da quimioterapia. Como chegámos aqui? Que caminhos sinuosos
percorremos? O Sérgio e a Carla andam à minha roda, perguntam se quero água, um
sumo, se não é melhor sentar-me e sair do sol. Sobressalto-me por estar na
rua... Não distingo o que me rodeia. E o David não saiu comigo!
Quero ficar encostada ao
muro do hospital; vivo, ali, há seis dias; é aquela a minha casa. Onde me sinto
protegida. É onde está o David! A minha casa é ele! Muito alvoroço! Pedem-me
que me acalme, que ouça. Precisam de algumas respostas minhas ... Todos me
fazem as mesmas perguntas... Vou respondendo! Mas que diferença faz? Tudo é
mais ou menos indiferente... sem o David!
O David, envolto num
lençol branco, está deitado naquela mesa gelada da morgue. Ainda, há pouco, lhe
segurava na mão, morna e suave. Ainda há pouco, o vi dançar ao som das canções
da Maria João. Ainda há pouco, andámos à procura de uma guitarra em Madrid!
Nasceu há pouco, o meu filho! É ainda um menino! Um dos meus meninos tão
amados...
Faço-lhe festas na cara,
no nariz frio, nas mãos demasiado brancas. Não querem, acham que fico mais
perturbada. Mas se este é o meu filho! Será sempre! Porque ficaria perturbada?
Estou dentro dele. Quero adormecer com a minha cara encostada à dele. E que o
resto desapareça; que tudo se esfume...
Mandam-me sair.
Pretendem vesti-loPorque passa o tempo tão veloz? Estou confusa. Há cinco
minutos o David respirava! Chamam-nos. Podemos voltar a entrar.São o Manel e o
Sérgio quem me arrasta. Aproximo-me dele; está bonito. Mesmo agora. Sempre foi
muito bonito, o meu filho! Volto a sair, pela mão do Sérgio. Vão pôr-lhe um
lençol por baixo; parece muito desconfortável, assim, em contacto com a
frialdade da chapa de alumínio.
Volto a entrar... a
minha cara encostada à dele. Faço-lhe festas no cabelo. Não o quero ali; está
tanto frio! Se eu pudesse ficar deitada, no banco que está ao lado. Só deitada,
sem mais nada. Só e em repouso, como o que ele parece ter encontrado.
Ainda há pouco
combatíamos juntos contra um inimigo incógnito, invulgar e tenebroso. Agora...
Já não preciso de forças; acabou-se tudo. Tenho a pergunta na garganta “Não
posso ficar aqui, esta noite?” Repetem-me que tenho de sair e saio. Mas custa muito
largar-lhe a mão! Voltam a perguntar; se quero o caixão fechado. Amanhã!
O David quereria. Tenho
de querer, mesmo sabendo que não volto a ver a cara do meu filho. Não o
voltarei a ver? Assusto-me com esta ideia. Fim? Para sempre? Se o vão fechar;
amanhã, já não o poderei ver. Não compreendo como é possível! Mandam sair.
Devagar! Quero passar-lhe, mais uma vez, a mão pelo cabelo, pela cara. Esfregar
o meu nariz no dele, como quando era pequenino. Afagar-lhe as mãos. Encostar o
ouvido ao coração que já não bate; antes tinha um coração forte, com música
pausada. Agora, só ouço silêncio!
Vou sair e não posso
voltar. Sei que o meu filho vai passar a noite sozinho. Não estarei ali para
lhe massajar os pés, para o ouvir falar de sonhos que acalenta, dos filhos que
vai ter e da forma como os vai criar e apoiar sempre... com aquele amor
incondicional, só dele!
“Como tu sempre fizeste,
mamã!”.
Dizia-me este filho, orgulhoso da sua mãe!
Foi tão bom, é tão bom ser
tua mãe, David!!
Agora, que farei? Sem o teu abraço, à noite; o meu coração, agora,
despojado de qualquer esperança. Despedi-me só hoje, há pouco e já tenho tantas
saudades. Tu nunca te despediste. Ainda bem! Havias de regressar a casa! Para
viver e encher os palcos de luz. Esta é a única ideia que não me faz morrer. Ou
seria uma tortura ainda mais insuportável. Mas como fazer para morrer?
Como vou tomar conta do
Sérgio e do Manel, com o resto de vida que me sobra? E que parece querer
puxar-me para o silêncio, para a penumbra, para o nada ... onde não sinta a
tontura desta saudade que me engole. Fecharam a porta; não posso olhar para
trás! Puxam-me para longe.”