26 abril 2014

Vais chegar nas asas das andorinhas!


                             


Hoje.   Agora.    Há 36 anos.    Não dormia.    A nossa mala preparada junto à janela.   O filho Sérgio, com quase dois anos, adormecido ali ao lado.    No meio do silêncio, eu esperava a madrugada.   Uma criança estava prestes a chegar.    Amanhã, a 27 de Abril.

Não estava assustada.    Um pouco nervosa, talvez.     Tinha 22 anos e sonhos por realizar.   A criança a chegar era bem-vinda.   Tão desejada!    Menino?   Menina?   Não importava.   A cor da roupa de bebé era indiferente.   Era da cor do arco-íris.

Eu tinha 22 anos.   Já com um filho.    Era uma mãe muito jovem.   Era uma menina crescida já muito ciosa do seu papel de mãe.   Era, afinal, o que sempre quisera ser  -   Mãe.     Uma mulher menina muito mãe.     Fora assim que me vira, desde sempre.     Desde adolescente, menina namoradeira, menina maria rapaz.   Mas um dia ... seria mãe.

E então vieste   ...    menino.     Outro rapazinho!    Eu encantada!     E mais uma noite, sem dormir.   Porque a passei a olhar para ti.   Num quarto, eu e tu, no segundo piso da Trindade.

(Que bom ter fixado essa imagem. De forma tão nítida, ainda hoje.)

Tu, recém-nascido de mim.     Um bebé bonito e perfeito.   Adormecido e sereno no berço ao meu lado.   Na tua fatiota azul escuro com um barquinho vermelho bordado.   A tua pele clara e lisa.   As mãos pequeninas e papudas entrelaçadas.   A fazer beicinho.    Os olhitos cerrados mas que se adivinhavam compridos, largos (depois, verdes).    Deitado para o lado esquerdo ... para que te pudesse ver e sentir o teu cheiro.

(Mamã, e eu? Também foi uma cegonha que me trouxe? / Não, David, tu vieste nas asas das andorinhas de Abril.

E foi sozinha, durante o silêncio da noite, que escolhi o teu nome.   E ia chamando por ti.   David!   David!     Repetia e olhava para ti.   Sim.    David, ficava-te bem.    É um nome doce.   Sérgio e David combinavam bem, na minha cabeça de mãe, muito mãe dos seus meninos.

Estava definitivamente apaixonada por ti, David!    Sempre estive.    Ainda estou!    O meu amor por ti aumentará.    Visceral como o tempo.    Um amor incondicional, como sempre foi.   Partilhado, afinal.    E tu sabias.    Soubeste sempre.      Do meu amor por ti, dos meus sonhos, do meu sentir de mãe já não menina.

Agora ... que fazer deste amor incontornável, ferido de lonjura, mágoa e solidão, com intenso sabor a sal ...
Sal do mar, onde, sem saber como ali chegara, te deixei?

Até amanhã, David.  








02 abril 2014

Pretextos

 Só podia ser de mim para ti, David, este esboço de carta.
No vestir-me destas palavras  exactas.
Um pretexto para estar aí.
Esta impressão de solidão, ao fim da tarde.
Uma forma como qualquer outra de disfarçar que me escondo.
Esta troca de gestos invisíveis de ternura que nos une.
Pedir-te mais uma vez que fiques comigo; que não te vás.
Que eu, sem ti, não fico; não tenho onde ficar.
Que os dias deixaram de ser azuis.
Só o mar!
Onde, talvez, nos encontremos; abrigados nos corais.


Carta (Esboço)

Lembro-me agora que tenho de marcar um 
encontro contigo, num sítio em que ambos 
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma 
das ocorrências da vida venha 
interferir no que temos para nos dizer. Muitas 
vezes me lembrei de que esse sítio podia 
ser, até, um lugar sem nada de especial, 
como um canto de café, em frente de um espelho 
que poderia servir de pretexto 
para reflectir a alma, a impressão da tarde, 
o último estertor do dia antes de nos despedirmos, 
quando é preciso encontrar uma fórmula que 
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É 
que o amor nem sempre é uma palavra de uso, 
aquela que permite a passagem à comunicação ; 
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale, 
de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós 
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio 
ser, como se uma troca de almas fosse possível 
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e 
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas 
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde, 
isto é, a porta tinha-se fechado até outro 
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então 
as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem 
sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar 
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos 
para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que 
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por 
trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia 
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores 
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos 
encontrar, que há-de ser um dia azul, de verão, em que 
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí 
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas, 
que são as nossas: 
o verde das folhas e o amarelo 
das pétalas, 
o vermelho do sol e o branco dos muros. 



Nuno Júdice, in “Poesia Reunida”