Hoje, meu filho, 10 anos passados desde o dia em que o meu coração de mãe pressentiu que podia não te ter por muito tempo nem levar comigo a tua imagem, ao fechar os olhos para o mundo, quero dizer-te ...
Que não é verdade que a dor passe, com o tempo.
Que não é verdade que o corpo se habitue à falta de contacto com a pele morna de um filho. À falta de um abraço suave e quente.
Que a força do pensamento não controla o vazio que deixaste em mim.
Que os cravos vermelhos ainda têm o teu nome.
Que, em cada espectáculo, não resisto a virar-me para trás, lá onde está a mesa de controlo da luz do palco. O teu lugar.
Que sem uma luz bonita, os palcos não têm graça.
Que o swing das músicas me faz chorar.
Que continuo a parar na "senhora da estrada" entre Caminha e Moledo porque gostavas de lhe comprar fruta. E eu compro ainda. E dou-lhe um abraço porque ela se lembra bem "do seu menino".
Que David é o último nome em que penso antes de cair no torpor do sono.
Que verde é a cor dos teus olhos belíssimos.
Que acordo todos os dias, com a sensação de não estar inteira.
Que a saudade aumenta à medida que o tempo nos afasta. E eu não gosto do tempo.
Que continuo à procura de te ver nos corredores na FNAC, atento à novidade em que valha a pena gastar dinheiro.
Que choro e sorrio a ouvir a tua voz bonita e jovem, nos teus programas do Jazz Faz Tarde.
Que atravesso a rua para dar um abraço aos teus amigos. Um acenar de mão não basta.
Que aprendi contigo a apreciar o silêncio e uma certa solidão.
Que, quando estou perto da tua rocha no mar da praia de Moledo, a paz me envolve por momentos. E te sinto livre.
Que, quando olho para o cimo do monte à frente do pátio da nossa casa, lá onde giram as eólicas e onde te tirámos a última fotografia, me sinto em casa.
Que eu e o Manel gostamos de fazer as coisas que tu nos recomendavas e que falamos muito de ti e da pessoa espantosa que foste.
Que a Alice e o Miguel acham natural a tua presença, nas fotografias, espalhadas pela casa.
Que dói! Dói sempre. Muito. E todas as minhas outras dores se tornaram banais.
Que a metade de mim, que partiu contigo, não voltou e não me faz falta. Sei que está onde deve estar. Junto de ti, onde quer que estejas.
Que sonho pouco, mas que o único sonho que tenho é contigo. E que estás doente, mas vivo. Ausente, em contínuas tournées, com uma companhia de bailado, nos Estados Unidos. Tu não atendes o telemóvel e eu preciso urgentemente de falar contigo porque tens de vir, para te tratares. Às vezes, regressas. Estás uns dias. Ainda gostas muito de mim. Depois ausentas-te, novamente. Só sei de ti, pelo Sérgio. E acordo. E, ainda atordoada, peço ao Manel que ligue ao Sérgio porque preciso de te voltar a ver e há os tratamentos ... para poderes continuar com as tuas luzes e os palcos. E que este sonho se repete, sempre o mesmo, sempre igual. E que a realidade é sempre pior que o sonho.
Que preciso de falar de ti até à exaustão, 10 anos passados.
E que não tenho vergonha de o dizer!
E de o recordar. Aqui.
"Março 2006
Que não é verdade que a dor passe, com o tempo.
Que não é verdade que o corpo se habitue à falta de contacto com a pele morna de um filho. À falta de um abraço suave e quente.
Que a força do pensamento não controla o vazio que deixaste em mim.
Que os cravos vermelhos ainda têm o teu nome.
Que, em cada espectáculo, não resisto a virar-me para trás, lá onde está a mesa de controlo da luz do palco. O teu lugar.
Que sem uma luz bonita, os palcos não têm graça.
Que o swing das músicas me faz chorar.
Que continuo a parar na "senhora da estrada" entre Caminha e Moledo porque gostavas de lhe comprar fruta. E eu compro ainda. E dou-lhe um abraço porque ela se lembra bem "do seu menino".
Que David é o último nome em que penso antes de cair no torpor do sono.
Que verde é a cor dos teus olhos belíssimos.
Que acordo todos os dias, com a sensação de não estar inteira.
Que a saudade aumenta à medida que o tempo nos afasta. E eu não gosto do tempo.
Que continuo à procura de te ver nos corredores na FNAC, atento à novidade em que valha a pena gastar dinheiro.
Que choro e sorrio a ouvir a tua voz bonita e jovem, nos teus programas do Jazz Faz Tarde.
Que atravesso a rua para dar um abraço aos teus amigos. Um acenar de mão não basta.
Que aprendi contigo a apreciar o silêncio e uma certa solidão.
Que, quando estou perto da tua rocha no mar da praia de Moledo, a paz me envolve por momentos. E te sinto livre.
Que, quando olho para o cimo do monte à frente do pátio da nossa casa, lá onde giram as eólicas e onde te tirámos a última fotografia, me sinto em casa.
Que eu e o Manel gostamos de fazer as coisas que tu nos recomendavas e que falamos muito de ti e da pessoa espantosa que foste.
Que a Alice e o Miguel acham natural a tua presença, nas fotografias, espalhadas pela casa.
Que dói! Dói sempre. Muito. E todas as minhas outras dores se tornaram banais.
Que a metade de mim, que partiu contigo, não voltou e não me faz falta. Sei que está onde deve estar. Junto de ti, onde quer que estejas.
Que sonho pouco, mas que o único sonho que tenho é contigo. E que estás doente, mas vivo. Ausente, em contínuas tournées, com uma companhia de bailado, nos Estados Unidos. Tu não atendes o telemóvel e eu preciso urgentemente de falar contigo porque tens de vir, para te tratares. Às vezes, regressas. Estás uns dias. Ainda gostas muito de mim. Depois ausentas-te, novamente. Só sei de ti, pelo Sérgio. E acordo. E, ainda atordoada, peço ao Manel que ligue ao Sérgio porque preciso de te voltar a ver e há os tratamentos ... para poderes continuar com as tuas luzes e os palcos. E que este sonho se repete, sempre o mesmo, sempre igual. E que a realidade é sempre pior que o sonho.
Que preciso de falar de ti até à exaustão, 10 anos passados.
E que não tenho vergonha de o dizer!
E de o recordar. Aqui.
"Março 2006
E eis que, bruscamente, a vida se reduziu a um mero imenso
mar de espera, de desespero e de incerteza, que sempre é, mas de
que não temos noção, em cada dia que passa.
Saí a correr de uma reunião de directores de turma, ainda inacabada, para ir buscar os resultados dos exames que o David havia feito, três ou quatro dias antes, e que deviam estar prontos, neste dia.
Pela terceira vez, o David fora ao médico, apresentar algumas queixas que o preocupavam – cansaço, falta de apetite, sensação estranha de enfartamento na zona do abdómen e do fígado, fezes com algum sangue. Em consultas anteriores, os médicos tinham-lhe dito que não viam qualquer problema grave ou motivador de preocupação e que algum sangue que apresentava nas fezes bem como algum distúrbio intestinal eram, com certeza, apenas hemorróides.
Nessa terceira vez, por insistência do David, o médico decidira, muito a contragosto, mandá-lo fazer alguns exames e até lhe terá feito, no consultório, um breve exame exploratório, até 10 cm do intestino. Não vendo nada, voltou a reiterar que era cisma, “mau funcionamento do sótão!”, característicos dos artistas! Porque na idade dele – 27 anos – não havia problemas assim tão graves do intestino.
As estatísticas!
Eram os resultados desses exames que eu ia levantar no Hospital da Arrábida. Ia relativamente descansada, tendo em consideração as palavras do médico que o David me reproduzira.
Já dentro do carro e, como sempre fiz, abri os relatórios dos exames e das análises ao sangue. Não estava preparada para encontrar o que encontrei. Não se encaixava! Li, reli, voltei a ler ... embora tivesse abarcado toda a situação, no fim da primeira vista de olhos. Uma massa tumoral no intestino, no cólon sigmóide. O fígado cheio de nódulos!? Valores do sangue completamente alterados, face aos valores de referência. Não admitia o que lia. Não percebia! Embora compreendesse ... Voltei a ler, pesadamente, cada palavra.
Saí a correr de uma reunião de directores de turma, ainda inacabada, para ir buscar os resultados dos exames que o David havia feito, três ou quatro dias antes, e que deviam estar prontos, neste dia.
Pela terceira vez, o David fora ao médico, apresentar algumas queixas que o preocupavam – cansaço, falta de apetite, sensação estranha de enfartamento na zona do abdómen e do fígado, fezes com algum sangue. Em consultas anteriores, os médicos tinham-lhe dito que não viam qualquer problema grave ou motivador de preocupação e que algum sangue que apresentava nas fezes bem como algum distúrbio intestinal eram, com certeza, apenas hemorróides.
Nessa terceira vez, por insistência do David, o médico decidira, muito a contragosto, mandá-lo fazer alguns exames e até lhe terá feito, no consultório, um breve exame exploratório, até 10 cm do intestino. Não vendo nada, voltou a reiterar que era cisma, “mau funcionamento do sótão!”, característicos dos artistas! Porque na idade dele – 27 anos – não havia problemas assim tão graves do intestino.
As estatísticas!
Eram os resultados desses exames que eu ia levantar no Hospital da Arrábida. Ia relativamente descansada, tendo em consideração as palavras do médico que o David me reproduzira.
Já dentro do carro e, como sempre fiz, abri os relatórios dos exames e das análises ao sangue. Não estava preparada para encontrar o que encontrei. Não se encaixava! Li, reli, voltei a ler ... embora tivesse abarcado toda a situação, no fim da primeira vista de olhos. Uma massa tumoral no intestino, no cólon sigmóide. O fígado cheio de nódulos!? Valores do sangue completamente alterados, face aos valores de referência. Não admitia o que lia. Não percebia! Embora compreendesse ... Voltei a ler, pesadamente, cada palavra.
Deixei-me ficar, ali, parada, com os suores frios que
começavam a escorrer-me pelas costas, o olhar a turvar-se, o
coração a explodir, o chão a fugir-me de debaixo dos pés. A não
conseguir respirar. Voltei a ler o que já tinha percebido.
Liguei o motor e pus o carro em movimento. Não sabia para onde ir, nem o que fazer com “aquilo” aberto, no banco do lado. Fui andando, já não sei por que caminhos...
“O que faço, agora?” – Era o que me martelava na cabeça... “O que faço, agora?”
“O que digo ao David? Ele sabe que vim buscar os exames! Ainda bem que não foi ele a vir.” Que faço? Como é possível?
Continuei a andar de carro, sem saber o que fazer, sem saber o que pensar, assaltada pela incredulidade e por um turbilhão de ideias e de emoções contraditórias. Andei à deriva, pelas ruas de Gaia,... e parei em frente da casa de uma amiga do tempo do liceu, a Elsa, médica. Ela ia a sair com o pai, para uma consulta. Já estava atrasada... Supliquei-lhe que olhasse, só de relance, para aqueles relatórios. Ela olhou. Só me disse “É melhor avançares rapidamente, com uma TAC. Urgente! Vê se consegues isso já para amanhã.”
E fiquei novamente só, sem tino, sem ar, ali no meio da rua, com o coração a bater, a bater fortemente de medo. Fui para casa. Precisava de falar com alguém, imediatamente, antes que o David chegasse. Lembrei-me da Berta Martins e liguei-lhe. Ia a caminho de Espinho. Li-lhe os relatórios ao telefone, perplexa sempre, como se fosse a primeira vez que os lia.
É difícil descrever os sentimentos que me acometiam. Tanta agitação na minha cabeça; mas a certeza de muito medo, ansiedade, vómitos. Aquilo não podia estar a passar-se com um dos meus filhos!
Passada meia hora, a Berta ligou-me. O David já tinha consulta marcada para o dia seguinte, quinta-feira, no Hospital Geral de Santo António (HGSA). Ia ser visto por um médico de Medicina Interna. Desliguei e fiquei estática, sem alento, sentada à secretária, com a cabeça enterrada nas mãos. A pensar, a pensar rapidamente, sobre o que diria ao David.
Não consegui ligar ao Manel e só ele me podia ajudar. Tinha de pensar. Era urgente enxugar as lágrimas; tinha de parar de fumar; tinha de fingir, respirar normalmente...
Liguei o motor e pus o carro em movimento. Não sabia para onde ir, nem o que fazer com “aquilo” aberto, no banco do lado. Fui andando, já não sei por que caminhos...
“O que faço, agora?” – Era o que me martelava na cabeça... “O que faço, agora?”
“O que digo ao David? Ele sabe que vim buscar os exames! Ainda bem que não foi ele a vir.” Que faço? Como é possível?
Continuei a andar de carro, sem saber o que fazer, sem saber o que pensar, assaltada pela incredulidade e por um turbilhão de ideias e de emoções contraditórias. Andei à deriva, pelas ruas de Gaia,... e parei em frente da casa de uma amiga do tempo do liceu, a Elsa, médica. Ela ia a sair com o pai, para uma consulta. Já estava atrasada... Supliquei-lhe que olhasse, só de relance, para aqueles relatórios. Ela olhou. Só me disse “É melhor avançares rapidamente, com uma TAC. Urgente! Vê se consegues isso já para amanhã.”
E fiquei novamente só, sem tino, sem ar, ali no meio da rua, com o coração a bater, a bater fortemente de medo. Fui para casa. Precisava de falar com alguém, imediatamente, antes que o David chegasse. Lembrei-me da Berta Martins e liguei-lhe. Ia a caminho de Espinho. Li-lhe os relatórios ao telefone, perplexa sempre, como se fosse a primeira vez que os lia.
É difícil descrever os sentimentos que me acometiam. Tanta agitação na minha cabeça; mas a certeza de muito medo, ansiedade, vómitos. Aquilo não podia estar a passar-se com um dos meus filhos!
Passada meia hora, a Berta ligou-me. O David já tinha consulta marcada para o dia seguinte, quinta-feira, no Hospital Geral de Santo António (HGSA). Ia ser visto por um médico de Medicina Interna. Desliguei e fiquei estática, sem alento, sentada à secretária, com a cabeça enterrada nas mãos. A pensar, a pensar rapidamente, sobre o que diria ao David.
Não consegui ligar ao Manel e só ele me podia ajudar. Tinha de pensar. Era urgente enxugar as lágrimas; tinha de parar de fumar; tinha de fingir, respirar normalmente...
O David chegou pouco depois. Tinha ido lanchar com a
prima que lhe é mais chegada; têm a mesma idade e partilham
segredos e desabafos. Perguntou pelas análises. Expliquei-lhe, com
o fingimento e a calma possíveis, que havia um pequeno problema
com os resultados, no fígado e no intestino. Ia ser necessário fazer
mais exames. Disse-lhe que já tinha falado com a Berta e que
podíamos ir ao HGSA, no dia seguinte. Ela iria ter connosco.
O David andava um pouco pálido, mas ficou ainda mais e sentou-se, no sofá, à frente da minha secretária. Não queria pensar no que o meu filho poderia estar a imaginar. Só esse sofrimento interior, essa dúvida já me inundavam de suores. E o pânico! Os meus filhos são rapazinhos inteligentes.
Ficou perturbado. Calado. E eu a tentar falar, para dizer qualquer coisa que se sobrepusesse ao som do medo. Finalmente: “Mamã, não contava com uma coisa destas. Só tenho 27 anos!!” Não eram necessárias palavras. Fiquei sem reacção. O que se diz a este filho? Que a mãe vai endireitar tudo? Dei-me conta da minha incapacidade, de não poder estar no lugar dele. E é assustador! Os filhos são eternos, a vida deles tem de continuar para além da nossa.
Consegui dizer-lhe que não devia ser nada de muito grave e que não valia a pena cismar naquilo. Tínhamos era de nos deitar cedo, para descansar em condições e ganhar forças para ir ao hospital, no dia seguinte.
Andei pela cozinha, a tratar do jantar, tipo autómato, enquanto o David se sentou a ver televisão. Em que estaria a pensar? Ai ... se eu pudesse controlar os pensamentos dele, apagá-los, ficar com eles para mim.
O Manel chegou, entretanto, e num momento em que o David foi ao escritório, disse-lhe baixinho “Acho que o David está com um cancro!” Olhou para mim, perplexo... Repeti. Percebeu que era sério; não uma cisma minha.
O David desceu. Calei-me. Jantámos e foi, nessa altura, estando os três à mesa, que falei do assunto; tentando dar à voz um tom ligeiro e pouco preocupado. O Manel percebeu e o David precisa de ouvir as coisas ditas, assim... Penso eu. Para não nos assustarmos. Para não o assustarmos com a nossa preocupação.
O que está a acontecer, não pode acontecer!"
O David andava um pouco pálido, mas ficou ainda mais e sentou-se, no sofá, à frente da minha secretária. Não queria pensar no que o meu filho poderia estar a imaginar. Só esse sofrimento interior, essa dúvida já me inundavam de suores. E o pânico! Os meus filhos são rapazinhos inteligentes.
Ficou perturbado. Calado. E eu a tentar falar, para dizer qualquer coisa que se sobrepusesse ao som do medo. Finalmente: “Mamã, não contava com uma coisa destas. Só tenho 27 anos!!” Não eram necessárias palavras. Fiquei sem reacção. O que se diz a este filho? Que a mãe vai endireitar tudo? Dei-me conta da minha incapacidade, de não poder estar no lugar dele. E é assustador! Os filhos são eternos, a vida deles tem de continuar para além da nossa.
Consegui dizer-lhe que não devia ser nada de muito grave e que não valia a pena cismar naquilo. Tínhamos era de nos deitar cedo, para descansar em condições e ganhar forças para ir ao hospital, no dia seguinte.
Andei pela cozinha, a tratar do jantar, tipo autómato, enquanto o David se sentou a ver televisão. Em que estaria a pensar? Ai ... se eu pudesse controlar os pensamentos dele, apagá-los, ficar com eles para mim.
O Manel chegou, entretanto, e num momento em que o David foi ao escritório, disse-lhe baixinho “Acho que o David está com um cancro!” Olhou para mim, perplexo... Repeti. Percebeu que era sério; não uma cisma minha.
O David desceu. Calei-me. Jantámos e foi, nessa altura, estando os três à mesa, que falei do assunto; tentando dar à voz um tom ligeiro e pouco preocupado. O Manel percebeu e o David precisa de ouvir as coisas ditas, assim... Penso eu. Para não nos assustarmos. Para não o assustarmos com a nossa preocupação.
O que está a acontecer, não pode acontecer!"