31 dezembro 2015

David ou uma outra forma de dizer adeus ao ano que finda



Neste dia incerto, entre o choro e o riso
Entre o já não ser eu e o ainda não ser outra
Neste tempo certo das palavras mudas
Ponte suspensa de um ponteiro de relógio
Vejo nas copas das árvores despidas de lágrimas
Uma sombra imóvel
Que desenha um gesto urgente de silêncio e de doçura
E me arrebata da vertigem da saudade ou da descoloração dos dias
Para a ondulação do mar onde flutuas
Dentro da minha mente
Ou por dentro das estrelas








06 dezembro 2015

Repetindo, repetindo, repetindo ...


Aqui regresso, à casa do silêncio.
Arremessada pela lava do vulcão da dor.
Pela incapacidade de te resgatar da juventude perdida no mar.

Cá no fundo me encolho.
Ou escondo.
No escuro e na lama me revolvo em ondas de raiva.
Ensimesmada, protejo-me de olhares alheios.
Se ando bem?

Ando bem.
Embora não chame a isto viver.
Antes sobreviver, dentro de um coração desassossegado.
Perdida sempre na ilusão de te sentir tão perto.
Ainda.

Aprende-se a parecer feliz com bem pouco.
Na modéstia dos desejos.

22 setembro 2015

Um cheirinho a ti!



Ainda os teus deliciosos comentários a espectáculos ... neste meu permanente vazio.




"A Princesa Malene"

 Há não sei quanto tempo, fui ao Teatro Helena Sá e Costa ver o primeiro espectáculo do recém-criado Núcleo de Criação Teatral. Cheguei atrasado e a pessoa com quem fui, ainda mais. 
Entrei, subi, tropecei, disse "Ai! Porra!", levantei-me, sentei-me e concentrei-me.
A primeira parte do espectáculo é muito parada. Não há quase som nem música. Não senti qualquer envolvência. O baile é muito lindo mas parece que não está a acontecer, não tem impacto, tal era o marasmo que até ali se fazia.
A minha companheira adormecera, entretanto, o que me fez sentir culpado por a ter levado a ver aquele espectáculo. 
Pareceu-me que já não se faz teatro para as pessoas. Depois de recebido o subsídio, há uma guerrinha entre as companhias e fazem-se peças para se impressionarem uns aos outros e as discutirem, depois da meia-noite, no Bar Pinguim. 
Introspecção feita, voltei a aterrar no THSC.
Metade do elenco desiludiu-me. Dos restantes, uns surpreenderam, um em especial deixou-me rendido ao seu talento e houve um outro que me confirmou a sua má qualidade em palco.
O texto dito, só serviu para perceber a história e não o suficiente para me deleitar com alguma poética que pudesse existir naquelas palavras. 
As mudanças de cenário são chatas, feitas em total silêncio. Lembrei-me dos festivais de verão, quando, no intervalo entre bandas, numerosos técnicos de palco, mudam baterias e outros instrumentos. 
Ainda em relação ao som e à música, o facto de esta quase não existir na primeira parte, fez-me pensar que o "gajo do som", chegou sempre atrasado aos ensaios. Mas quando a há, a música é muito boa, também é verdade.
A cenografia é muito versátil e a sua relação com a luz é profunda. Por falar em luz, acho que esta é a área mais elaborada. Ela carrega e transporta todo o ambiente soturno e denso que se vai criando. Sem falhas.


Não sei se terei feito mais esforço a ver esta peça tão seca ou a escrever este texto tão seco.

22 julho 2015

Nenhum palácio encantado da ventura!



Ouço tantos falarem da obrigação de se ser feliz.
Apesar de tudo.
Apesar da morte de um filho ...
Outros tantos dizerem que ser feliz é um imperativo.
Porque sim! Vida há só uma ...
Doa a quem doer.
O que passou, passou!! Agora, é olhar em frente. Mesmo não vislumbrando o percurso ...
Existem sempre vozes seguras que se impõem, catárticas.
Sábias, inquestionáveis nas suas certezas absolutas.
Egoístas. Absurdas. Maniqueístas.
No deserto entre o ser e o não ser.
Prepotentes, neste lodo difuso, em que só somos ... se todos formos.
Enquadrados! Iguais.
Que é o mesmo que dizer.
Iguais a nada. Cinzentos.
Submissos às maiorias que vingam; armadilhados entre crenças ancestrais; servos de um hedonismo balofo.


Eu reivindico o meu direito à tristeza da saudade, à melancolia, por contraposição à imposição de ser feliz.
É que, à minha maneira, sou muitas vezes feliz (apesar da dor aguda cravada no bocadinho de carne onde dizem estar o sentir).
Antecipo os meus momentos de felicidade.
(Sei quando o sorriso dos meus netos vai bater à minha porta!)
E nunca fujo!
Mas não me imponham a busca da ventura como preceito!

Como lema de vida, tenho um, apenas -  actuar sempre de forma que a minha mãe Alice e tu, querido, muito querido David se sentissem orgulhosos de mim!!
É uma forma simples de buscar a paz.






Paragem num tempo vago ...



















Segredos do oceano

Ouvi o vento
Observei a minha vida
Nascer para ser selvagem...
Era o que eu pensava
Mas quem falou comigo?
Que não vi
Dei-lhe um beijo.
Talvez sinta a minha falta
Porque eu fugi
Por algum tempo
Em busca do meu dia
Esquecendo o meu lamento.

            Porquê chorar? Porquê?
            Não sei
            E não quero saber
            E não preciso
            E porquê chorar?

Os meus passos
A par do meu destino
Amarram os meus pensamentos,
De outro modo livres
Cheguei então ao meu destino
Onde está o mar
Corri pela praia
Parei quando encontrei
Um cavalo-marinho
Com quem tinha falado
Disse que a razão da minha raiva
Me empurra para a morte
Procurei o que todos procuram
A imortalidade
Que não existe!

Mas eu sei
Que o segredo da imortalidade
É saber partilhar
Com os deuses a maravilha da criação
E os cavalos-marinhos mergulham
No oceano
E o silêncio chora comigo

David Sobral (1995)


11 junho 2015

O tempo desagua em ti ...

E resta-me viver
 ...
não antevendo com que alfabeto traduzir-me
escurecendo a um canto de mim
mil vezes ao dia
nas entranhas aduridas de saudade antiga
resistindo à voragem do medo que atordoa
no cárcere de um tempo cego,
inverosímil, sem ti
sorvendo silêncio e solidão onde me abrigue.
ou, então, fixando-te, menino, por detrás das pálpebras
e
desistir de todos os desígnios
ensaiar na pele a água fria do mar
como quem navega
(tu, sereno, mesmo ao lado)
desertar de quem me habita
eu e a outra.
Ficar estranha de mim
Aconchegada
Numa névoa branca da memória.



                         Morreu Ornette Coleman - um pedacinho mais de ti.




27 abril 2015

Sob a tua luz





Hoje, David, completarias 37 anos.
O meu coração rodopia em contínuos vendavais de dor e de saudade.
No entanto, esta dor ... quero-a toda, em cada dia.
Quero tudo o que resta de ti, em mim!

Parabéns porque nasceste, meu filho.
Na tua jarra, mais uma flor.
De melancolia ...




18 março 2015

Ainda hoje o coração "vomita" ...

18Julho07


Foi um dia louco, de ira; sim, de ira ... totalmente incompreensível e inverosímil!!
Eu e o David partimos, para mais uma tentativa de cura no estrangeiro. Desta vez, em Barcelona, no Hospital Vall d’Hebron, com a equipa de ensaios clínicos de uma nova droga para tratamento do cancro do cólon e do mieloma, orientada por um médico oncolo­gista chamado José Tabernero.
Chegados ao aeroporto, decidimos seguir directamente para o Hospital, sem passar pelo hotel, a deixar a mala. A consulta estava marcada para as 13:30h; ainda faltava mais de uma hora, mas o David preferiu assim; disse-me que já tinha intenção de chegar e pedir, de imediato, para avisarem os médicos de que já lá estava. Podia ser que nos atendessem mais cedo!
Foi o que ele fez e o que aconteceu. No balcão de atendimento, logo lhe disseram que o chamariam, assim que o Dr. A. acabasse de atender o doente que tinha no consultó­rio e que não demoraria muito. Lembrei-lhe que o pai estava a contar com a consulta às 13:30h. Disse que lhe ia enviar um sms a avisar, mas que entraria imediatamente, assim que o chamassem para a consulta.
Não queria saber disso!
Sentámo-nos; estávamos cansados da viagem e do calor. Eu tirei o tricot, como me habituei a fazer, nestas esperas, para controlar a ansiedade. Embora, raramente resulte ... A sala estava cheia; gente que aguardava consulta, outros que iam fazer quimiote­rapia ou análises de controlo. Em tudo, semelhante àquilo a que estávamos habituados no HGSA, mas com muito mais gente e mais e melhores instalações.
Era isso que eu e o David íamos comentando, para além de conjecturarmos sobre o que se iria passar e qual seria a decisão. A decisão do David! Só dele ...
A certa altura, no meio da conversa, o David fez-me esta pergunta estranha “Mandaste algum e-mail a toda a família do meu pai?”
...
Fez-se luz no meu espírito ... claro! Percebi tudo! Que ilusão, que burrice e que ingenuidade a minha! Acreditar que, para eles, o David estaria primeiro! Que a saúde do David era a única coisa que importava, em vez do reavivar de querelas esquecidas e sem sentido de um divórcio relativa­mente pacífico ... já do século passado, há mais de 25 anos!!
Percebi, logo, que se referia ao e-mail pes­soal e confidencial que eu tinha mandado à prima do David, por eu gostar realmente dela, por pensar que havia um elo especial de amizade entre os dois primos e também por ser médica e contar com a ética dela, a pedir ajuda ... para ele ... o primo dela!! Ajuda que ela lhe negou, bem ciente do estado debilitado em que ele andava! Ajuda que ninguém deu, ... uma vez que divulgara o meu e-mail explicitamente confidencial à família dela!!! Num foward geral, indiscriminado!!! Nem sei a quem!! 
Expressamente eu a pedir sigilo, que ela quebrou, ... divulgando-o, desta forma macabra! Que coisa espantosa!! E a versão para o meu filho era que EU tinha mandado um e-mail a toda a família!? Eu?? Eu não! Ela, sim! Aquele e-mail fora um pretexto para o pai do David se queixar de mim, ao filho! Numa situação destas?
Que revolta e que ódio dentro de mim, nestes pensamentos imediatos! Eu não mere­cia. O David muito menos ... Sobretudo o David não merecia esta desumanidade! Ela não é mãe, não deve perceber esta dor ... mas podia ter parado um bocadinho para pensar antes de tamanha aleivosia! Que incrível atitude ... para com o David ... com um cancro terrível! Que me tivesse telefonado a rejeitar o meu pedido, a dizer-me o que quisesse. Mas não ... a honra da FAMÍLIA está primeiro!! Em que filmes já vi isto?
Não hesitou um pouquinho a pensar no David!! Que cruel! Será que, algum dia, lhe interessou o estado de saúde do primo?
...
Disse ao David que sim, que mandara um e-mail à prima; só à prima! Devia ser só entre mim e ela! A pedir auxílio ... porque ele estava a ser teimoso, muito obstinado e insensato na recusa de conti­nuar com as consultas da psiquiatra. Eu queria que ela o conven­cesse e que me ajudasse! Explicava-lhe, claro, as razões do meu pedido (relacionamento estranho com o pai) e que eram as que ele invocava, sempre que eu lhe falava no assunto. Contei-lhe tudo … que não era muito! Era só isto! Como se numa situação tão dolorosa para uma mãe ... qualquer outro detalhe interessasse! Que ideias tão enviesadas e tenebrosas! Que cabeça tão pouco saudável, a dela!  E disse ao David que lhe mostraria o e-mail, assim que regressásse­mos.
Ficou triste, muito consternado ...  Pensava alto ... O pai tinha lido o e-mail e ... não fizera nada ... além de se queixar de mim! Colocara-se do lado da sobrinha e não do filho! E disse-me que eu tinha procedido bem; que é natural uma mãe tentar tudo pelo filho, um filho que nada sabe do futuro que o espera; que “não sabe quantos anos tem de vida” sob aquela espada afiada ...
 Que penar tão grande, o deste meu filho! ... pensava eu, com a raiva a nascer-me nos dentes”. Mas ele continuou, com uma serenidade surpreendente, a dizer que faria o mesmo pelos filhos, numa situação assim tão crítica. E que acredita que ainda vai ter filhos e que vai apoiá-los, como eu sempre fiz. 
Que vai esclarecer tudo! Com a Mafalda, com o Pai.
Mas instalara-se uma profunda tristeza nos olhos do meu filho. E dói tanto quando os olhos dos filhos sofrem ...
O pai e o tio chegaram. O David quis clarificar tudo sobre o e-mail “da minha mãe”, logo ali. Discussão violenta; acusações de parte a parte ... O David a repetir “É mentira!” Toda a gente a olhar!  
...
Fomos chamados para a consulta. Que alívio!! Os médicos esclareceram que vão analisar as amostras em parafina, para verificarem se o organismo do David é receptivo à droga que está a ser testada. Explicaram, ainda, como decorrerá o tratamento se o David for aceite. Que tudo indica que sim! Dentro de alguns dias, comunicarão os resultados.
E saímos; ele com um ar mais determinado, muita revolta e desolação no olhar.
Lá fora, mais zanga. Berros e revolta e lágrimas gordas nos olhos do meu filho. O pai só exigia respeito ... O David exigia, também ele, respeito, por uma vez que fosse! E exigiu distância … porque aquele estilo de apoio familiar ... não o quer ... não lhe faz bem. Sempre teve dois pais! Mas só um deles, o Manel, é que não lhe pede nada em troca; dá-lhe apoio incondicional! Era só disso que precisava, desde o início ... não era pedir muito ... apoio, apenas!
Solidariedade é uma coisa que nunca compreenderam! Apenas dominam a linguagem do dinheiro e da raiva contra quem não se submete. Mesmo um filho à espera ... talvez ... da morte!!
Um discurso entrecortado de soluções, de muita desilusão, mas lúcido. Terrivelmente lúcido.
Dolorosamente lúcido!

.....
Ficámos sozinhos. O David sentou-se, revoltado e frágil, nas escadas do hospital. Chorava de fúria e eu tentava acalmá-lo. Soluçava! “É para aqui que venho e hei-de curar-‑me! Quando ficar bom, explicar-lhe-ei o que é a solidariedade e o que é um apoio incondicional! Até lá, só quero distância. Muita distância! O meu perdão, nunca o terão!”
Foi arrepiante! O David, sozinho, naquela discussão seca de qualquer ternura, de qualquer vestígio de humanidade ... E ele tão doente, tão cansado de lutar! Eu sempre lidei muito mal com a agressividade; não é segredo para ninguém. Devia ter pedido ao Manel que viesse; nada disto teria acontecido! Ele saberia como acalmar o David.
Ficámos mais um pouco, até o David recuperar a serenidade. Apanhámos um táxi e foi, cambaleante, para o hotel. Estava muito calor e o David precisava de repouso e de relaxar. Com­binámos ir, ao fim da tarde, até às Ramblas, lanchar e passear um pouco. Esta cidade é muito bonita, o David gosta dela, conhece-a bem e quer mostrar-me os sítios interessantes.
E foi o que fizemos.
...
O David parecia ter acalmado e estava bem disposto. Visitámos La Boqueria, o bonito mercado de Barcelona; as praças interiores, com imensas mesas e cafés cheios de gente a beber coisas frescas; o Liceu, teatro onde o David já esteve ... o Barrio Gótico ...
Finalmente, sentámo-nos numa esplanada e jantámos, enquanto conversámos sobre o que se tinha passado. O David disse que está inclinado para optar por Barcelona e que não ia gastar energias a preocupar-se com discussões nem gente medíocre. Basta-lhe o apoio incondi­cional de toda a “massa associativa” que tem à volta dele! E riu-se, o meu doce filho!
Tinha gostado muito do Prof. Machover, mas o ensaio clínico já está a começar e não arrisca perder a oportunidade! Se não resultar, pode sempre voltar a Paris. O contrário não seria possível.
Falou de tudo isto de forma serena. A coragem e discernimento do David são extraordinários. De forma alguma, o que escrevo nestes diários dá a ideia exacta da postura dele, perante a vida. Todos os nossos amigos o admiram mas ele é muito mais do que aquilo que deixa transparecer. Só quem está perto dele 24h, por dia, se apercebe do lutador que é, da sua natureza afável que, mesmo doente, se preocupa com a saúde e o bem-estar dos outros. Qualquer forma de o tratar menos bem ou com menos compreensão é inadmissível, cruel e desu­mana; porque isso magoa-o desmesuradamente e ele está muito debilitado. Aprecia todas as atenções que lhe prestam e todo o carinho que lhe manisfestam.
...
Viemos deitar-nos cedo. Parecia calmo. Deu-me um grande abraço, antes de ir para o quarto dele, e disse-me “Vai correr tudo bem, mamã! Eles nunca nos mereceram!”

Eu vivo de uma forma confusa, nesta agitação incoerente; o David consegue que eu me sinta optimista e transmite-me toda a coragem e força para resistir. É ele quem comanda as minhas emoções. E, durante o dia, é assim que me sinto; mas, à noite, voltam o medo, os calafrios, uma enorme agonia, o não compreender que vida é esta, o imaginar que os dias, tal como os conheci, não voltarão. Chorei porque a raiva e a revolta se avolumaram pelo facto de o David se ter sentido tão mal amado ... por quem amava.
Em que irá ele pensar na solidão do quarto, aqui ao lado? Ficará, como eu, a tentar apreender que gigantesca onda de sofrimento é esta, em que lutamos dia a dia para nos mantermos à tona; em que o medo acompanha o ritmo da respiração; em que não percebe­mos que enigmática e cruel cegueira se apodera tão intensamente de algumas pessoas??
Espero que não! Espero que a força com que vive cada dia, o faça adormecer e o embale em sonhos com palcos que ele ilumina, para receberem a música ...

A música é a verdadeira paixão do David.

in "Mamã, vamos dançar?"