18Julho07
Foi um dia louco, de ira; sim, de ira
... totalmente incompreensível e inverosímil!!
Eu e o David partimos, para mais uma tentativa
de cura no estrangeiro. Desta vez, em Barcelona, no Hospital Vall d’Hebron, com
a equipa de ensaios clínicos de uma nova droga para tratamento do cancro do
cólon e do mieloma, orientada por um médico oncologista chamado José
Tabernero.
Chegados ao aeroporto, decidimos
seguir directamente para o Hospital, sem passar pelo hotel, a deixar a mala. A
consulta estava marcada para as 13:30h; ainda faltava mais de uma hora, mas o
David preferiu assim; disse-me que já tinha intenção de chegar e pedir, de
imediato, para avisarem os médicos de que já lá estava. Podia ser que nos
atendessem mais cedo!
Foi o que ele fez e o que aconteceu.
No balcão de atendimento, logo lhe disseram que o chamariam, assim que o Dr. A.
acabasse de atender o doente que tinha no consultório e que não demoraria
muito. Lembrei-lhe que o pai estava a contar com a consulta às 13:30h. Disse
que lhe ia enviar um sms a avisar,
mas que entraria imediatamente, assim que o chamassem para a consulta.
Não queria saber disso!
Sentámo-nos; estávamos cansados da
viagem e do calor. Eu tirei o tricot, como me habituei a fazer, nestas esperas,
para controlar a ansiedade. Embora, raramente resulte ... A sala estava cheia;
gente que aguardava consulta, outros que iam fazer quimioterapia ou análises
de controlo. Em tudo, semelhante àquilo a que estávamos habituados no HGSA, mas
com muito mais gente e mais e melhores instalações.
Era isso que eu e o David íamos
comentando, para além de conjecturarmos sobre o que se iria passar e qual seria
a decisão. A decisão do David! Só dele ...
A certa altura, no meio da conversa, o
David fez-me esta pergunta estranha “Mandaste algum e-mail a toda a família do meu pai?”
...
Fez-se luz no meu espírito ... claro! Percebi
tudo! Que ilusão, que burrice e que ingenuidade a minha! Acreditar que, para
eles, o David estaria primeiro! Que a saúde do David era a única coisa que
importava, em vez do reavivar de querelas esquecidas e sem sentido de um
divórcio relativamente pacífico ... já do século passado, há mais de 25 anos!!
Percebi, logo, que se referia ao e-mail pessoal e confidencial que eu tinha mandado à prima do
David, por eu gostar realmente dela, por pensar que havia um elo especial de
amizade entre os dois primos e também por ser médica e contar com a ética dela, a pedir ajuda ... para
ele ... o primo dela!! Ajuda que ela lhe negou, bem ciente do estado debilitado
em que ele andava! Ajuda que ninguém deu, ... uma vez que divulgara o meu e-mail explicitamente confidencial à família dela!!! Num foward geral, indiscriminado!!! Nem sei a quem!!
Expressamente eu a pedir sigilo, que ela quebrou, ...
divulgando-o, desta forma macabra! Que coisa espantosa!! E a versão para o meu filho era que EU tinha mandado um e-mail a toda a
família!? Eu?? Eu não! Ela, sim! Aquele e-mail
fora um pretexto para o pai do David se queixar de mim, ao filho! Numa
situação destas?
Que revolta e que ódio dentro de mim,
nestes pensamentos imediatos! Eu não merecia. O David muito menos ... Sobretudo
o David não merecia esta desumanidade! Ela não é mãe, não deve perceber esta
dor ... mas podia ter parado um bocadinho para pensar antes de tamanha aleivosia!
Que incrível atitude ... para com o David ... com um cancro terrível! Que me
tivesse telefonado a rejeitar o meu pedido, a dizer-me o que quisesse. Mas não
... a honra da FAMÍLIA está primeiro!! Em que filmes já vi isto?
Não hesitou um pouquinho a pensar no
David!! Que cruel! Será que, algum dia, lhe interessou o estado de saúde do
primo?
...
Disse ao David que sim, que mandara um
e-mail à prima; só à prima! Devia ser só
entre mim e ela! A pedir auxílio ... porque ele estava a ser teimoso, muito
obstinado e insensato na recusa de continuar com as consultas da psiquiatra.
Eu queria que ela o convencesse e que me ajudasse! Explicava-lhe, claro, as
razões do meu pedido (relacionamento estranho com o pai) e que eram as que ele invocava, sempre que eu lhe falava
no assunto. Contei-lhe tudo … que não era muito! Era só isto! Como se numa
situação tão dolorosa para uma mãe ... qualquer outro detalhe interessasse! Que
ideias tão enviesadas e tenebrosas! Que cabeça tão pouco saudável, a dela! E disse ao David que lhe mostraria o e-mail, assim que regressássemos.
Ficou triste, muito consternado ... Pensava alto ... O pai tinha lido o e-mail e ... não fizera nada ... além de se queixar de mim!
Colocara-se do lado da sobrinha e não do filho! E disse-me que eu tinha
procedido bem; que é natural uma mãe tentar tudo pelo filho, um filho que nada
sabe do futuro que o espera; que “não sabe quantos anos tem de vida” sob aquela
espada afiada ...
Que penar tão grande, o deste meu filho! ...
pensava eu, com a
“raiva a nascer-me nos dentes”. Mas ele continuou, com uma serenidade
surpreendente, a dizer que faria o mesmo pelos filhos, numa situação assim tão
crítica. E que acredita que ainda vai ter filhos e que vai apoiá-los, como eu
sempre fiz.
Que vai esclarecer tudo! Com a Mafalda, com o Pai.
Mas instalara-se uma profunda tristeza nos
olhos do meu filho. E dói tanto quando os olhos dos filhos sofrem ...
O pai e o tio chegaram. O David quis
clarificar tudo sobre o e-mail “da
minha mãe”, logo ali. Discussão violenta; acusações de parte a parte ... O
David a repetir “É mentira!” Toda a gente a olhar!
...
Fomos chamados para a consulta. Que
alívio!! Os médicos esclareceram que vão analisar as amostras em parafina, para
verificarem se o organismo do David é receptivo à droga que está a ser testada.
Explicaram, ainda, como decorrerá o tratamento se o David for aceite. Que tudo
indica que sim! Dentro de alguns dias, comunicarão os resultados.
E saímos; ele com um ar mais
determinado, muita revolta e desolação no olhar.
Lá fora, mais zanga. Berros e revolta e lágrimas gordas nos olhos do meu filho. O pai só exigia respeito ... O David exigia,
também ele, respeito, por uma vez que fosse! E exigiu distância … porque
aquele estilo de apoio familiar ... não o quer ... não lhe faz bem. Sempre teve dois
pais! Mas só um deles, o Manel, é que não lhe pede nada em troca; dá-lhe apoio
incondicional! Era só disso que precisava, desde o início ... não era pedir muito ... apoio,
apenas!
Solidariedade é uma coisa que nunca compreenderam! Apenas dominam a linguagem do dinheiro e da raiva contra quem não se submete. Mesmo um filho à espera ... talvez ... da morte!!
Um discurso entrecortado de soluções, de muita desilusão, mas lúcido. Terrivelmente lúcido.
Dolorosamente lúcido!
.....
Ficámos sozinhos. O David sentou-se, revoltado e frágil, nas escadas do
hospital. Chorava de fúria e eu tentava acalmá-lo. Soluçava! “É para aqui que
venho e hei-de curar-‑me! Quando ficar bom, explicar-lhe-ei o que é a
solidariedade e o que é um apoio incondicional! Até lá, só quero distância.
Muita distância! O meu perdão, nunca o terão!”
Foi arrepiante! O David, sozinho, naquela discussão seca de qualquer
ternura, de qualquer vestígio de humanidade ... E ele tão doente, tão cansado
de lutar! Eu sempre lidei muito mal com a agressividade; não é segredo para
ninguém. Devia ter pedido ao Manel que viesse; nada disto teria acontecido! Ele
saberia como acalmar o David.
Ficámos mais um pouco, até o David recuperar a serenidade. Apanhámos um
táxi e foi, cambaleante, para o hotel. Estava muito calor e o David precisava de repouso e
de relaxar. Combinámos ir, ao fim da tarde, até às Ramblas, lanchar e passear
um pouco. Esta cidade é muito bonita, o David gosta dela, conhece-a bem e quer
mostrar-me os sítios interessantes.
E foi o que fizemos.
...
O David parecia ter acalmado e estava bem disposto. Visitámos La Boqueria,
o bonito mercado de Barcelona; as praças interiores, com imensas mesas e cafés
cheios de gente a beber coisas frescas; o Liceu, teatro onde o David já esteve
... o Barrio Gótico ...
Finalmente, sentámo-nos numa esplanada e jantámos, enquanto conversámos sobre
o que se tinha passado. O David disse que está inclinado para optar por
Barcelona e que não ia gastar energias a preocupar-se com discussões nem gente medíocre.
Basta-lhe o apoio incondicional de toda a “massa associativa” que tem à volta
dele! E riu-se, o meu doce filho!
Tinha gostado muito do Prof. Machover, mas o ensaio clínico já está a
começar e não arrisca perder a oportunidade! Se não
resultar, pode sempre voltar a Paris. O contrário não seria possível.
Falou de tudo isto de forma serena. A coragem e discernimento do David são
extraordinários. De forma alguma, o que escrevo nestes diários dá a ideia
exacta da postura dele, perante a vida. Todos os nossos amigos o admiram mas
ele é muito mais do que aquilo que deixa transparecer. Só quem está perto dele
24h, por dia, se apercebe do lutador que é, da sua natureza afável que, mesmo
doente, se preocupa com a saúde e o bem-estar dos outros. Qualquer forma de o
tratar menos bem ou com menos compreensão é inadmissível,
cruel e desumana; porque isso magoa-o desmesuradamente e ele está muito debilitado.
Aprecia todas as atenções que lhe prestam e todo o carinho que lhe manisfestam.
...
Viemos deitar-nos cedo. Parecia calmo.
Deu-me um grande abraço, antes de ir para o quarto dele, e disse-me “Vai correr
tudo bem, mamã! Eles nunca nos mereceram!”
Eu vivo de uma forma confusa, nesta agitação incoerente; o David consegue
que eu me sinta optimista e transmite-me toda a
coragem e força para resistir. É ele quem comanda as minhas emoções. E, durante
o dia, é assim que me sinto; mas, à noite, voltam o medo, os calafrios, uma
enorme agonia, o não compreender que vida é esta, o imaginar que os dias, tal
como os conheci, não voltarão. Chorei porque a raiva e a revolta se avolumaram
pelo facto de o David se ter sentido tão mal amado ... por quem amava.
Em que irá ele pensar na
solidão do quarto, aqui ao lado? Ficará, como eu, a tentar apreender que
gigantesca onda de sofrimento é esta, em que lutamos dia a dia para nos
mantermos à tona; em que o medo acompanha o ritmo da respiração; em que não
percebemos que enigmática e cruel cegueira se apodera tão intensamente de
algumas pessoas??
Espero que não! Espero que
a força com que vive cada dia, o faça adormecer e o embale em sonhos com palcos
que ele ilumina, para receberem a música ...
A música é a verdadeira
paixão do David.
in "Mamã, vamos dançar?"