31 dezembro 2009

Boa noite, meu filho



David
Este, afinal, é um dia como os outros.
Apenas, compramos uma agenda nova, onde ir anotando o que fazer.
Este querer chegar sempre mais longe no tempo, que os astros regem, é o instinto de sobrevivência a comandar e o temermos separar-nos de quem amamos.
Por isso, queremos sempre ir, avançar, passar mais um ano, juntamente com as folhas do calendário que, se valem para os que nos são queridos, também gostaríamos que valessem para nós...
E se a ordem se altera?
E se deixamos de seguir juntos?
E se alguém que devíamos querer acompanhar nos antecede?
Que desordem se instalou em mim com a tua partida!
Que confusa é a minha vida, meu filho!



Como se atravessasse um riacho, pousando os pés de pedra em pedra; tentando não largar uma, antes de avançar para outra que sinta bem segura ... assim me fui habituando a pisar os dias e a vida.
Assim, me vou habituando, lentamente a seguir o andar determinado e a sombra pequenina do Miguel que, orgulhosamente, olha para cima, já aponta para a mãe e diz "mamã" ou para o Sérgio e diz "papá".
E olha em volta para ter a certeza de que lhe prestam atenção e sorri.
É tão bonita a ternura do Miguel pelos seus papás ...
Se espreitares, hoje à noite, por cima do meu ombro, acho que os verás.

E vais gostar.
São tão bonitos!

Boa noite, meu filho.

24 dezembro 2009

Sonhos de Natal


David e avô - Natal 04


Sabes, meu filho

Parei, agora, um bocadinho, naquela minha azáfama de preparar o Natal para todos.
Está tudo pronto, com aquela antecedência que tão bem conheces: a Maria aflita que tu dizias que eu era.
Claro que sempre aproveitaste para ir roubando um bilharaco, um sonho, uma rabanada ... são melhores quentinhos, acabados de fazer
Mesa posta, tachos prontos, sobremesas em pratos bonitos...
Depois sempre quis ter um bocadinho, sozinha, para telefonar aos mais especiais.
Agora, hoje, é tudo diferente.
Hoje, parei, para pôr a minha vida em dia.
Uma vida sem ti ...
Relembro o fim da tarde, enquanto os tachos começavam a borbulhar na cozinha.
Lembras-te?
Sentávamo-nos os quatro no sofá, a relaxar. Tu, a fazer zapping, a fugir dos programas cor-de-rosa que sempre assaltam esta época e a que chamam o espírito de Natal.
O Sérgio e o Manel a lerem jornais. Eu, entre o sofá e a cozinha ou a agradecer mensagens de última hora.
Relembro os preparativos, teus e do teu irmão, antes de irem para casa do pai ou dos tios, jantar. Punham-se bonitos e perfumados. E davam-me um beijo, antes de saírem.
Regressavam ainda a tempo da distribuição das prendas.
No dia de Natal, ficavam comigo.
Um ritual sereno.

Agora, há poucochinho, senti-me, repentinamente, uma estranha de mim própria.
Novamente, uma dor no peito e uma agonia a subir na garganta. Como quem não sabe a que âncora de esperança se agarrar.
Faltas-me tu, David.
Vai faltar-me a tua prenda, sempre com uma dedicatória especial para aquela tua "querida mãezinha ..."
Sabes que tenho guardados os bocados dos papéis de embrulho, onde, tu, com a tua letra um pouco torta de esquerdino, escrevias essas dedicatórias?
Não diziam simplesmente "Para a mãe, ... do David"
Vinha sempre qualquer coisinha, a mais.
Dos presentes, não me lembro; mas tenho bem vivo cá dentro essas "coisas" ternas que escrevias.
É o terceiro Natal, sem ti.
É mais um dia, a somar aos muito longos e dolorosos e lentos que já passaram ... sem ti.

Eu sei, David, que gostarias que eu não tivesse esta lágrima sorrateira que vai espreitando ...
Eu sei, meu filho, da tua coragem e do teu não querer que eu sofresse tanto ...
Sei tudo isso. Tal como tu sabias que eu iria ficar perdida.
Sabias o quanto eu era "doida" pelos filhos.
Disseste-me "Tenho pena por ti, porque não mereces... (a morte de um filho)."
Conversámos muito.

Mas eu porto-me bem, prometo.
Tenho o teu irmão, tenho teu sobrinho, tenho o Manel ...
Talvez alguém te faça um brinde.
Talvez venha da tua avó que comprou uma vela branca cheirosa, para arder até ao fim do Natal, junto da tua fotografia de um outro Natal distante.
E eu vou erguer a minha taça...
A ti.

19 dezembro 2009

Certas formas de magia


"Unreal" de Bernardo Sassetti /Luz de David Sobral / Foto de Susana Neves

Por vezes, só o silêncio cria espaço...

Não o tenho em mim para desabafar esta ansiedade que não sei se é só saudade, que não sei se é só dor, que não sei se é ainda, e sempre, o mesmo medo que se instalou e não passa.

Apesar dos olhos doces e do sorriso radiante do meu neto…

Não há tempo em mim que não me arraste para um outro tempo em que me lembro de só sentir a força de um arrastar pesado e lento para não sei que outro tempo sem contornos, desconhecido e medonho.
E do resistir sempre.
Do não querer que o tempo passasse.
Não dessa forma.
Não daquela forma, não naquela busca vã, quase inútil, de não sei que felicidade que nos fora, definitivamente, negada.

E, no entanto, agora, não saberia viver sem os olhos doces e o sorriso radiante do meu neto …

Sofro porque … sofro. Simplesmente. Nunca mais poderei refugiar-me naquela forma de infinito que sempre pedimos.
Quando a cegueira da angústia e da revolta nos assaltam.
Chegamos (que ilusão!) a acreditar que sim.
Sabendo que não.
Já não.

E, no entanto, os olhos doces e o sorriso radiante do meu neto embalam-me numa certa forma de infinito …

Apesar do meu caminho pejado de lajes levantadas do passado.
Apesar das memórias inscritas, com letras das saudades do David, nas paredes lisas dos dias.

Estranho … este meu mundo, cá dentro!
Tão estranho!
Não sei como vivo sem um filho.
Não sei como viveria sem a magia dos olhos doces e sorriso radiante meu neto!


Obrigada, à Manuela Baptista, por aquela estrela chamada David.

Histórias com Mar ao Fundo

11 dezembro 2009

No meio do céu escuro



24h.

Moledo.
Aqui, as estrelas abundam e brilham mais.
É para onde os meus olhos se dirigem, mal abro a porta do carro.
Depois, já em casa, chova, faça frio ou vento ... abro as portadas e, no meio do pátio, lá fico eu, de cabeça erguida, a varrer o céu escuro, salpicado de luzes.
Talvez por ali ande uma outra estrela chamada David.
Se ainda não o é, lá no meio da Ursa Maior ou das Perseides, é com certeza, para já, uma estrela do mar.
Talvez uma daquelas que lançam brilhozinhos fugazes, de onde em onde, na crista das ondas.
Uma daquelas que mostro ao Miguel, nos livros, onde essas estrelas são brilhantes e ásperas ao tacto.

Moledo.
Onde, a proximidade e a distância do meu filho são paradoxalmente maiores.
As luzes dele brilham nas paredes só brancas da casa ...
Foi um sonho que sonhámos?
Foi real...
As luzes difusas, os focos, os apliques, os néons ... estão aqui ...
As luzes do David.
No palco da vida.
No palco do espectáculo; nos filtros de luz.
Sempre luz.
Com música ao fundo.

Moledo.
Na praia,
no areal, junto a uma rochinha,
uma luz
trémula, mas bem protegida do vento, pelo paredão ...
dir-te-á
(sejas tu luz ou som, um dedilhar duma corda da guitarra, um sorriso distante ou uma mão estendida que convida para dançar)
"É mais um Natal, David; estou aqui! "




Frank Zappa
Olá, caros ouvintes.
O jazz faz tarde de hoje é dedicado a um senhor que considero ser o meu guru da música. Falo do ilustre Frank Zappa, o grande Frank Zappa.
Este senhor é um marco na história da música.
Compôs e tocou todos os estilos: rock, pop, jazz, clássica, fez bandas sonoras para filmes...
Deve ter sido o músico mais profícuo de sempre dado que a sua discografia é extensíssima. Frank foi um multi-instumentista; tocava, com mestria, guitarra, vibrafone, piano e também bateria e percussão.

Foi uma personalidade polémica devido ao seu humor negro e às suas frequentes intervenções na vida política dos Estados Unidos.

Tenho muitos discos de Frank Zappa e foi difícil escolher um tema, mas como este é um programa de jazz escolhi um que é consideravelmente jazzístico para aqui ser apresentado.
O tema chama-se “Peaches en Regalia” e é uma autêntica bomba da música universal.
Oiçam com atenção e até logo que...

Jazz faz tarde

David Sobral
(2001)