20 outubro 2017

Ainda tu!

Há já uns tempos, num Congresso para que o Manel foi convidado, pela Casa de Mateus em Vila Real, fui como acompanhante (convidada).
O tema do encontro era "O Infinito" e contava com a presença de pessoas extraordinárias - cientistas, físicos, matemáticos, juristas, artistas, escritores, teólogos, oriundos das mais variadas instituições de investigação e do ensino superior portuguesas e estrangeiras.
Depois da sessão inicial e de apresentação, no belíssimo auditório da casa de "residências artísticas", os debates fizeram-se à volta da lareira, enquanto se jantava, à mesa do pequeno-almoço ou ao almoço.
Enquanto os ouvia, ia formulando a minha própria "teoria" sobre a questão!
Sempre gostei destes assuntos, apesar de completamente leiga em conhecimentos científicos ou matemáticos.
Sentia-me pequenina, perante tanto conhecimento.
Acabei por me encher de coragem e disse o que pensava, enquanto pessoa comum, ateia e mãe que perdeu um filho!
Falei de ti ..., do Tempo ..., da Vida ..., do livro que escrevera ...
Ouviram-me com atenção, apesar da tremura na minha voz e da humildade com que me apresentei.
Debateram sobre a minha opinião, a de alguém fora do circuito.

Um padre jesuíta, doutorado em Teologia e também em Física, um Teólogo, professor de uma universidade espanhola, e um professor de Física da Universidade Nova de Lisboa vieram conversar comigo, no fim do debate.
Ali ficámos, sentados nos sofás, em frente à lareira, já a noite se alongava.

Lembrara-me das tuas próprias palavras e repeti-lhas "Mas eu sei que o segredo da imortalidade é saber partilhar com os deuses a maravilha da criação." 

...
No último dia, acabaram por me perguntar onde poderiam comprar o livro "Mamã, vamos dançar?"
Enviei-lhes (como oferta) pelo correio.
E chegaram mails que não quero esquecer porque são, também, sobre ti, David!
Por isso, os vou colocar aqui, nesta Casa da Venância
São Teólogos, ambos. Estudiosos com uma imensa cultura, pessoas espantosas que me aceitaram como sou.
Um deles continua a lembrar-se de ti/de mim/do Sérgio, nos dias 27 de Abril (o teu aniversário) e 18 de Outubro (a tua morte) de cada ano e envia-me palavras de compreensão e acalento!
Estou-lhe tão grata!


Cara Dra. Isabel:

Finalmente, venho de novo agradecer-lhe a possibilidade que me deu de ler o belo livro sobre o seu filho David. 
Gostei imenso e comovi-me muito, muitas vezes. A leitura, para mim, constituiu uma verdadeira leitura espiritual. Tenho o livro praticamente sublinhado em todas as páginas e o título expressa bem a grandeza do seu filho: “Mamã, vamos dançar?”. São tão belas estas palavras!
Verifico que foi uma experiência muito sofrida e dolorosa, a sua e a dele, mas, acima de tudo, o livro ressalta a coragem e a grandeza de um amor grandioso, cheio de cumplicidades, entre si e o David. Pelo que descreve no livro, o David era mesmo um ser excepcionalmente dotado, quer a nível humano (com um coração terno, delicado e sem fronteiras, com uma enorme bondade e facilidade para criar laços, fazer amigos e cativar pessoas), quer a nível das muitas capacidades de que era possuidor (culto e muito profissional em tudo o que fazia). Pela leitura fiquei com vontade de o conhecer.
Notei que ao longo do livro vai retomando, muitas vezes, algumas questões: 
- a perda do filho, mas também a saudade e a esperança de que não o perdeu (o que se nota em expressões do tipo “como poderia perder-te se andámos sempre juntos?”, ou “eu vou continuar perto de ti”, ou ainda “os filhos são eternos”);
- uma mágoa compreensível de o filho ter partido tão cedo (“porquê o David?”); 
- a impotência, a recusa (“um NÃO que grito cá dentro”), a revolta e a culpa (parece que não é capaz de perdoar-se?) de não ter podido ter feito mais por ele, de não ter percebido quando ele começou a ter faltas de apetite e cansaço; 
- a não-aceitação de que os médicos que viram os primeiros sintomas da doença do David não tenham detectado logo a gravidade da situação; 
- a relação difícil com o pai do David (apesar do divórcio pacífico) e respectiva família (o desinteresse desta – particularmente da prima – pelo David); 
- o ter tido pouco tempo, durante a doença do David, para dedicar a devida atenção ao filho Sérgio; 
- o tema da existência de Deus, que vai estando também presente, para contrapor à sorte ou ao mal e atrocidade da doença do David (“já que não acredito em deuses … teria agora todas as razões para deixar de acreditar”; por outro lado, lembra-se do caso da amiga Elsa que, com “tanta dor e ‘injustiça’, acreditava em Deus!”); 
- sente a perda do David como uma injustiça para ele (a morte roubou a felicidade devida) e para si;
- sente que a sua dor não interessa aos outros;
- medo de se terem acabado os sonhos e o sentido da vida…

Cara Isabel, vejo em si uma mãe grande, a mãe que o David merecia e continua a merecer! Admiro a coragem que teve para ajudar o David no seu calvário. Como já lhe disse, eu acredito que o Amor não morre. E o seu amor de mãe e o do David por si também não morrerão nunca. Gostaria muito de um dia me encontrar com a Isabel para a ouvir falar do seu filho, de viva voz e já não através das páginas do livro.

Nestes dias em que nós, os cristãos, meditamos no mistério da morte de Cristo, lembro-me também do mistério da morte do David e da dor da Isabel, pois trata-se do mesmo mistério de amor. Tenho-a presente nas minhas orações, bem como ao David, mesmo sabendo que a Isabel não é crente. Não me esquecerei também do dia 27 de Abril, em que o David completaria 37 anos. Eu acredito que ele já possui a vida e a paz definitivas, já sem sofrimento.

Desejo que tenha um bom dia de Páscoa, com muita paz e esperança, juntamente com o Sérgio e esposa, com o seu marido Manuel, a quem peço que dê os meus cumprimentos, e, claro, com o David, que a continua a acompanhar “lá do alto”, com a mesma alegria de sempre, e a desafiar a sua corajosa mãe: “Mamã, vamos dançar?”
Um abraço agradecido e amigo do

Álvaro

14 outubro 2017

Foi assim, num dia 14 de outubro



14 Outubro 07

É Domingo, já estou com o David, no 4o piso, no quarto 24. Só ao fim da tarde, é que nos trouxeram. Tiveram de mudar doentes de enfermaria para poderem ter um espaço para o David e para mim. Pediram, muitas vezes, desculpa pela demora, mas nós estávamos bem! O Manel veio logo, assim que se fez o internamento, já como visita. Esteve até às 20h. O Manelzinho também apareceu, sozinho, um pouco mais tarde; o David gostou muito de o ver e conversaram um bocadinho sobre “as coisas deles”.
Agora, o David dorme, aqui ao meu lado. Continua com soro e oxigénio e está calmo. Ontem e hoje foram dias de completo desespero, num silêncio gritante de pânico. Não sei raciocinar sobre esta avalanche de infortúnios; não sei o que fazer! Estou aturdida, lacerada por tantos golpes contínuos. Sei que não posso chorar, mas isso é muito pouco; sempre o fiz! Nunca a situação foi tão trágica e tão sinistra como agora. O David internado, com febre, sem força para falar, com dificuldade em ingerir líquidos, tão pálido!

Logo pela manhã, a psiquiatra veio ter connosco; deixei-a a sós com o David. Fui ver o Manel que já se encontrava, novamente, à porta da urgência. Contei-lhe, como pude, o que a médica que estava, agora, a assistir o David me dissera, quando eu tinha pedido para falar com ela.
... “cancro difuso”, nada a fazer, apenas mantê-lo confortável e sem dores; está bem hidratado... não tem sede... precisa que o animem e acarinhem... e chorei, chorei baixinho lágrimas incontroláveis, sepultadas bem no fundo de mim e presas no tempo. Ela tirara-me dali para que o David não ouvisse e segurou-me na mão. Ajudou-me a sentar, ali próximo, num cantinho qualquer. E chorei muito e mais e mais baixinho ainda. Ele estava com a psiquiatra; estava bem. Eu podia chorar só por um bocadinho!

Que sensações desconexas e de endoidecer! Não se explica porque tudo é sentimento, mágoa e demência em catadupa. Soube que o David já não vai sair deste hospital. Soube que estavam a tentar libertar uma enfermaria, só para o David e para mim. Soube que não nos iam separar ! Soube que era o fim; e que não tinha dores... Que talvez perdesse a consciência! Talvez coma! Por quanto tempo? Não sabe; ninguém sabe! Tudo imprevisível! Ficarei com ele. O tempo não existe.
E foi tudo isto que fui dizer ao Manel. E vi-o ficar “pequenino”, pálido,... encolhido de tristeza, derrotado e de ombros caídos. Uma batalha perdida! E chorámos ali, os dois. Encostados ao muro. À vista de toda a gente. Que interessava a gente? É o nosso filho que se vai...

Decidimos que não haveria rostos tristes, nem olhos molhados ou inchados de choro, em frente ao David. Nem suspiros de desânimo. Nem perguntas a que ele não sabe responder. Foi o que combinámos, nesse instante. O David, quando ficar bem, vai regressar a casa. É assim que ele pensa que será. E nós con- firmaremos... Não aceitaremos desiludi-lo! Seria cruel demais!
Ele deixará sonhos, utopias, um rasto de músicas e sons, uma espantosa capacidade de se dar aos outros e uma grandiosa paixão pela vida! A herança dele é um inexpugnável castelo feito de coragem, de solidariedade e de fortes laços de ternura. A chave desse castelo... leva-a com ele. Só ele a sabe usar!

Entretanto, a psiquiatra já tinha conversado com o David e, quando cheguei à beira deles, informou-me que o David tinha repetido que não queria ficar sem a mãe e que ela já o tinha sossegado. Eu ficaria com ele! E o David acenou-me com a cabeça, como quem diz “Está tudo resolvido!”
Perguntou se a Olga já estava lá fora, tinha saudades dela; ficara de vir um pouco mais tarde; não devia tardar. Perguntou pelo Manel que o foi ver, já de olhos bem enxutos; falaram de futebol. A Carla apareceu-lhe, sorridente.
O David perguntou se o Sérgio não tinha vindo! Tinha vindo; estava, lá fora, muito perturbado e um pouco renitente em entrar! Foi a própria médica que foi ter com ele e lhe explicou que o David estava bem disposto e que tinha dito que gostaria de receber a visita do irmão. O Sérgio acatou, timidamente, e foi vê-lo. Sei que lhe estava a custar dominar-se para não demonstrar emoção. Mas só podemos pensar no David! Não vai ter muitas mais ocasiões de estar com o irmão! Já mo disseram, já o repetiram; sei que é assim, embora não consiga acreditar no que sei ou no que os outros me dizem... Há coisas que não podem acontecer!
O tempo alongou-se na urgência. O David quase nada comeu do que lhe trouxeram, apesar de passado. Na cozinha, já sabem do menino que não consegue engolir e que precisa que lhe passem a comida. Foi dormitando, acordando e conversando... dormitando... Eu fui vagabundeando entre o dentro e o fora da urgência, sem saber o que fazer, o que sentir, o que pensar. O Manel ficou mais um bocadinho só com o David. Ninguém impede a nossa entrada, desde que seja um de cada vez. Devem estar informados do que se passa. A Olga chegara e eu precisava de conversar com ela, antes de a deixar ir ver o David.
Chegara o momento cruel de toda a verdade, e eu não encontrava as palavras, não sabia como dizer-lhe. Ela sempre foi optimista, tal como o David. As nossas conversas à mesa sempre tinham tido como tema os projectos do David, os concertos do Drumming, a profissão da Olga, o nosso dia-a-dia e, por vezes, o decorrer da doença do David. Mas sempre num tom confiante!
Sentei-me, encostada ao muro, junto da Olga, a fumar e a tentar explicar-lhe, no meio de lágrimas, que o David vai viver pouco mais. Contei-lhe tudo o que a médica dissera. Senti-me tão culpada pelo sofrimento dela, por esta revelação tão súbita... Nunca lhe pude dar tempo para se preparar,... Mas como? Se eu nunca estive preparada! Se eu não estou preparada! Mesmo agora!
Custou tanto dizer esta verdade tão cruel a uma rapariguinha que sempre acreditou que o David se ia curar; que o amou e apoiou nos bons e maus momentos de um namoro tão atribulado pela
doença. Doeu muito magoar, desta forma tão áspera, aquela a quem o David sempre dissera que só era preciso ter um bocadinho de paciência. Só mais um bocadinho de paciência! Sentia-me como se estivesse a magoar, a trair o David!
Pedi-lhe perdão. Pedi-lhe compreensão. Mas não podia ter feito de outra maneira! Pelo David e pela paixão com que vivia! Também eu e o Manel acreditámos, sempre, que talvez fosse possível o David melhorar. Não podia destruir-lhe esse sonho; não era justo que ela tivesse vivido cada dia no mesmo sobressalto em que eu vivera. Porque cada momento da minha vida fora, desde há muito, vivido num medo tenebroso. Agora, a única coisa que podíamos fazer pelo David era... viver com ele como se tivéssemos todo o tempo do mundo, como se a nossa confiança nos tratamentos continuasse!
O David teria orgulho na Olga... que, serena mas muito triste, me disse que o amor pelo David era o de sempre e que eu não devia ter receio; ela saberia controlar-se à beira dele e manter-se confiante!! Se era a única e última forma de continuar com o David, fá-lo-ia, como eu e como o Manel
O pai do David, que chegara e se aproximara de nós, ouviu tudo o que eu dissera. E poderá visitá-lo? Não depende de mim... nunca dependeu, aliás! Será como o filho quiser. Tentarei falar com o David, amanhã, numa altura em que esteja sereno. E chamá-lo-ei se ele quiser a visita do pai. Mas o David espera regressar a casa...

São onze horas da noite. O David está encolerizado! O novo médico assistente veio observá-lo e conversar um bocadinho com ele. Disse-lhe que, amanhã, terá a visita de uma prima médica (de quem ele não fixou o nome!) e que virá acompanhada por uma colega dela que trabalha, aqui, no HGSA.
O David percebeu imediatamente de quem se tratava. Insurgiu-se; ficou muito inquieto e alvoroçado, “Se quiser ver alguém, eu telefono! Não a quero aqui! Nem a ela nem a ninguém... nem aqui nem em casa! Mas porque nunca respeitam a minha von- tade? Que não se atrevam a entrar! Dr., pode dizer-lhe que se a vir aqui, chamo os enfermeiros para a porem na rua. Envergonho-a!”.

Eu tinha prometido perguntar sobre a vinda do pai. Mas, perante a ameaça da visita surpresa da prima e pela reacção exaltada do David... percebi qual seria a resposta. Ele acabava de a dar! O David não tem paz! Esta rapariga não respeita a privacidade de ninguém; impõe-se às pessoas; só pensa nela. O David está vivo, ó deuses. Deixem-no manter a sua integridade até ao fim!
O médico não sabia o que dizer; desculpou-se. Disse que daria o recado! Coitado, não fora por mal, antes pelo contrário. Pensava que estava a ser simpático; que o David ficaria satisfeito! O David esclareceu-o que a mãe tem autorização do director deste serviço para permanecer aqui sempre e que não haverá nenhuma visita surpresa. Nenhuma! Porque é assim que ele quer!
Só interessa proteger o David, com calma e sem que nada haja de diferente do usual, neste quarto. Temos-lhe dito que o internamento se destina a combater a infecção e a febre e que, depois, vai para casa.
Estranharia, até, se começassem a aparecer pessoas com quem não tem tido qualquer contacto ou que pouco se aproximaram dele na fase mais difícil da doença – antes de irmos para Barcelona. Apesar de estar um pouco entorpecido e dormente (por vezes), o David é muito inteligente e perceberá que algo não está bem se começarem a rondar-lhe a cama do hospital, de forma inusitada.
Tenho de manter o sangue frio! Isto não vai transformar-se num velório. E não é! Não quero o David apoquentado! Não o quero triste! Mais triste ainda? Tudo deve ser encarado como uma fase de internamento para combater a febre. Não; sei que não é assim!! Não voltaremos os dois a casa! Mas é a única coisa que posso fazer, ainda, pelo meu filho – protegê-lo do sofrimento atroz que seria alguém dizer-lhe “Não penses no amanhã! O mais provável é que lá não chegues! Venho despedir-me.”.
Não, não posso consentir numa atrocidade dessas para este rapazinho já tão frágil, já um pouco anestesiado... mas sempre tão doce? Ele sempre me disse que havia perguntas que não fazia porque não queria saber a resposta! Que direito tenho eu de lhe dar respostas para esta situação. Fez as opções que entendeu e eu não tenho direitos. Só o dever de o respeitar.


O meu filho tem o direito de se sentir vivo, até sempre! Está vivo, ainda nos sorri! Ainda me dá o meu abraço da noite! Ainda fala da vida pela frente e dos sonhos a realizar.
Está vivo e quero olhar para ele, sem que sombras de lágrimas ou desacertos da vida o perturbem. É um direito que ele conquistou! Quem lho poderá negar? Nunca os que o amam! E são muitos os que sabem que ele se entregou por inteiro, ingenuamente e sem escudo a todos os que conseguiram penetrar na sua cidadela feita de luz e de imensa bondade.
Dorme bem, meu filho!