27 agosto 2011

Sigo por dois caminhos ... par a par ...



Hoje que a tarde é calma e o céu tranquilo,
E a noite chega sem que eu saiba bem,
Quero considerar-me e ver aquilo
Que sou, e o que sou o que é que tem.

Olho por todo o meu passado e vejo
Que fui quem foi aquilo em torno meu,
Salvo o que o vago e incógnito desejo
De ser eu mesmo de meu ser me deu.

Como a páginas já relidas, vergo
Minha atenção sobre quem fui de mim,
E nada de verdade em mim albergo
Salvo uma ânsia sem princípio ou fim.

Como alguém distraído na viagem,
Segui por dois caminhos par a par.
Fui com o mundo, parte da paisagem;
Comigo fui, sem ver nem recordar.

Chegado aqui, onde hoje estou, conheço
Que sou diverso no que informe estou.
No meu próprio caminho me atravesso.
Não conheço quem fui no que hoje sou.

Serei eu, porque nada é impossível,
Vários trazidos de outros mundos, e
No mesmo ponto espacial sensível
Que sou eu, sendo eu por 'star aqui?

Serei eu, porque todo o pensamento
Podendo conceber, bem pode ser
Um dilatado e múrmuro momento,
De tempos-seres de quem sou o viver?

(1931)




26 agosto 2011

Falar de ti

Dizer "Fui à TVI, falar de quem perde um filho."
É, de alguma forma, banal.
Os filhos são sempre o filho especial de alguém.

Não!
Eu fui falar de ti.
Porque te arrasto comigo, onde quer que vá.
Sem sobrepor a minha presença à tua ausência que é mais presente e penetrante do que o meu "estar aqui".
É a ti que eu quero que conheçam.
É a ti que eu procuro que admirem.
O teu sorriso.
A tua coragem.
A tua imensa vontade de viver.

Não!
Eu não sofro, ao falar de ti.
O contrário é que me pesa e me tortura.
E falo sempre de ti.
Pois se o pensamento é constante!

E, no entanto, eu gosto do silêncio.
Tu vives dentro do meu silêncio
Que não se quebra
Por falar de ti.

Muitas coisas não voltarão a ser ditas.
As que foram partilhadas, tuas ou minhas.
E que só teriam sentido
Se não tivesses partido.

Assim, o que poderíamos, a dois, dizer
fica comigo.
No teu lugar vazio, intacto, dentro do meu coração,




"Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?"
Álvaro de Campos










23 agosto 2011

Palavras dos outros






Donde Estará Mi Vida

Una vez un ruiseñor
Por las claras de la aurora
Quedó presa de una flor
Lejos de su ruiseñora.

Esperando su vuelta en el nío
Ella vió que la tarde moría,
Y en la noche cantandole al río
Medio loca de amor le decía:

¿donde andará mi vía,
Porque no viene?
Que rosita encendera
Me lo entretiene.

Agua clara de caminos
Entre juncos y mimbrales,
Dile que tienen espinos
Las rosas de los rosales.

Dile que no hay colores
Que yo no tenga.
Que me muera de amores.
Dile que venga.



21 agosto 2011

Apesar da saudade

Mais um dia chamado 18, num mês de Agosto.
Um fim de semana quente, húmido e abafado.
Sufocante.
Impossível respirar.
Chuviscos, chuva imensa.
Um piquenique pelo meio, apesar da incerteza do tempo.
Com os amigos de há muito tempo.
Filhos e netos que, agora, se vão juntando.
Alguns vêm com os avós ...
Deambular por entre os sorrisos e vozes com timbre de alegria.
Tentar não pensar; concentrar-me em que tudo corresse bem.
Depois, mais chuva, relâmpagos, trovoada intensa.
A lembrar Barcelona em Agosto. 

E sempre a tua imagem, num outro piquenique ... antigo.
Em plena quimioterapia, tu, paciente, sentado na beira da piscina, com os pés metidos dentro de água, olhavas sorridente e confiante para os outros.

Desta vez, sentei-me, como dessa vez
... no muro de pedra, do lado oposto.
Donde te sorria, também confiante.
Também paciente.
Nesse piquenique antigo.






15 agosto 2011

Eu tenho sempre saudades.

Procuro não pensar no tempo.
A passagem dos dias ... dos anos torna-se pesada.
Em férias, à volta da mesa de amigos que se juntam, é comum começar a reviver episódios antigos.
Começa então "Foi em que ano? Antes de 200...? Nessa altura, ainda ..." e mal começo a sentir a aproximação de 2005 é como se uma barreira se interpusesse entre mim e os outros; entre mim e o meu passado.
2005 é o meu limite temporal, sem dor ao recordar.
A partir daí, bloqueio ...
Levanto-me.
Vou arejar.
Fumar um cigarro.
Limpar os olhos.
Respirar.
Olhar para aquela fotografia que, do parapeito da minha janela, olha para o monte.
Um outro monte, visto com outros olhos, sentido sem amargura.
Eu tenho sempre tantas saudades!

                                                                                 Barcelona - Agosto 2007

Espero que as conversas avancem.
Para dias inofensivos.
Para assuntos corre-corre.
A praia, o vento norte, as multas do piquenique, projectos de Inverno.
Ou então ...
Ouço o meu neto, mergulho nos olhos dele e deixo-me guiar.
Sem dor.


04 agosto 2011

Agosto!
Todos os dias são lembranças de momentos que passámos em fuga!
Quem me dera, agora, poder fugir de mim.


Jardins d'el Teatre Grec - Barcelona



A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
as árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.



Sophia de Mello Breyner Andresen

03 agosto 2011

Dias lentos

Hoje, o sol brilhou durante todas as horas do dia.
A praia encheu-se de gente.
Uns a passear à beira-mar, apesar do frio da água.
Outros a jogar a bola com aquelas raquetes pequenas e largas, parecendo perturbados à passagem dos que passeiam.
Muitos estendidos ao sol; frente, costas, frente, costas ... creme ...
Vozes alteradas "Viens ici, Hugo Paulo! Viens, rapide!"
"Ó Hugo, não ouves a tua mãe a chamar-te?"
Uma saca cheia de arrufadas a ser distribuída pelos filhos e sobrinhos.
Maré vaza, pela manhã.
Maré cheia, ao entardecer.
...
Finalmente, algumas gaivotas começam a rasar a areia.

Demasiado tempo, demasiada agitação, demasiado movimento.
E uma vontade de fugir por sobre as ondas, em direcção ao horizonte.
No fim do mar.
Sair deste dia longo.
Para o lado de lá, donde não vem som, onde nada se move ...
Descansar de tentar fazer de conta que eu ainda sou eu.
Uma mãe igual às outras ... com quem me cruzo.
Com quem converso, sentada na areia, em frente ao horizonte que fica lá no fim do mar.




Segredos do oceano

Ouvi o vento
Observei a minha vida
Nascer para ser selvagem...
Era o que eu pensava
Mas quem falou comigo?
Que não vi
Dei-lhe um beijo.
Talvez sinta a minha falta
Porque eu fugi
Por algum tempo
Em busca do meu dia
Esquecendo o meu lamento.

            Porquê chorar? Porquê?
            Não sei
            E não quero saber
            E não preciso
            E porquê chorar?

Os meus passos
A par do meu destino
Amarram os meus pensamentos,
De outro modo livres
Cheguei então ao meu destino
Onde está o mar
Corri pela praia
Parei quando procurei
Um pequeno cavalo-marinho
Com quem tinha falado
Disse que a razão da minha raiva
Me empurra para a morte
Procurei o que todos procuram
A imortalidade
Que não existe!
Mas eu sei
Que o segredo da imortalidade
É saber partilhar
Com os deuses a maravilha da criação
E os cavalos-marinhos mergulham
No oceano
E o silêncio chora comigo

David Sobral (1995)


02 agosto 2011

No escuro da casa.

O sono solta-se.
Desço a rampa no escuro, por entre as paredes brancas.
Como tantas vezes desci para te velar o sono, para ver se o teu quarto estava quente e confortável.
Para te dar um medicamento, calhado a desoras.
Sempre no escuro, por entre as paredes brancas ...
É, outra vez Moledo, em Agosto.

Não durmo. Regresso ao teu último Agosto, em Moledo.
Àquele Agosto em que o som do mar, ao fundo, era calmo.
Aos dias em que me sentia, ainda, confiante na cura e cuidava das minhas plantas, empoleirada nos muros do jardim.
O reflexo do sol nas casas brancas do monte aquecia-me os olhos; dizia-me que o pior tinha passado.
Confiava no brilho das estrelas e da lua no céu, sem levantar a cabeça. Sentia as estrelas cadentes, minhas aliadas, tuas protectoras.

É outra vez Moledo, em Agosto.
Tudo passou e nenhuma promessa foi cumprida pelo mar ou pelo o sol; ou pelas estrelas lá no alto.
E o sono anda à solta.
Perde-se na saudade do teu sorriso confiante, nesse mês de Agosto distante.
Que estende os braços e me toca e me amarra ... como se fora, agora.
Ao descer a rampa, em busca de nada.
Nem de uma estrela cadente.