27 setembro 2009

Cansaço




Aos olhares e ouvidos alheios, não deve ter já qualquer significado este pulsar contínuo que sinto, vindo de dentro, e escorrega e ecoa como num poço fundo.
Este pulsar chama-se dor; chama-se saudade imensa.
É, ainda, chama quente e viva.
Sei que é quase invisível; um breve suspiro mais audível ou um desejo secreto de sair e voar; de deixar de ouvir o que se diz; de deixar de ver o que se vê.
Sair e deixar de estar ali ...
Para voltar atrás, por um tempo, de que só eu conheço as bermas, as barreiras, os perigos, as pedrinhas do caminho.
E regresso!
Regresso, sempre, atrás; olho por cima do ombro e revejo a estrada que trilhei ... terei sido eu?
Aquela que se ergueu?
Contigo!
Ou a que, agora, baixa os braços de cansaço e se entrega à solidão?



Não um adeus distante
Ou um adeus de quem não torna cá,
Nem espera tornar.
Um adeus de até já,
Como a alguém que se espera a cada instante.

Álvaro Feijó

18 setembro 2009

Diários



Dia 18, Setembro 2009.

O meu livro avança devagar.
Digo "o meu livro" porque espero ter a coragem e sobretudo a capacidade de escrever algo que os outros possam ler.
Não tenho o distanciamento suficiente para o apreciar.
Alguém me ajudará.
É um livro que conta a história duma mãe e de um filho que, subitamente, adoece e o mundo , tal como até aí existia, desaparece.
É apenas um diário, nada mais que um diário, de dias de luta constante, de algumas alegrias, de muitas quedas e de um olhar que nunca deixou de ser luminoso e terno - o do meu filho.
Custa muito. Mesmo muito reviver as palavras escritas por mim, nos vários cadernos e blocos que sempre me acompanhavam (e acompanham).
Para não me desviar, impus-me escrever/rever, em cada dia, o diário do dia correspondente, em 2007.
Talvez assim, chegue ao fim.
Do texto desse dia, nesse ano de 2007, constavam as seguintes notas rabiscadas a lápis, num marcador de um livro qualquer...
"Eu e o Manel fomos falar com o Dr. F. e informá-lo de que vamos outra vez a Paris, com o David, no dia 26. A conversa foi longa e triste, naquele consultório onde estive tantas vezes com o David, ao longo deste último ano e meio.
Sempre com um medo escuro colado a mim, mas com olhos fingindo o verde da esperança.
O Manel disse ao Dr. F. que só nos é possível fazer e pedir uma coisa – tudo o que, ainda, puder ser feito. Por pouco que seja! Independentemente de estatísticas. Independentemente, de tudo. (Por favor, gritava eu cá dentro. Por favor, não mo deixe morrer, assim, sem um dia seguinte...)
O Dr. F concordou, felizmente, connosco; que se tentará fazer o que o prof. Machover propuser. É a única forma de manter o David com uma chama de esperança.
Vivo até ao fim.
Dei um abraço ao Dr. F, quando saí.
Com os olhos cheios de lágrimas."
18.Setembro.07

Hoje, dois anos passados, fica aqui registada uma das histórias atrevidas do David,
Que viveu até ao fim.





“ Os Domingueiros “


Fui ter primeiro com o Zé porque ele mora mais perto e os meus joanetes já me estavam a dar música. Mandámos o Joca ir ter à paragem e esperar por nós.
Este é o dia da semana de que mais gosto, o dia da ida ó Shopping, ó Domingo. O passeio é todo ele muito fixe, desde a ida de camioneta até ao regresso de autocarro.

Quando chegámos à paragem ainda não estava lá o Joca, como sempre, mas eu e o Zé nunca nos ralamos porque até faz parte do desenrolar do nosso passeio. Quando o Joca chega, fingimos que estamos com uma grande cabeça e damo-lhe cabo da dele. Ele nunca leva a sério, sabe que nós estamos na tanga e finge também.
Quem fica mais incomodado são as outras pessoas que costumam estar na paragem por terem de ouvir três gajos aos berros.
Nós apanhamos sempre a camioneta que vem de Miramar, porque traz sempre as meninas mais boas de lá da zona. As meninas nunca nos ligam nenhuma; só as comemos com os olhos.
Nós somos uns porcos e ninguém nos liga. Dantes, éramos mais, fazíamos concursos de peidos. Ganhava o que fizesse sair mais pessoas na paragem seguinte. Mas, um dia, aconteceu-nos o mesmo. Uma vez, uma velhota, com casaco de peles e muitos anéis, ia mesmo ao nosso lado e levava o cão doente ao veterinário porque o animal sofria dos intestinos, como nos explicou a senhora. Bem, intestinos ou não, num é que a certa altura o bicho te manda uma bomba antónia que deixou o pessoal todo a vomitar?
Aquela cena era pior do que a bomba de Hirochina. Depois desse desafio, decidimos deixar de fazer o concurso porque vimos que só estávamos na Divisão B.

Desta vez, decidimos ir ao Catarina Shopping. Já tínhamos ido muitas vezes ao Via Arrábida e o primo do Joca disse que lá há melhores gajas. O primo do Joca é altamente. É ele que nos salva quando chove aos domingos. Arranja-nos uns filmes sexuais para vermos em casa do Zé. Ele tá sempre a dizer que quer é ir para a América procurar essas mulheres de mente aberta porque isto, cá, é uma tristeza.


Quando chegámos ao shopping, decidimos ir lanchar à Pizza Hut. Já estava farto dos gajos dos hamburgers.

Na Pizza Hut, comecei eu por ir pedir:
- Quero uma pizza hut, se faz favor - mas ele devia ser meio mouco e ficou a olhar para mim, com olhar de espanto.
Então, eu repeti:
- Era uma pizza hut, se faz favor. - Nós aqui não temos pizzas dessas; só destas aqui. - respondeu.
O gajo já me estava a irritar com o raio do papel que me estava a mostrar.
- Olhe, se isto é uma Pizza Hut, então eu quero uma pizza hut, O.K.!?- disse eu já a passar-me.
- Sim, isto é a Pizza Hut, mas nós não temos nenhuma pizza chamada hut. Só temos destas aqui, escolha uma, se faz favor! - teimou ele.
Eu já me estavam a atiçar as brasas, eu até estava a ser educado e tudo.
O Joca e o Zé só se grizavam, mas eu num estava numa de gozar.

- Chefe, se isto é a Pizza Hut, eu que-ro u-ma pi-zza hut. - tentei eu mais uma vez.
Poderia eu estar a falar bem de mais para o gajo?.
- Ó jovem, já lhe disse que não há nenhuma pizza chamada hut!!- berrou ele.
- Óóóóh, brincamos, esqueça lá o raio da pizza e dê-me um hambúrguer, fónix!!
Mas bem, quando o gajo ouviu esta, tripou completamente. Foi-se embora e chamou outro colega...
Mas eu também já num estava com nada para me chatear e fui-me embora. Fomos todos comer outra vez um hambúrguer, que, ao menos, num dá dores de cabeça.
Nem falámos mais no assunto, ficámos só a ver as gajas, mas já tinha o meu passeio estragado. Até viemos mais cedo para casa.
No regresso, no autocarro, já nem consegui curtir a viagem.
Como os autocarros, naquela hora, vão sempre cheios de gera, é fixe roçarmo-nos nas gajas que vão em pé com as mãos agarradas ao... àquela coisa metálica, ao alto, a que a gente se segura para não ir de rebolão até ao fundo do autocarro, quando o motorista se alembra de travar, assim do pé prá mão..
Mas, desta vez, não me apeteceu; o gajo da Pizza Hut deu-me cá uma nóia.

Espero que no próximo domingo o passeio seja melhor.

David Sobral 1995

14 setembro 2009

Uma avó


David num Carnaval - o mago


Tenho andado especialmente triste; uma tristeza mais pesada e teimosa do que a do costume.
É que o medo tem acordado colado a mim.
Os dias são sempre os mesmos outros dias, que passaram mas ficaram.
Permanecem num dia exacto, em Setembro.
Em que morri mais um pouco.
Em Setembro, a 11 de Setembro, mandaram-nos embora de Barcelona.
Nada a fazer.
E o pavor a não me deixar respirar e aquela lágrima a correr pela cara do meu filho.
E a lágrima a queimar-me, ainda hoje, o peito.
A mesma lágrima, agora, só minha.
E eu a encolher, a encolher; a não saber o que fazer.
A gritar cá dentro que não.
A certeza de que não parava ali.
A certeza de ir até ao fim do mundo, embora o fim do mundo estivesse logo ali..., ao virar duma folha de calendário, ... em Outubro.
Setembro trouxe Outubro.
Um Outubro de sol.
Um Outubro para últimas despedidas do mar de Moledo e da luz no monte, em frente ao pátio.
Um Outubro já de saudade.
Um Outubro de gestos lentos e sorriso lasso.
Um Outubro de carinhos e sorrisos cúmplices.
Um Outubro de força ainda, nas mãos entrelaçadas.
Um Outubro de dias claros mas de infinita penumbra pousada, pesada e profunda, no lugar do coração.
Estamos em Setembro.
E eu estou triste.
Mais triste.

E as lágrimas, que têm andado presas, soltaram-se quando li o que a Branca escreveu.
Que bem compreendo aquela avó que, antes de morrer, foi despedir-se do filho que já partira!
Que doçura e que saudade a acompanharam durante uma vida inteira e tão longa.
Eu percebo-a; eu sei que todos os filhos são filhos únicos.
Sejam dois, sejam dez.
Por um estranho e inexplicável processo químico, o coração é inteiro de cada filho, mesmo quando inteiramente esvaziado quando um filho se nos solta assim.
Para lá da distância de uma carícia na cara.
E, no entanto, mesmo vazio, continua inteiramente cheio e dedicado a cada filho, a cada neto vindo ou a vir, a cada Manel, apesar do peso imenso da perda.

O coração transmuta-se, não a cada dia, mas a cada hora, cada momento do dia, conforme o peso da saudade ou da força do amor.
É uma estranha forma de vida...



Obrigada, avó da Branca.

08 setembro 2009

Papagaios de papel


Moledo - O David e um papagaio de papel

A escola reabriu.
Apresentei-me no dia estipulado para a 1ª reunião geral.
Muitas caras novas.
Muitos beijos e abraços, depois de um mês de férias.
A nova Directora.
Desejo-lhe que tudo corra bem; afinal, participei na eleição dela, através do Conselho Geral.
Se não correr bem, também nós seremos, de alguma forma, responsáveis.
Reuniões de Departamentos.
Uma passagem pela Direcção para ver o meu horário.
Nocturno.
Chegada ao carro, fumei um cigarro e chorei, até casa.
E chorei à mesa, ao jantar.
.................
Nada simplesmente é igual.
Estranho-me no meio de tantos que foram meus parceiros, durante tantos anos.
Nada tenho dizer sobre a escola; sobre as férias; sobre o novo ano... sobre mim.
Aquela, que antes conheciam, não existe.
Eu era alegre, entusiasta, amiga e brincalhona; a 1ª a convocar jantares; profissional muito dedicada aos miúdos por quem chegava ao final do ano "apaixonada".
Agora, as imagens são difusas; pouco penetra esta carapaça que me envolve.
............
Não consigo evitar sentir-me deslocada no meio de gente.
Sinto-me sufocar.
Não estou preparada para enfrentar as alegrias ou o sucesso dos outros; ainda não tenho força para partilhar.
Não confundam; não é inveja...
São meus amigos, foram muito, muito amigos do David e só lhes desejo bem.
Eles partilharam da minha dor.
..............
Mas a vida tem que continuar.
Ou o mundo seria uma casa inabitável, já deserta, escura e silenciosa.
.............
Mas eu.
Eu preciso de tempo para mim e para os outros; muito tempo, talvez...
Repartido em bocadinhos, um pouco de cada vez.
Devagarinho.
Parando, muitas vezes, no caminho.
Trago uma outra vida comigo.


O tempo de cada dia, dedico-o ao meu neto.
É ele que, todas as manhãs, me abre a porta que dá para a vida.

04 setembro 2009

Moledo



Agosto.
Moledo em Agosto.
Calor, barracas sacudidas pelo vento norte, algas espalhadas pela areia, gaivotas no areal ao entardecer, cheiro a maresia, o forte ao longe e os amigos de sempre.
Findou.
Não da maneira como antes findava.
Com um jantar ruidoso de despedidas "Até breve, vemo-nos no Porto!"
Não com aquela já quase saudade do meu jardim ainda antes de partir; dos meus cinco pinheiros; do meu carvalho a crescer; dos poucos mas saborosos frutos que as minhas árvores regateiam e que eu recolho com todos os cuidados e vou mostrar cheia de orgulho; do sol luminoso da manhã no pátio; das mãos na terra; dos foguetes das festas, ao longe; dos jogos de sueca e de damas chinesas, intervalados de cantorias desafinadas; do jantar anual no Ancoradouro do Alfredo; da chuva de estrelas das Perseides; da sensação de que ali, na segurança da rotina dos dias e noites de Verão, estávamos protegidos e nada de mal nos podia acontecer...
E, no entanto, houve um Agosto sem Moledo que quebrou todos os encantos.
Deixei Moledo em Agosto.
Não da maneira como antes deixava.

Voltarei...; foi ali que deixei o David.
As luzes do David iluminam a noite, na brancura das paredes.
E volto sempre.
Sei que todos os encantos podem ser, um dia, quebrados.



O meu jardim

O meu jardim de sons cresce
Cresce porque eu ali estou
E por todo o meu amor que lhe dou
Não pelas coisas que tu dás,
Coisas sem valor
Coisas que eu jamais darei.
E cresce o meu jardim de sons
Pela mão que sobre ele pousei
E sabendo do amor que lhe dei...