28 setembro 2014

Dias soltos




Ao longo de cada lento e longo instante
O dia desprende-se do sol
Escurecida eu
Debruço-me no lusco-fusco
Do abismo que me atrai
De retorno ao tempo
Que percorríamos a par
Seguros 
Ao som da esperança

E as imagens ressurgem
Nítidas, penosas
Ternas
Sobrepõem-se ao aço do tempo
Entre mim e ti

Num corpo cansado
Ausente, numa máscara perfeita
A todos engano

Alguém saberá que permaneço
Ainda
Nesse tempo onde me sentia gente?





17 setembro 2014

Desconstruindo ...


Fluir

Talvez em ti acabem hoje todas as nascentes,
e nas rugas que, numa e noutra face,
esculpiram o medo e a sabedoria,
se possa ler em comovido olhar
o princípio, o meio e o fim desse caudaloso
fluir que outrora chamámos vida.

Talvez agora, tal como ontem e sempre,
comece a própria morte,
aquilo que nos devora,
aquilo que nos convoca para o silêncio e para
a mão que escreve, sonâmbula e feroz,
estremecendo.

José Agostinho Baptista


16 setembro 2014

Só porque pensei David




Às vezes


Sophia de Mello Breyner 

Às vezes julgo ver nos meus olhos
(Com olhos outros, alguém que já não eu)

A promessa de outros seres
(Outros porquê? Se me bastava assim)

Que eu podia ter sido,
(Como e quem, sem ti?)

Se a vida tivesse sido outra.
(Vida apenas ... )


Mas dessa fabulosa descoberta
(Dolorosa ... dia a dia)

Só me vem o terror e a mágoa
(Palavras gravadas a medo)

De me sentir sem forma, vaga e incerta
(Nua entre farpas desfeitas em sangue)

Como a água.
(Ou a espuma.)

04 setembro 2014

Um outro luto ...



Antes que a água que rebentou do meu chão
À l'envers
Molhe o tecto e leve, novamente,
O tu que me restou
O teu saber
As tuas luzes
Os teus sons de percussão


E se instale o silêncio
Ou a escuridão

Antes que se faça tarde
E a passividade me adormeça os sentidos
Ou a tua letra se descole em palavras soltas
Por entre fios líquidos
E os teus materiais de estudo de luz se diluam
No leito de água que brotou do chão
À l'envers

Antes que as cortinas se fechem
E tudo se encerre no passado
...


02 setembro 2014

Já Outubro para o mês que vem.


Dizem os experts dos livros do luto "pode-se viver com isso".
Vou lendo, lendo sempre, os livros que vou encontrando sobre a morte de um filho.
Há mais de seis longos anos ...
Raros são os que resistem ao prenúncio de que, depois de um terrível período de dor, virá a aceitação.
Ou então, dizem seguros, dar-se-á um clic.
Porque percebem que têm de aceitar para serem felizes.
É um direito que lhes assiste!
Voilà! C'est tout.

Mas.
Está na minha natureza ser ovelha negra.
E eu quero guardar na memória todos os dias contigo, incluindo os trágicos.
Não quero esquecer.
Ser feliz??
Saudade e dor, é o que me restam de ti.
E quero-as coladas a mim, enquanto viver.

Sempre fomos ovelhinhas negras, não é David?
Duas orgulhosas ovelhinhas negras.
Não faz mal ... embora a dor ... embora a saudade, em permanência.

Claro que se vive!
Um desviver.
Eu vivo. Então não se vê?
Que bom aspecto, Isabel!
Sempre o mesmo ar de menina.
(No espelho não a vejo.)
O colesterol está bom, o ECG idem, osteoporose normal, RX idem, hemograma normal.
Apesar de pequenas grandes mazelas ...

O coração bate (ao que parece!)
Todos os sinais vitais indicam que vivo!
A olho nu.

A questão não é acontecer viver.
É conseguir!! É o como.
Conseguir sobreviver à morte de alguém a quem demos a vida.
Viver, convivendo diariamente com a estranha que ficou em nós e que só no reflexo do espelho se parece com a de antes.
Ou já nem isso.
Viver com a morte da alegria, da força de lutar, da vontade de acordar e de adormecer.
Viver, sabendo que a parte da minha vida contigo nunca será contada comigo, por ti ... 
Nunca a partilharemos, nas "história de antes" que se contam à roda da mesa.
Entre sorrisos cúmplices.
Eu ... a quem contarei?
Se serias tu o guardião das nossas histórias, só nossas.
Para depois de mim.
Que os teus filhos ouviriam ...
Mas não.
Abriu-se uma brecha.
Do nunca mais pronunciável.
Do inominável.
Porque me tornei neblina na curva do tempo que te e nos levou.
Nem os meus netos conhecerão a outra, através de ti.
Porque somos sempre uma, duas, três mães, pessoas distintas, nas relações distintas que estabelecemos com filhos distintos.

Mas vivo ...
Talvez não em mim, que não me sinto completa, mas no afecto dos meus.
No sorriso terno do olhar dos meus dois netos.
Na paixão pelo Miguel e pela Alice que jorra das profundezas de mim.
Porque o Amor ...
Apenas este novo Amor serena a dor.

Nos braços abertos com que me acolhem para um abraço.
Naquele "Olá, bobó!", nas vozes cristalinas.
Esqueço, por momentos, que não sou.

E vivo.

Mas quero a dor da tua ausência colada a mim.