26 setembro 2012

Por outras palavras ... de outros ...










TU ESTÁS AQUI


Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e oiço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto este bicho
de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos
quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem
o que sei o
que faço ou então sou eu que julgo que o sabem
e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou
outra coisa
esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço
bem entendido o que faço com este braço
Estás aqui comigo e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa
e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho
e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes
esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa
essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso
diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro
nome embora no mesmo nome este nome
de terra de dor de paredes este nome doméstico
Afinal fui isto nada mais do que isto
...



Ruy Belo

10 setembro 2012

Rir para não chorar

"Perdemos os sonhos ou são os sonhos que nos perdem?"

Há muito tempo (ou nem tanto!), seria impossível eu perder os sonhos. Deixar de sonhar, não! Inimaginável, diriam os que melhor me conheciam.
"Lá estás tu com as tuas utopias, Isabel! Talvez tenhas razão, mas é pura utopia!"
"Põe os pés na terra, deixa-te de sonhos!"

Mas eu sonhava e, por entre os sonhos, (que ninguém notava), era igual aos outros.
O mesmo trabalho, a mesma disponibilidade, o mesmo cansaço, o mesmo entusiasmo.
Ano, após ano.

Os filhos a crescerem, dentro e fora dos meus sonhos. 
E eu dentro dos sonhos deles, queria crer.
Os meninos filhos e a sua mãe.
Sem desvios no caminho.


Os alunos a chegarem, um brilhozinho nos olhos sorrateiros a espreitarem-me.
E eu a fingir que não via.
Mas a aconchegá-los, logo, nos meus sonhos. 
Na utopia que me guiava e que, com eles, partilhava.
E juntos caminhávamos, porque só assim conseguia o que buscava.
Vê-los partirem, embalados noutros sonhos, levando um pouco de mim.
Porque me dava, sem nada perder.
Nunca se perde quando nos damos e lhes mostramos a alma.
Regressem, eles, um dia ou não.
Fizeram parte do meu sonho!
Os meus alunos, meninos.

"Perdemos os sonhos ou são os sonhos que nos perdem?"
Não sei.
Ando perdida, eu!
De mim e do sonho dentro do qual me sonhava!
Os caminhos por onde os sonhos andam; não os voltei a percorrer.
Encontro, às vezes, os meus meninos alunos e, por breves instantes, cruzo-me com a outra que eu era.
Até repito os gestos e o bater do coração, perante aqueles brilhozinhos nos olhos que cresceram e me abraçam e me dizem que nunca me vão esquecer.

Mas depois ...
Houve um setembro em que não regressei à escola, não recebi mais alunos meninos, nem os espreitei com o meu sonho.
Passei-lhes ao lado, cansada e com medo dos sonhos que lhes via na curiosidade do olhar. 
O coração fechara-se!
Abrir-lhes o caminho da utopia? 
Passara a ser uma utopia! 

Houve um 10 de setembro, numa abrasadora cidade de nome Barcelona, em que um dos meus filhos meninos deixou escorrer uma lágrima.
De pesado súbito desalento.
Foi um instante de lágrima!
Envolto num ténue sorriso ...

Nessa lágrima, afogou-se a força com que se consegue sonhar.








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