31 outubro 2011

Lembras-te, David?

Mais um Outubro que finda.
Encerra mais um círculo de ausência, de imagens nítidas paradas no tempo e dias contados pelo relógio tic-tac lento do bater do coração.
Agora ... tudo é, quase sempre "mais um"...
Porque em Outubro termina e começa cada novo ciclo da metade de mim, que se foi contigo, ... ficando, neste penar flutuante.
Apenas desvelado dentro das paredes transparentes desta casa-jangada que vai e volta, ao sabor das vagas da tristeza.
Por isso, aqui continuo, David.
Onde nada me prenda às margens.
Onde só o teu silêncio cúmplice ecoe.
Onde possa flutuar nas palavras de sal desta saudade pesada, contínua, inalterável.
Às vezes, ... estranhamente doce, revestida de lágrimas lentas e amargas.
Tão doce como o amor incondicional que te prometi.
Tão sentida pelos sons de que me ensinaste a gostar.
Mesmo depois ...
Lembras-te, David?





27 outubro 2011

O palácio da Ventura

Um abrir de gavetas, há muito fechadas.
Um folhear de dossiers, entreabertos.
Um fortuito escutar um Cd não catalogado e ...
Fico sem saber quem sou; regresso àquele vazio tão familiar de quem perdeu todas as certezas.
Se é que, alguma vez, tive muitas.
Mesmo as poucas certezas que a rotina da saudade instalada vai conquistando ... até essas, num relampejar de tristeza se apagam.
Porque passei a mão pelas poucas roupas que guardo do David.
Porque, num relancear de olhos, o que fixo é a letra tão caracteristicamente esquerdina do David.
Porque as músicas que invadem os meus ouvidos têm o tal swing de que o David falava.
São aquelas gravações de músicas especialmente apreciadas pelo meu filho e que ele gostava de ter sempre por perto, por onde quer que andasse.
Escolhia um Cd, desses "mix", e sabia que seria sempre uma boa escolha.

São sons de alegria de viver; são sons de quem sonha acordado e, confiante, sabe que o sonho será possível.
Para ti, foi possível ... até ao adormecer, sob os teus olhos fechados.

Apesar de tudo ter sido, afinal, impossível. Perante os meus olhos desertos.
Que bom só eu saber que o teu "palácio encantado de ventura" encerrava só "silêncio, escuridão - e nada mais!"
Que bom!
Apesar da amargura que há pouco, ainda agora, me invadiu.
Que bom, meu filho ...
Apesar do ferrão da perda e do bosque de saudade impenetrável que entre nós se instalou.

E bastou um som; um certo swing.





24 outubro 2011

Talvez...

Talvez devesse ir-me habituando a este calendário virtual, existente apenas dentro dos meus olhos, do meu sentir os dias, da mais ou menos violenta intensidade da saudade.
Ou ...
Talvez não devesse abrir o peito de espanto pela ansiedade com que vejo Outubro ir-se ... para dar lugar à contagem em crescendo de emoção e sensação de perda até Dezembro.
Ou ...
Talvez devesse acertar as minhas horas pelas horas lunares ou pelas constelações que vão girando no céu, em função, também elas, do giro da terra em torno do sol.
Assim o disse Galileu!
Ai Galileu, Galileu!
As folhas caem, as plantas crescem, a lua atrai as marés, o rebanho das ovelhas persegue a inclinação do sol ...
E esta bola girando, girando.
Mas inerte de emoção.
Sempre certinha, no lugar exacto quando chega a primavera; ...  conforme a cruz no calendário.
Tinhas razão, Galileu!
...
Se a dor não alongasse as horas; se o medo não escurecesse o sol; se a saudade não cobrisse de tule a lonjura do passado; se a tristeza não tivesse esse poder imenso de me fazer recuar, recuar sempre ... em busca daquela nesga de tempo ... em que o verde ainda era esperança.
Em que havia luz, sol, nós em volta do sol, a lua à nossa volta, tudo em invisível e plácido movimento.
Em que havias tu.

Agora ... que sei eu do tempo?
Nada sei.
Sinto-o como um casulo em que me embrulho  ...
E que espero ... me proteja.







18 outubro 2011

Para ti, da Nini e dos avós

Cravos vermelhos, um areal da infância, ondas revoltas contra o teu rochedo, sol de Outubro ... um rasto de saudades ... traçado na praia.














Um cravo vermelho ficou comigo.
Obrigada.

Direito ao sol?

O David morreu.
E eu continuo sem saber como o deixei morrer.
Há coisas que não podem acontecer!
E não sei como não o consegui evitar.
Foi um terrível e irremediável engano!
Talvez tivesse bastado que eu tivesse continuado a olhar por ele ... como quando era criança.
Mas não!
Deixei-o crescer e lutar por quem queria ser.
Confiei e entreguei-lhe nas mãos as rédeas do futuro que sonhava ter.
Descobri (tarde demais) que os filhos devem ser sempre olhados, discretamente, pelo cantinho do olho, ... como fazemos desde o dia em que os vemos nascer.
Tivesse eu visto, com olhos de ver, o olhar pálido do meu filho ... uns meses antes!

Agora, é com o tempo, esse meu Golias rude e brutal, que tenho de conviver.


O David morreu há 4 anos.
Anos ... que eu conto pelas noites de insónia.
Por isso, o meu filho me morre todos os dias.
Ontem, tal como hoje.
Tal como amanhã.
O sol não vai nascer para ele.


Que direito tenho eu à luz do sol?
Se a claridade me cegou ...




17 outubro 2011

Hibernar.

De olhos molhados, um sonho acordado.
Um extenso lago oval, de águas paradas, alguns limos verdes que escondem peixes vermelhos que ondulam, de onde em onde.
Talvez um som de rã a coaxar em uníssono com um fio de água que escorre do lago, em direção ao roseiral.
Que eu não ouço, mas sei.
Olaias, choupos, castanheiros de troncos engrossados pelos anos e ramos seminus; folhas douradas dos mais diversos matizes, ainda presas por um fio já delicado.
Que eu não vejo, mas sei.
Uma brisa quente de um outono que tarda em chegar e empurra de leve penas de pássaros que partiram e outras folhas que rodopiam trémulas à volta do tronco que as viu nascer.
Que eu não sinto na pele, mas sei.
Um melro ou dois que saltitam por entre as aromáticas, em busca de restos de sementes que se abandonaram à terra, em hibernação.
Que eu não vejo, que eu não ouço, mas sei.
Estreitos e sinuosos caminhos, entre muros de toscas pedras, tapetes sombrios, espessos mantos silenciosos de uma imensidão folhas, escurecidas pelo verão, caídas e cansadas, já, de preservarem a terra e a vida do sol abrasador.
Debaixo desse manto, 
protegida dos dias, 
ao abrigo dos olhares,
a respiração suspensa, 
silenciosa, 
quieta e invisível ... 
eu!





La route chante,
Quand je m'en vais.
Je fais trois pas,
La route se tait.
La route est noire,
À perte de vue.
Je fais trois pas,
La route n'est plus.
Sur la marée haute,
Je suis monté.
La tete est pleine,
Mais le coeur n'a pas assez.
Sur la marée haute,
Je suis monté.
La tete est pleine,
Mais le coeur n'a pas assez.
Mains de dentelle,
Figure de bois,
Le corps en brique,
Les yeux qui piquent.
Mains de dentelle,
Figure de bois.
Je fais trois pas
Et tu es là.
Sur la marée haute,
Je suis monté.
la tete est pleine,
Mais le coeur n'a pas assez.
Sur la marée haute,
Je suis monté.
la tete est pleine,
Mais le coeur n'a pas assez.

14 outubro 2011

Um retrato do "Babide, o bailarino"

Vou gastando, pouco a pouco, coisas que o meu filho deixou, para que permaneça brilhante o rasto luminoso e irónico do olhar
...  com que me fazia sorrir.
Triste consolação, agora, que tempo se partiu!
Com ele levou os palcos de luz com que iluminava a música.
E o sonho.
E a doçura.







Um curriculum ... vitae

"David Sobral Nunes, nascido 4 anos e 2 dias depois da Revolução dos Cravos, cedo se mostra um rebelde.
Enquanto muitos bebés choram e berram, nos primeiros tempos, este resolve sorrir, para espanto e encanto da própria mãe.
Nos primeiros anos de vida, demonstra boas capacidades comunicativas e corporais, ganhando o direito a ter um nome artístico, "Babide, o bailarino".
Poucos anos depois, passa por uma fase exploradora das suas capacidades como pintor, fazendo belos desenhos nas paredes de sua casa. Vai desenvolvendo a sua própria linha estética.
Depois de algumas chineladas paternas, abandona esta arte e dedica-se à música; dando os primeiros passos como flautista.
A partir daí, foi saltitando de escola em escola e de instrumento em instrumento; passando da flauta para o órgão electrónico, deste para o piano e, posteriormente, para o seu instrumento de eleição - a guitarra.
No seu percurso escolar de aluno médio, vai demonstrando várias tendências nas suas escolhas profissionais.
A primeira profissão que lhe desperta interesse é a do pai, Engenheiro Civil, mas outras virão. Com o passar dos anos,  "o nosso Babide" foi pensando seguir promissoras carreiras - cozinheiro, bombeiro, dentista, professor, educador de infância, psicólogo.
Mas houve um momento na sua vida que o fez mudar de rumo.
No 12º ano escolar, perdeu completamente a motivação pela área em que se encontrava; as ciências já não lhe despertavam qualquer emoção. Sendo assim, decidiu aproximar-se novamente da música e enveredou por um curso superior de Prof. de Educação Musical. Mas também não era bem isto ...
Ao fim de um ano (bem sucedido, de qualquer modo), deixou este curso para escolher aquele que verdadeiramente lhe interessava.
Os espectáculos de música, o cinema ... sempre o tinham fascinado. O processo de criação, a integração numa equipa de criadores, era algo por que se sentia atraído, desde há muito tempo.
A interacão, a troca de ideias, a busca de novas tendências estéticas, novas experiências motivaram-no muito.
O ingresso no curso de design de luz e som fez com que pudesse dar largas à sua imaginação e, sobretudo, estar sempre próximo da sua verdadeira paixão - a música.
A tudo isto acrescentara-se uma nova área, até então desconhecida, mas que, dadas as suas potencialidades, logo se torna uma outra paixão para o "Babide", a luz.
E descobriu o seu rumo - iluminar a música."

"David, o Bom"




Palavras que não enganam ...

Tenho a nítida e dolorosa percepção de que a tua imagem, meu filho David, se vai esbatendo e submergindo na areia fina, no fundo do mar, por entre as algas, e, talvez, corais ... onde, talvez, habites.
Tenho a nítida e dolorosa sensação de que outros a quem estiveste ligado e que, de alguma forma, te fizeram sofrer, vão emergindo ...
Como se a tua partida não tivesse sido tão, tão trágica; tão violenta e irreparável.
E dói. Dói-me muito.
No que diz respeito à desumanidade de alguns que te eram próximos, não sou capaz de ser clemente ou tolerante. Nem quero perdoar ou esquecer.
Essa parte do meu coração transformou-se em pedra ... de tanto te ver sofrer.

Alguns vão esquecer!
Outros vão perdoar o imperdoável.
Sei-o, ouço, pressinto-o, percebo alusões ocasionais e inocentes... apesar do silêncio.
"É da natureza humana!" - dizem-me.
Sim.
Sei que vai ser assim e cada vez mais assim só nós perdidos naquela luta inglória e distante; sei que te irão deixando cair e serás só tu; cada vez mais só tu, no meu coração só.
Porque hoje é o dia em que a tua última morada passou a ser aquele branco quarto 24, no 4º piso, ao fundo de um corredor, à esquerda ...
Porque hoje foi também o dia em que eu, contigo, comecei a desprender-me da parte de mim própria que não voltou a sair daquele quarto, já só iluminado pela luz dos teus olhos.
Que me interessava a luz do sol que víamos lá fora?

Hoje, como há 4 anos, há estados de alma que não se partilham.
E sinto-me só; estarei, irremediavelmente, cada vez mais só, neste sentir.
Com a minha dor.
Com a minha saudade.
Com a minha revolta.
Mas também com aquele outro eu; rude e incapaz de perdoar quem não te perdoou.
Quem não perdoou por nos amarmos assim, mãe e filho, em frente à morte, de forma incondicional.
Poderia ter havido outra forma?



07 outubro 2011

"Eu não sei de mim. Não tenho nada, não sei se sinto, não sei se penso, não sei se vejo, não sei o caminho. Há um muro alto, parado à minha frente. Antes de dormir, encosto-me ao muro do terraço, a olhar para o vazio da noite que sinto dentro de mim." 
7 de Outubro 07, in Mamã, vamos dançar?





Como se o tempo curasse feridas destas!
Qualquer som mais teu, qualquer sensação de que vais descer a escada, a qualquer momento ... a reabre.
E a ferida vai ficando cada vez mais funda.
Quanto mais invisível aos olhos dos outros que seguiram em frente ... mais dolorosa se torna para mim.
Que vou devagarinho, ...
Tentando acompanhar os da frente, sem largar quem me ficou para trás.




05 outubro 2011

Outubro tem o cheiro da saudade

"Está com um ar tão frágil e uma pele tão pálida e delicada!"
in Mamã, vamos dançar?



Há dias.
Como o de hoje.
É Outubro ...
Quero esconder-me e chorar.
Que ninguém olhe de frente para mim.
Trancar-me no silêncio.
Perder-me na solidão destes dias quentes que me escaldam de saudade.
Porque hoje, tal como naquele dia, vivo o desespero da despedida que se anuncia.
E não mente.
E eu não quero olhar de frente.
Ainda não.
Não aceito.
Não consigo.
Hoje, tal como naquele dia, só o zumbido ensurdecedor do medo.
Me atordoa.
Me empurra para o fundo.
Lá onde as lágrimas vivem.
Latentes.