Fala-se de dias e dias que escorrem ... sem um filho que partiu! Fala-se à toa ... e escreve-se, sempre, para silenciar a saudade ou as lágrimas. À toa ...
18 setembro 2009
Diários
Dia 18, Setembro 2009.
O meu livro avança devagar.
Digo "o meu livro" porque espero ter a coragem e sobretudo a capacidade de escrever algo que os outros possam ler.
Não tenho o distanciamento suficiente para o apreciar.
Alguém me ajudará.
É um livro que conta a história duma mãe e de um filho que, subitamente, adoece e o mundo , tal como até aí existia, desaparece.
É apenas um diário, nada mais que um diário, de dias de luta constante, de algumas alegrias, de muitas quedas e de um olhar que nunca deixou de ser luminoso e terno - o do meu filho.
Custa muito. Mesmo muito reviver as palavras escritas por mim, nos vários cadernos e blocos que sempre me acompanhavam (e acompanham).
Para não me desviar, impus-me escrever/rever, em cada dia, o diário do dia correspondente, em 2007.
Talvez assim, chegue ao fim.
Do texto desse dia, nesse ano de 2007, constavam as seguintes notas rabiscadas a lápis, num marcador de um livro qualquer...
"Eu e o Manel fomos falar com o Dr. F. e informá-lo de que vamos outra vez a Paris, com o David, no dia 26. A conversa foi longa e triste, naquele consultório onde estive tantas vezes com o David, ao longo deste último ano e meio.
Sempre com um medo escuro colado a mim, mas com olhos fingindo o verde da esperança.
O Manel disse ao Dr. F. que só nos é possível fazer e pedir uma coisa – tudo o que, ainda, puder ser feito. Por pouco que seja! Independentemente de estatísticas. Independentemente, de tudo. (Por favor, gritava eu cá dentro. Por favor, não mo deixe morrer, assim, sem um dia seguinte...)
O Dr. F concordou, felizmente, connosco; que se tentará fazer o que o prof. Machover propuser. É a única forma de manter o David com uma chama de esperança.
Vivo até ao fim.
Dei um abraço ao Dr. F, quando saí.
Com os olhos cheios de lágrimas."
18.Setembro.07
Hoje, dois anos passados, fica aqui registada uma das histórias atrevidas do David,
Que viveu até ao fim.
“ Os Domingueiros “
Fui ter primeiro com o Zé porque ele mora mais perto e os meus joanetes já me estavam a dar música. Mandámos o Joca ir ter à paragem e esperar por nós.
Este é o dia da semana de que mais gosto, o dia da ida ó Shopping, ó Domingo. O passeio é todo ele muito fixe, desde a ida de camioneta até ao regresso de autocarro.
Quando chegámos à paragem ainda não estava lá o Joca, como sempre, mas eu e o Zé nunca nos ralamos porque até faz parte do desenrolar do nosso passeio. Quando o Joca chega, fingimos que estamos com uma grande cabeça e damo-lhe cabo da dele. Ele nunca leva a sério, sabe que nós estamos na tanga e finge também.
Quem fica mais incomodado são as outras pessoas que costumam estar na paragem por terem de ouvir três gajos aos berros. Nós apanhamos sempre a camioneta que vem de Miramar, porque traz sempre as meninas mais boas de lá da zona. As meninas nunca nos ligam nenhuma; só as comemos com os olhos.
Nós somos uns porcos e ninguém nos liga. Dantes, éramos mais, fazíamos concursos de peidos. Ganhava o que fizesse sair mais pessoas na paragem seguinte. Mas, um dia, aconteceu-nos o mesmo. Uma vez, uma velhota, com casaco de peles e muitos anéis, ia mesmo ao nosso lado e levava o cão doente ao veterinário porque o animal sofria dos intestinos, como nos explicou a senhora. Bem, intestinos ou não, num é que a certa altura o bicho te manda uma bomba antónia que deixou o pessoal todo a vomitar?
Aquela cena era pior do que a bomba de Hirochina. Depois desse desafio, decidimos deixar de fazer o concurso porque vimos que só estávamos na Divisão B.
Desta vez, decidimos ir ao Catarina Shopping. Já tínhamos ido muitas vezes ao Via Arrábida e o primo do Joca disse que lá há melhores gajas. O primo do Joca é altamente. É ele que nos salva quando chove aos domingos. Arranja-nos uns filmes sexuais para vermos em casa do Zé. Ele tá sempre a dizer que quer é ir para a América procurar essas mulheres de mente aberta porque isto, cá, é uma tristeza.
Quando chegámos ao shopping, decidimos ir lanchar à Pizza Hut. Já estava farto dos gajos dos hamburgers.
Na Pizza Hut, comecei eu por ir pedir: - Quero uma pizza hut, se faz favor - mas ele devia ser meio mouco e ficou a olhar para mim, com olhar de espanto.
Então, eu repeti: - Era uma pizza hut, se faz favor. - Nós aqui não temos pizzas dessas; só destas aqui. - respondeu.
O gajo já me estava a irritar com o raio do papel que me estava a mostrar.
- Olhe, se isto é uma Pizza Hut, então eu quero uma pizza hut, O.K.!?- disse eu já a passar-me.
- Sim, isto é a Pizza Hut, mas nós não temos nenhuma pizza chamada hut. Só temos destas aqui, escolha uma, se faz favor! - teimou ele.
Eu já me estavam a atiçar as brasas, eu até estava a ser educado e tudo.
O Joca e o Zé só se grizavam, mas eu num estava numa de gozar.
- Chefe, se isto é a Pizza Hut, eu que-ro u-ma pi-zza hut. - tentei eu mais uma vez.
Poderia eu estar a falar bem de mais para o gajo?.
- Ó jovem, já lhe disse que não há nenhuma pizza chamada hut!!- berrou ele.
- Óóóóh, brincamos, esqueça lá o raio da pizza e dê-me um hambúrguer, fónix!!
Mas bem, quando o gajo ouviu esta, tripou completamente. Foi-se embora e chamou outro colega...
Mas eu também já num estava com nada para me chatear e fui-me embora. Fomos todos comer outra vez um hambúrguer, que, ao menos, num dá dores de cabeça.
Nem falámos mais no assunto, ficámos só a ver as gajas, mas já tinha o meu passeio estragado. Até viemos mais cedo para casa. No regresso, no autocarro, já nem consegui curtir a viagem.
Como os autocarros, naquela hora, vão sempre cheios de gera, é fixe roçarmo-nos nas gajas que vão em pé com as mãos agarradas ao... àquela coisa metálica, ao alto, a que a gente se segura para não ir de rebolão até ao fundo do autocarro, quando o motorista se alembra de travar, assim do pé prá mão..
Mas, desta vez, não me apeteceu; o gajo da Pizza Hut deu-me cá uma nóia.
Espero que no próximo domingo o passeio seja melhor.
David Sobral 1995
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2 comentários:
DAVID SOBRAL
Num Querem Lá ver ...!?
Num querem lá ver que tens uma fixação por shoppings!?
Por shoppings e por outras coisas que ao tempo da ditadura, então pela calada e enfiando bonés também tínhamos embora com menos liberdade de escolha!?
Inventariemos as diferenças.
Ao tempo de então:
Gajas, peidos, roça-roça, gajas e mais gajas.
Ao tempo de ti:
Gajas, peidos, roça-roça, shoppings, burguers, pizzas com ou sem chapéus mas dando enormes chapeladas, senhoras com cãezinhos peidófilos, gajas e mais gajas.
Há, no entanto, uma coisa que permanece:
Comer com os olhos.
Tal como dantes, ficas-te com a especialidade de comer com os olhos:
Tudo excepto a bomba antónia que essa, também nós apanhávamos e à fartazana ...
Essa e cacetada da polícia quando decidíamos em magote passearmo-nos pelas ruas da cidade já que, repara como as coisas mudaram (!), não existiam shoppings!
Vocês shoppam, nós apanhávamos bordoada entre o roça roça, o peido e o fazer nada.
Num querem lá ber ( desculpa-me mas não quero crer que não tenhas pronúncia do Norte ...! ) como as coisas mudaram!?
Um grande abraço
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 19 de Setembro de 2009
O seu David,Isabel,tem algo de especial e que emana do seu olhar profundo,que esta foto particularmente revela.Talvez haja um enorme Mistério,ainda por descobrir, por detrás de toda esta pungente história...
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