David e avô - Natal 04
Sabes, meu filho
Parei, agora, um bocadinho, naquela minha azáfama de preparar o Natal para todos.
Está tudo pronto, com aquela antecedência que tão bem conheces: a Maria aflita que tu dizias que eu era.
Claro que sempre aproveitaste para ir roubando um bilharaco, um sonho, uma rabanada ... são melhores quentinhos, acabados de fazer
Mesa posta, tachos prontos, sobremesas em pratos bonitos...
Depois sempre quis ter um bocadinho, sozinha, para telefonar aos mais especiais.
Agora, hoje, é tudo diferente.
Hoje, parei, para pôr a minha vida em dia.
Uma vida sem ti ...
Relembro o fim da tarde, enquanto os tachos começavam a borbulhar na cozinha.
Lembras-te?
Sentávamo-nos os quatro no sofá, a relaxar. Tu, a fazer zapping, a fugir dos programas cor-de-rosa que sempre assaltam esta época e a que chamam o espírito de Natal.
O Sérgio e o Manel a lerem jornais. Eu, entre o sofá e a cozinha ou a agradecer mensagens de última hora.
Relembro os preparativos, teus e do teu irmão, antes de irem para casa do pai ou dos tios, jantar. Punham-se bonitos e perfumados. E davam-me um beijo, antes de saírem.
Regressavam ainda a tempo da distribuição das prendas.
No dia de Natal, ficavam comigo.
Um ritual sereno.
Agora, há poucochinho, senti-me, repentinamente, uma estranha de mim própria.
Novamente, uma dor no peito e uma agonia a subir na garganta. Como quem não sabe a que âncora de esperança se agarrar.
Faltas-me tu, David.
Vai faltar-me a tua prenda, sempre com uma dedicatória especial para aquela tua "querida mãezinha ..."
Sabes que tenho guardados os bocados dos papéis de embrulho, onde, tu, com a tua letra um pouco torta de esquerdino, escrevias essas dedicatórias?
Não diziam simplesmente "Para a mãe, ... do David"
Vinha sempre qualquer coisinha, a mais.
Dos presentes, não me lembro; mas tenho bem vivo cá dentro essas "coisas" ternas que escrevias.
É o terceiro Natal, sem ti.
É mais um dia, a somar aos muito longos e dolorosos e lentos que já passaram ... sem ti.
Eu sei, David, que gostarias que eu não tivesse esta lágrima sorrateira que vai espreitando ...
Eu sei, meu filho, da tua coragem e do teu não querer que eu sofresse tanto ...
Sei tudo isso. Tal como tu sabias que eu iria ficar perdida.
Sabias o quanto eu era "doida" pelos filhos.
Disseste-me "Tenho pena por ti, porque não mereces... (a morte de um filho)."
Conversámos muito.
Mas eu porto-me bem, prometo.
Tenho o teu irmão, tenho teu sobrinho, tenho o Manel ...
Talvez alguém te faça um brinde.
Talvez venha da tua avó que comprou uma vela branca cheirosa, para arder até ao fim do Natal, junto da tua fotografia de um outro Natal distante.
E eu vou erguer a minha taça...
A ti.