26 dezembro 2013

Um homem bonito ...

Natal
Luzes e gingle bells
Tangerinas, mangas e ananás ... 
Mesmo ananás? Mesmo da Madeira?
Carros e carros que buzinam mal vira o verde
Gente aflita, porque acabou a canela para os sonhos
Eu "sonambulo", pelas ruas ao lusco-fusco, mãos nos bolsos
Sinto que olham para mim e estranham. Será por não carregar sacos?
Tinóniii, tinóniii, insiste uma ambulância ... alguém inesperadamente mal
Mas as pencas, as hortaliças, as batatas de olho de perdiz, os alhos e o azeite?!
Vá, deixem passar! Ou determine-se que doença e morte não combinam com natal!
"Passará, passará, mas alguém ficará." Regressará a tempo do bacalhau?
Regressará?
Eu, mãos esquecidas nos bolsos vazios, pelas ruas do Porto, ao lusco-fusco ...
Não procuro nada, quero somente respirar o frio gélido do fim de tarde
(cada vez mais a claustrofobia)
e recordar outros jantares de natal ... contigo, ainda. A tua avó!

Amanhece o dia, numa espera exangue e rodopiante pela noite das noites...
Talvez a magia aconteça
Amanhece um sem abrigo, recolhido para passar a noite, na entrada de um banco ... que hoje não abriu.
À entrada da loja ao lado, trinta pessoas à frente, abrigada do temporal,
estou eu e um cigarro lento.
O bolo-rei, as castanhas de ovos ... aguardam-me.
É o meu fado!! Queira ou não queira ...
O sem abrigo levanta-se.
É alto, esguio, elegante; foi um homem bonito.
Aproxima-se e pede-me gentilmente um cigarro.
Pede desculpa por pedir o cigarro.
Tão submissamente pesaroso por pedir.
Eu entro na confeitaria. Ainda faltam quinze.
Saio. Sufoco lá dentro. Mais um cigarro à chuva.
O homem que foi bonito, sentou-se no beiral molhado.
Canta "A todos um bom nataaaal ..."
Tem uma voz nítida, um timbre agradável.
Fico emocionada ... canta Bécaud "Et maintenant
 Que vais je faire de tout ce temps, que sera ma vie ..."
E pára.
"Conhece esta canção francesa, menina? Cante comigo!"
Confirmo que conheço e acompanho-o. Em pé, um pouco afastada ...
Mas próxima ... porque sim.
"Nunca vi nada disto!! É assim que tu me queres, ó Senhor?
Aqui eu, a parecer um animal perdido."
Tira o telemóvel do bolso. "Pois claro, não funciona!"
"A todos um bom nataaal! Que horas são, menina?"
Digo-lhe as horas.
"Obrigado, menina! Olhe, não faz mal, é Deus que manda esta tormenta.
E eu de ossos encharcados."
Volta a falar, indiferente a quem passa."És romeno, não tens dinheiro!!
Um cigarro cravado! Não tens mesmo vergonha!!?
E o bacalhau e não sei que mais ... Não percebo nada disto, ...
Como vim aqui parar ... Eu, um cão molhado à chuva ...
E os guarda-chuvas a voar ... Que horas são, menina?"
Percebe que tenho estado atenta a tudo o que diz.
Já passou mais meia hora.
"Deve estar a chegar o autocarro ...
É o autocarro do amor."
E canta o que sabe da canção.
Repete o refrão ...
Gosto da voz educada deste homem que amanheceu na sarjeta.
"Menina, lembra-se desta canção do autocarro do amor?
Eu digo que sim, mais uma vez. E cantarolo, baixinho.
Fumo novo cigarro de silêncio.
O autocarro aproxima-se. O homem que foi bonito levanta-se.
Ajeita o cabelo molhado.
Vira-se para mim. É, de facto, alto. Mãos longas e finas.
Tem qualquer coisa de aristocrático que permanece,
apesar das roupas demasiado largas, engelhadas, encharcadas.
"Menina, muito obrigado pelo cigarro.
Desejo-lhe um bom natal ..."
E entra no autocarro, enquanto
canta, baixinho, "Ééé ... o autocarro do amoooor ..."

Ainda se vira para mim.
"Menina, tem olhar triste!
Cante!"




















Palavras do meu silêncio


"Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros."

Clarice Lispector




03 dezembro 2013

Fria claridade!



Porque é dezembro.
Porque o tempo passa e nós não ...
Porque as marés vão e voltam.
E tu não ...
Porque não há longos abraços entre nós.
Porque ao teu redor, sempre música.
A força da luz feita para a música.

Agora, não ...
A música é pranto da tua ausência.

E, no entanto, não quero viver sem esta dor!
Não sei.





19 novembro 2013

Chaque jour ... David


Volta não volta
Y'a quelque chose de la vie
Dans tes yeux qui rient

Quase volta 
Quase sempre
Juste un regard pour comprendre

Uma volta que não acaba
Y'a quelque chose du bonheur
Dans ta voix qui vibre

Uma volta que não volta
Y'a quelque chose d'universel
Dans notre histoire

Num rodopio à volta dos teus sons
Volto sempre
Est-ce que tu veux partager mon chemin ?
Moi j'dis oui pour le tien





01 novembro 2013

É com o coração que falo ...















Alice, bisavó dos meus netos, minha mãe.
Um filme chamado Alice.
E o David que tecia os dias com música, luz, filmes e afectos.
Um sorriso meigo em comum.
Que guardo por dentro da pele ...




30 outubro 2013

Filho e mãe ... abraços de Outono


Fonte

No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e os órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo. São
silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos, porque
os filhos estão como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudeza de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível
amar tudo
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.

Edgar Lee Masters


12 outubro 2013

Um sábado no meio de Outubro




E o ciclo repete-se
Com a mesma nitidez a branco e preto
A mesma ausência de mim
Os mesmos estilhaços pontiagudos da dor
Como se hoje fora então
A mesma ansiedade
A angústia
O mesmo vómito de medo
Pânico

Uma ida à urgência
Mais uma
A última ... Sem sabermos.
O último sono em casa
A tua mão à procura da minha
Num aperto cúmplice
Um silêncio estranho
Desconhecido

Um quarto branco (chamado 24) acolheu-nos
Nós, teimosamente inseparáveis
Inflexíveis residentes na esperança
(Já do nada, sabia-o eu, ainda que não sabendo)

Cinco vezes o nascer do sol
Estupidamente quente e brilhante
Reflectido na brancura das paredes daquele quarto
Em penumbra
E tu a adormeceres, entre conversas doces e lentas
As minhas entranhas frias a escaldar
E tu, David, a serenares num sorriso ainda lúcido
No abraço da noite
A minha fingida serenidade a rasgar-me
A querer revelar-se em lágrimas
A vomitar sangue dentro de mim
Eu só nudez de dor vestida de saudade
de amor

Uma certa forma de ausência já
Abandonados um ao outro
Desgarrados 
Distantes da luz brilhante de Outubro

Saí eu, ao fim dos cinco sóis
Só eu
...
Que já não era eu
Uma outra, alguém diferente
Desconhecida de mim mesmo
Eu com ninguém dentro de mim

Como poderia sair eu
Se fiquei ... 
Onde não sei?



........

11 outubro 2013

Obrigada, Nuno




Um dia, há pouco menos de seis anos, logo a seguir ... , no meio do que ficou de ti, encontrámos a tua voz.

Gravações do teu programa " jazz faz tarde".
Infelizmente, poucas!

Desde então que, em alturas mais difíceis, te ouço, em silêncio ...

Das lágrimas que vou soltando, há sempre uma que te sorri.

Como o som do teu sorriso, percebido no prazer com que falavas de música.
A tua paixão imensa.

A tua voz é o que de mais vivo e presente ...ficou de ti!

Aqui fica, em mais um dia de Outubro.

Só pode ser bom ... Ouvir-te, David!
E que te ouçam.
Ainda hoje.
Mesmo depois ...




07 outubro 2013

Quando me falta alento



                       Segredos do oceano

Ouvi o vento
Observei a minha vida
Nascer para ser selvagem...
Era o que eu pensava
Mas quem falou comigo?
Que não vi
Dei-lhe um beijo
Talvez sinta a minha falta
Porque eu fugi
Por algum tempo
Em busca do meu dia
Esquecendo o meu lamento.

Porquê chorar? 
Porquê?
Não sei
E não quero saber!
E porquê chorar?

Os meus passos
A par do meu destino
Amarram os meus pensamentos,
De outro modo livres
Cheguei então ao meu destino
Onde  há mar
Corri pela praia
Parei quando encontrei
Um cavalo-marinho
Com quem falara na infância
Disse que a razão da minha raiva
Me empurra para a morte
Procurei o que todos procuram
A imortalidade

Que não existe!

Mas eu sei
Que o segredo da imortalidade
É saber partilhar
Com os deuses a maravilha da criação

E os cavalos-marinhos mergulharam
No oceano
E o silêncio chorou comigo

David Sobral (1995)



21 setembro 2013

As cordas do tempo


Cada dia, dos meus dias, é recortado minuciosamente (inconscientemente ... instintivamente ...!) 
em partes.
Manhã.
Tarde.
Noite.
Tempo de insónia.
As partes, vou-as repartindo em horas.
As horas, são minutos, são segundos.
Infinito puro, pesado, impaciente.
Tempo milimétrico, sem sentido - ponte de travessia para a manhã, a tarde, a noite, a insónia do dia seguinte. 
E nova ponte de travessia.

Fujo ao confronto com a evidente (para os outros) necessidade de coerência entre os estados de espírito em que me vou transformando.
Os meus eus, estilhaçados com x-ato, em recortes abruptos, imprecisos.
Sem ilusões.


Sem outras ilusões que não a saudade de ti, David, da tua brandura, da tua forma ironicamente simples de gostares de mim ... 
Sem outra ilusão que não a ponte suspensa no abismo, entre mim e a tua mão estendida.



16 agosto 2013

Obrigada, Nuno Meireles


   


Moledo
Dias de Agosto reinventados
Pela manhã
Empurrando a dor pelo monte acima
Qual Sísifo
Cada dia
E vai caindo
Resvalando pelo monte, abaixo
Cada noite
E eu
Empurrando sempre
Reinventando força
Colando sorrisos penosos
Por cima das pálpebras
Húmidas por baixo
Enquanto a lua não chega
O nó na garganta
Distendendo-se
Ao adormecer
















,linfa holmes
L,K

08 julho 2013

Serenity now!!!



Sou aranha envolta num labirinto de espaços e tempos e vidas.
Minhas, dos outros, intersectadas.
Todas distintas.
Vidas em tempos vividos.

Do presente, nada mais que uma estreita fresta.
Que me esmaga.
Outras vezes, me ilumina e retém presa aos olhos escuros e meigos dos meus netos.

Do futuro, nada! É uma parede em branco.

Nos meus dias labirintos de desencontros paralelos, cruzo caminhos de agora.
Inesperados, os antigos caminhos iluminam-se na esquina da vereda e, logo, as vidas e o último tempo certo.
Abandono o caminho que seguia e persigo a sombra do meu ser seguro ...
De olhos vendados, regresso sempre lá, onde me sentia gente!
Em sangue mas serena no guião da tragédia que me coube representar.
Regresso sem vacilar.
À tua forma assertiva de gostar de mim!
Apesar do depois.
E do acto falhado na personagem que escolhi representar na vida - ser mãe.
Aguardo junto à porta da dor que não atravessei.
Tenho medo de pisar o vulcão da intolerância, ingratidão, incompreensão.
Protejo-me das palavras flechas.

Continuarei por detrás da porta entreaberta.
É o meu esconderijo silencioso e calmo.
Onde me reencontro com a tua serenidade.
Ferida de saudade.
Onde choro e me sinto bem.
Onde engulo o ranho da culpa e da falta de coragem por não ter feito ... certas coisas ... de outra forma.
Indizíveis.
Onde o coração amedrontado se defende de fúrias e desamores latentes.
Vindos por altura do poente.

Recuo, assustada, no confronto com a agitação dos dias.
Sem força, dou um passo atrás e outro.
Está uma penumbra calma ...
...
Ah, se viesses e me puxasses pela mão!!


Sabes, David, nunca contei a ninguém.
Quando a avó se cansou, em Dezembro, eu disse-lhe, baixinho, ao ouvido, enquanto lhe fazia festas na cabeça "Mamã, dê a mão ao David! Está aí, vá com ele ..."


13 junho 2013

Sem título.

David, deixa-me chamar-te, assim, baixinho.
Só eu ouço ... mas que importa?

Por dentro de mim, vivo num castelo de luz que ergui para ti.
A chave? Guardo-a por detrás dos meus olhos; basta-me fechá-los.


Não faltam ameias para espreitar o sol deitar-se no mar, nem salas forradas de veludo para a tua guitarra, nem aquela cadeira verde, debaixo dos pinheiros, em que repousavas de dias cansados, nem o banquinho em que eu me sentava para te massajar os pés tão doloridos, nem o som do teu sorriso, nem a esperança de chegar a porto seguro, nem a força de lutar ... nem a cor da areia das ilhas de Creta-onde-havias-de-voltar-outra-e-outra-vez ... nem os teus filtros de luzes ... nem a música, a tua força dia a dia ...
"Hei-de fazer luzes tão bonitas, mamã!"

Só ali posso esperar o teu abraço terno da noite!
"Agora, vai descansar, mamã!"
Agora ... o vazio da ternura ...

Tenho saudades deste meu nome mamã, do som, do tom e do significado da palavra. Dito por ti, em forma de protesto ou ironia ou ternura ou impaciência ou simplesmente mamã ...

Deixa-me desabafar contigo, David,  só aqui, e confessar que me sinto só.
Um forma muito solitária e única de solidão!



24 abril 2013

Ao longe ... O som de abril




Será o som de foguetes, o som que ouço?
Ou o bater do coração, talvez mais forte ou desolado, hoje
Que sei ser o dia antes de um dia de sol
Do Abril em que vieste?
Mas não estás ...

O ribombar dos foguetes continua.
Têm a cor dos cravos vermelhos de um outro Abril.
Num palco que iluminaste, numa noite ...
Quase igual.
Num hino, muito teu, à Liberdade.

Os cravos.
Deixo-os, às vezes, outros, no areal, junto ao teu mar ...

Os foguetes!
O renovar do hino.
Quero mas não quero ouvir.
Tapo os ouvidos.
Apago a luz.

Não existir.

09 abril 2013

Abril





Não o sonho

Talvez sejas a breve
recordação de um sonho
de que alguém (talvez tu) acordou
(não o sonho, mas a recordação dele),
um sonho parado de que restam
apenas imagens desfeitas, pressentimentos.
Também eu não me lembro,
também eu estou preso nos meus sentidos
sem poder sair. Se pudesses ouvir,
aqui dentro, o barulho que fazem os meus sentidos,
animais acossados e perdidos
tacteando! Os meus sentidos expulsaram-me de mim,
desamarraram-me de mim e agora
só me lembro pelo lado de fora.

Manuel António Pina

04 abril 2013

O não vivido



O tempo apaga tudo
Menos esse longo indelével rasto
Que o não vivido deixa. 

Sophia de Mello Breyner Andresen





Como quem visita outros blogues
Assim eu, aqui, venho.

E saio.

Sem palavras que cheguem ... para o que tenho a dizer.
O que sinto.
Demasiado.

Então.

Há quem se lembre de mim.
E me socorra.
Como se percebesse a razão do meu silêncio.

Obrigada, Z.
É isto!
Que muitos não compreendem...
E eu não sei dizer.


30 março 2013

Não conheço outra forma ...


A propósito da minha forma
(Talvez estranha aos olhos dos outros)
De avançar nos dias
Indo uma (de mim)
A par da outra ...








"Num daqueles dias de Outono, em que nos queima a vermelha labareda das folhas, um amigo pediu que lhe contasse uma hostória. "Salva-me a vida, conta-me uma história." E eu recordei aquela mulher das Mil e uma noites, que encadeava, com doçura e desespero, uma história na outra, pois só a história infinita nos permite escapar à maldição da morte.
Um amigo é uma história que nos salva."

Mário Rui de Oliveira
O vento da noite

26 março 2013

"No sorriso louco das mães"





Escrevo, claro, para mim
Escrevo, bem o sabes, para ti
A quem trato por tu, aqui
O - tu - que só existe por dentro e por fora
Do dentro de mim
Eu e tu ...
Talvez só eu?
No dizer ...
Ou só tu?
No sentir ...
Qual de nós permanece?
E de que forma acontece?

"Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro..."
Clarice Lispector 

23 março 2013

Tic .. tac ... tic ... tac ...




Teria sido um dia como outro qualquer
De viver simplesmente
Não fora haver umas letras a negro
Premonitórias
Naquela carta fechada

Teria sido possível a vida seguir o seu curso
O seu ciclo natural de sementes que germinam
Não fora haver umas letras a negro
Naquela carta fechada

Teria sido ainda e outra vez primavera
E sempre Abril e ainda Abril
Não fora haver um destino oculto
Naquela carta fechada

Teriam sido luminosos os teus palcos
E o brilho dos teus olhos caloroso
Não fora haver um desígnio sombrio
E frio
Naquela carta fechada

Este dia de Março
hoje
seria um dia vulgar
de início de primavera
de renovar flores nos canteiros
de andorinhas empoleiradas nos postes
...
não fora aquela carta fechada
aquelas palavras obscuras
e eu num chorar de ranger dentes
solitário
dentro do carro parado
numa berma da estrada
...
e a vida a passar ao lado!

Tic ... tac ...tic ...tac ...









......

16 março 2013

Il faut savoir cacher ses larmes ...


"Isabel, que bem estás! E esse teu ar de menina, minha querida. Por ti o tempo não passa ... 57 anos e sem rugas ..."

E olho a que sobe comigo, no espelho do elevador.
Uma outra dentro de mim não reconhece o reflexo.
Sobreposição de imagens, com certeza!
Ter-nos-emos encontrado, porventura!
Algures!

Mas viro as costas ao espelho.
E então descubro!

Uma era irreal ... Efeito da luz
Coisas da Física!

Outra ... Esta é real ... Efeito da penumbra e da tristura
Coisas da imensa Saudade
Que perdura!






Il faut savoir encore sourire
Quand le meilleur s'est retiré
Et qu'il ne reste que le pire
Dans une vie bête à pleurer
Il faut savoir, coûte que coûte,
Garder toute sa dignité
Et, malgré ce qu'il nous en coûte,
S'en aller sans se retourner
Face au destin, qui nous désarme,
Et devant le bonher perdu,
Il faut savoir cacher ses larmes
Mais moi, mon coeur,je n'ai pas su
Il faut savoir quitter la table
Lorsque l'amour est desservi
Sans s'accrocher, l'air pitoyable,
Mais partir sans faire de bruit
Il faut savoir cacher sa peine
Sous le masque de tous les jours
Et retenir les cris de haine
Qui sont les derniers mots d'amour
Il faut savoir rester de glace
Et taire un coeur qui meurt déja
Il faut savoir garder la face
Mais moi je t'aime trop
Mais moi je ne peux pas
Il faut savoir
Mais moi je ne sais pas


07 março 2013

Coisas do teatro ...


De novo.
À roda dos papéis, dos dossiers, dos livros, das folhas soltas do David.
Um pouquinho mais a sensação de vazio e lá vou eu folhear tudo o que tem aquela letra esquerdina, um pouco torta, tão minha bem conhecida.
Tivera eu mais tempo para mergulhar nos papéis do meu filho!
São textos dos programas de Jazz Fazz Tarde, são críticas de análise teatral que escrevia para as aulas da Prof. Isabel Alves Costa, são crónicas do quotidiano da rua, dos shoppings, tudo o que via à volta. 
(Era um rapazinho espantosamente observador; tudo relatava depois de filtrado por um sentido de humor muito seu, muito único, muito próprio.)

E chego sempre à mesma triste, dolorosa sensação de perda irreversível.
O meu filho é uma contínua caixinha de surpresas.
Agora, ao rever os textos dele do programa de Jazz ... descubro que o reverso da folha de cada novo programa tem "críticas" de espectáculos de teatro que ele ia ver e que tinha de analisar, no âmbito dos estudos que fazia na ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo).
Escrevia no verso da folha ... para poupar papel ... lembro-me agora ... 
São antigos, claro ... Tão distantes!
Tão de quem está de bem com o que faz.
Deparei com este e cheguei a sorrir, David.
Há bocadinho, passada esta eternidade.


Análise Teatral - Sexo, drogas e rock & roll

"Hoje, domingo, fui à matiné do Teatro São João, assistir à peça acima anunciada com o actor Diogo Infante.
Depois de sair de casa à pressa, meti-me na VCI para ir, primeiro, buscar um amigo. Debaixo de chuva intensa, dou de caras com uma fila de carros enorme. Já estava atrasado. Eram os domingueiros, em fila de espera, para entrarem no parque de estacionamento do Arrábida Shopping.
No meio de tamanha confusão, fiquei tão irritado que proferi mais palavrões e insultos só ali, do que no resto da minha vida como condutor.
Terminado o meu monólogo ao volante e, já depois de ter ido buscar o meu amigo,chegámos ao teatro em cima da hora. Uma grande azáfama, pensei logo "Não há bilhetes!!"
Não fosse eu ter de interpretar mais uma vez o meu monólogo (desta vez, já com público), conseguimos sem problemas, os tão ansiados bilhetes.
Entre entra e sentar, não deixei de reparar no público que me rodeava - meninas, mulheres ... e mulheres mais velhas. Umas em grupos assumidamente femininos, outras com os seus respectivos ...
Reparei também nos temas que ali se discutiam e que roçavam assuntos bem opostos - ou o novo não-filme "Branca de Neve" ou o concurso "Big Brother".
Com o começar da peça, silêncio se fez, mas de imediato se quebrou com a música e com a voz do actor. O som estava muito alto e feria-me os ouvidos. Só desejava que a música acabasse rapidamente. Depois deste momento forte, Diogo Infante veste a pele de vários personagens tipo da sociedade moderna.
Os riso do público, ou deverei talvez escrever, pública, foram constantes, quer fosse devido ao texto, quer fosse devido às expressões faciais e corporais do actor. Alguns personagens são bem fieis à realidade.
Pensei até na minha figura de condutor ríspido e ordinário como possível personagem a figurar nesta peça.
Outros personagens tornam-se, após alguns minutos, numa "seca". Para usar uma expressão apropriada. As suas semelhanças com outros fá-los parecer não mais um, mas sim uma extensão de outro personagem.
Os risos, esses sim, vão-me saindo, ainda que discretos. Mas nunca como os do senhor, na cadeira ao meu lado, que, enquanto ria desinibidamente, batia com a mão na sua perna ... ainda mais desinibidamente. Não fosse o Diogo Infante dizer uma piada mesmo boa, despi i meu casaco e pousei-o em cima das minhas pernas. Como prevenção!
Para terminar, acrescento que, neste espectáculo, as pessoas vêm ver o actor.
Com grande discrição, mas sem perder qualidade, o desenho de luz, a cenografia e os outros elementos cénicos não perturbam nem ofuscam a performance do actor.
Regressei, sereno como o trânsito, desta vez. David Sobral"

http://www.tnsj.pt/2001/2000/programa/sexdrogas/index.htm








03 março 2013

Saudade dos sons

E quando as saudades sufocam ...
Procuro, nem eu sei o quê!
Palavras vãs ... estas
As minhas
Já vazias de qualquer sentido.

Ficam as tuas
Palavras ... só
A tua força
E o sentido de humor
Sempre
Tinhas 19 anos
E o mundo ali, ao alcance da tua mão estendida


"Olá, mais uma vez, temos um repetente no Jazz. Chama-se John Coltrane. Este senhor foi um excelente músico e nunca será esquecido.
Tanto no mundo do Jazz como fora dele, existem músicos de todas as idades e estilos que gostam do seu estilo.
Coltrane tinha uma grande devoção por Deus e dedicou muitos discos à sua fé.
Não é algo que me emocione pois cada um tem as fés que tem e as devoções que quiser. Não ter qualquer uma é que não me parece saudável!
Acho importante acreditarmos e termos fé, pelo menos, em nós próprios, no caso de não crermos em mais nada. Alimenta o ego!
Bom, isto já está a ficar parecido com a missa de domingo!
Vamos é ouvir a música de Coltrane.
Até amanhã e já sabem que ... Jazz Faz Tarde."

David Sobral













23 fevereiro 2013

Música





Moledo
E um doer de certa forma
Permanente

Moledo
E o som dos teus sons
Sons da minha saudade ... solidão
Sons do sorriso inscrito
No teu swing

Moledo
E o regresso à tua ausência
Mais crua 
Inscrita sempre
No silêncio das paredes brancas
No som cavo das ondas do mar 
Na inutilidade das lágrimas

Tecidas de tanto amar
E de amargura



25 janeiro 2013

Queria dizer



por outras palavras
no fundo
sempre as mesmas
e que os meus sentidos repetem aos meus ouvidos até
à exaustão 
à surdez total
...
em moto contínuo
como o sol sucede
à lua
...
queria dizer
que os dias passam
e a saudade permanece
aguda
dolorosa
dolorosamente silenciada
no fingir
...
queria dizer-te, David,
que as lágrimas
as minhas
se soltam, como antes,
a despropósito
por coisa nenhuma
(pensarão os outros)
ou porque chove
chovia quando te soube que doente
ou porque está um sol imenso
e
o brilho do sol
não se me entranha sem ti
tu gostavas do sol
da luminosidade dos dias
...
queria dizer-te, David,
por outras palavras
sempre as mesmas
afinal
que te procuro
nas memórias da avó
pedacinhos teus 

nas fotografias dispersas 
pelos móveis
nos álbuns antigos
tão folheados
...
pedacinhos 
um ombro que eu reconheço teu, por uma porta entreaberta
um certo inclinar de cabeça 
uma mão 
um gesto solto no ar
uma cabelo encaracolado, por detrás de um primo qualquer
a tua cabeça a sobressair acima da fotografia de grupo 
lá atrás
até o teu reflexo nos vidros do pátio
descobri
..................
ou um sorriso estranhamente triste nos olhos da avó
e eu sei o dia 
e o porquê
nesse março
suspenso no tempo
cravado na alegria de uma festa de família
(mero acaso)
...
vejo
revejo fotografias, 
ali sentada,  
no sítio onde a avó se sentava
...
a avó dizia que gostava de "conversar" contigo
ali
nas diversas fotografias
os interlocutores
os pais
as filhas
os netos
os queridos bisnetos
que se cruzarão
apenas
em recordações partilhadas
a partilhar talvez
...
e repito o olhar dela
percorro as fotografias 
uma a uma 
procuro a mesma força
...
estavas sempre ali
num lugar chamado coração de avó
que junta mãe e filho
num tempo 
...
queria dizer
afinal 
...





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