24 abril 2011

Obrigada, Regina

Hoje, foi o lançamento "oficial" de livro "Mamã, vamos dançar?", na FNAC.
Correu bem; se me perguntarem o que disse, quando foi a minha vez de falar ... não tenho bem a certeza. Sei que falei de ti, David, porque este livro és tu.
A tua força, a tua ingenuidade, a tua inteligência, a tua força de viver.
Ainda hoje, passados mais de 3 anos, é o que está presente em mim - para além do sorriso terno quando falavas comigo. A tua tal "mãe rocha" ou "mãe coragem"
Não interessa a minha luta, os meus conflitos internos ...
Tudo valeu a pena, se era isso que vias em mim.
Que me sinto, agora, tão pequena e frágil e medrosa ...
Porque o medo ficou.
Este inexplicável e ainda doloroso medo de te perder, que me devora quando a noite teima em não me deixar dormir.
Como se não te tivesse perdido já, dessa forma, dessa única forma que eu queria - poder estender a minha mão e ter a tua estendida para a minha, tocando-se.
Permanecendo, assim, uma na outra, sem a urgência do tempo.
Apenas essa sensação de duas peles que se tocam.
Apenas isso.
Tão inexplicavelmente impossível!

Dois amigos diferentes falaram do livro, de ti ... porque o apresentámos duas vezes - a tua "madrinha" Regina Guimarães e o meu amigo antigo Antero Afonso.
Cada um leu o livro à sua maneira; ambos foram espantosos.
Ambos te admiraram e admiravam.
Aqui registo as frases belíssimas da Regina Guimarães.
Amanhã, virei registar as do Antero.









Apresentação do livro “Mamã, vamos dançar?”

Este livro tem
imagino eu
dois tempos de escrita
- o das anotações
ao correr dos dias
como se rabisca sobre a própria mão
sobre o ombro de alguém
no avesso de um bilhete
na margem de um jornal
o tempo dos recados que alguém dá a si mesmo
- e o da elaboração
da forma que se encontrar
procurando muito ou pouco
da redacção segundo o modelo diarístico
o tempo ainda assim de não aspirar
a tornar-se propriamente
um objecto literário
Voltaremos a isto
porque vem muito ao caso
Em todo caso é
quer-me parecer
um diário parcialmente
ou principalmente
produzido
mais do que se usa no género
a posteriori
post mortem
a frio embora muito a quente
Este livro queima os olhos
a ponta dos dedos
Foi preciso muitas ideias de ventre para o escrever
e é necessário muito estômago para o ler
de uma ponta à outra
de um só trago
como se toma um veneno
ou a conta-gotas
como se toma um veneno
seja como for
de um só traço
ou em tracejado
Este livro retrata duas aventuras paralelas
e ambas cercadas por hostes de impossibilidades
uma é de luta impossível de vencer
a luta de um rapaz
que é filho de alguém
como toda a gente é filho de alguém
outra é de luto impossível de fazer
e de uma mãe
que é mãe desse rapaz
ora nem toda a gente é mãe de alguém...
Peço desculpa por estas barbaridades
mas elas são relevantes
se quisermos entender o motivo pelo qual
um livro intensamente exclamativo
que a cada página aspira a elevar
a dupla aventura reconstituída a par e passo
paralela mas entrelaçada
secante
devastadora
ao patamar do épico
um livro intensamente exclamativo
dizia eu
se transforma numa tragédia no sentido estrito
com o gosto amargo do anunciado
do antecipadamente
terrivelmente
determinado
desde o primeiro instante
mas que é preciso viver ainda assim
não se sabe como
nem antes nem depois de viver isso que havia que
Neste livro
como nas vidas das mães
sejam elas analfabetas ou letradas
que vivem plenamente a sua condição
a mãe
- que é protagonista e também autora
escrevendo na primeira pessoa -
ascende ao papel de irmã de seu filho
quando o descobre como crescido e companheiro
quando o descobre mortal
- embora seja obrigada a prolongar-se
desdobrar-se
camuflar-se por vezes
no papel de mãe
- e transforma-se numa Antígona
um bicho ferido de morte
que combate em prol da separação
entre o reino do morto e o reino do vivo
Aquilo que há de azedo
e brutalmente ingénuo
porém sábio de um saber ancestral
neste eu escrevente
recordando os rituais de esperança a que se obrigou
neste livro
evoca a heroína grega
e o seu ir até ao fim
o seu ir até além do fim
o seu ir até às últimas consequências
que decorrem da não aceitação do desconcerto do mundo
desconcerto materializado na maneira como lá se exercem
os poderes e os saberes
Este livro relata a luta
impossível já se disse
de David contra um Golias
que não mostra a face nem a envergadura
posto que se esconde
insidiosamente
dentro do próprio David
Este livro fala de como o David sorria
e como o seu sorriso
com mil facetas numa só face
nos faz falta
É um livro homenagem
a um filho
ao amor de um filho
prestado por uma mãe que dele se orgulha
- e de novo o seu ventre incha
prestes a dar de novo à luz a quem faz luz
porque o nascimento acontece todos os dias... -
de uma mãe que contempla indistinta e perdidamente
o filho, o amor do filho e o seu amor pelo filho
Este livro fala da invenção da vida
contra o absurdo da morte
e nessa perspectiva
o que ele nos conta é de proveito universal
pois coloca o dever de viver
muito para lá do «aceitável»
do «razoável»
e do «politicamente correcto»
Este livro denuncia
que a «mentira»
quando é parte da invenção da vida
quando é ficção e esperança
esperança de ficção frente à realidade opaca
é a única verdade possível
transformando-se em imperativo vital
- e nada há de mais violento que a esperança
já dizia o poeta Apollinaire
debruçado sobre o parapeito de uma ponte
e fitando a corrente ininterrupta
Também eu
que não sou Apollinaire
mas olhei águas tão turvas e triste
que quase me sorviam
posso confirmar
por experiência pessoa
a justeza do que diz a Isabel
Este livro derrama-se em gratidão
em reconhecimento de amizades e solidariedades
exalta-se contra incompreensões de pessoas e de instituições
e isso tanto mais quanto a desumanidade tem um travo
a pura crueldade
se vivida em circunstâncias extremas
E este livro não cala
a presença de um companheiro
cuja constância delicada
na sombra e na retaguarda
parece decorrer da infinita paciência
do amante que ama o amor tanto quanto ama a amada
Este livro não tem
segundo a autora
pretensões literárias
e a sua avaliação enquanto objecto literária
afigura-se-me
no mínimo
descabida
Recorde-se no entanto
que antes do século XVIII
época em que a palavra literatura tomou a acepção
de conjunto de obras escritas ou orais comportando
uma evidente dimensão estética
ou actividade que consiste na sua elaboração,
o termo designava
na Idade Média
o saber tirado dos livros
e antes ainda
em latim
a coisa escrita
Sendo eu
pessoalmente
assaz avessa à instituição literária
e pelo contrário muito afeiçoada
à escrita
também nas suas dimensões possíveis
de escrever com
escrever para
escrever contra
escrever apesar de
reescrever
desescrever
etc.
só posso saudar o gesto de quem assim se exprime
Não posso contudo calar a minha inquietude
perante a maneira como a Isabel relega
para um plano pouco inscrito na folha do presente
aquilo que, a meu ver, o David nos lega,
com a exigência de quem perde a vida
em vez de a ganhar, como se costuma dizer
É o seu «vamos dançar, mamã»
que para mim foi o «vamos fazer uma ópera, Regina»
eivado de uma certeza imensa de que tudo nos escapa
mas por isso a tudo nos agarramos
e tudo abraçamos com redobrado amor.
Quando o David me lançou o convite
para fazermos
eu, ele, o João Paulo Seara Cardoso
também entretanto falecido,
e outras pessoas da sua escolha,
eu sabia que o David estava muitíssimo doente,
condenado como se costuma dizer
Porém, naquele instante
acreditei que a ópera ia acontecer
que ia acontecer essa nossa obra
porque o David sorrindo assim mo asseverava
apelidando-me de «madrinha» com um trejeito maroto
É com esse David que eu falo às vezes
antes de adormecer
na hora em que a corda do dia se estica
e em que se limpa o espírito
de toda a tentação de mesquinhez
de todo o desprezo pelo prazer de se estar vivo
Quando a Isabel me desafiou para eu preparar
umas quantas palavras sobre o seu livro
como não pensar no que o David pensaria
como não pensar no Triunfo dos Porcos
e no que nos governa
A Isabel
a quem o David dava o nome carinhoso de «Mãe Coragem»
terá porventura de se lembrar
todos os dias um bocadinho
dessas mães estranhas que o Brecht pôs em palco
e talvez sobretudo na que reescreveu a partir do Gorki
Essa Mãe transforma-se
em tudo quanto uma mãe tem
de potencialmente revolucionário
- porque a maternidade
vivida até às últimas consequências
é sinónimo de sublevação -
na hora em que compreende
que já nem unto tem para fazer o caldo do filho
e que portanto o papel em que ela se reviu
fechando-se e asfixiando-se na «função»
lhe foi inculcado
Mãe é pois quem também se rebela
contra o afunilamento do papel de Mãe
e eu sei
que a Isabel está a uma nesga de o fazer

 13 de Dezembro de 2010
Regina Guimarães

3 comentários:

Anónimo disse...

Ontem estive no lançamento do livro. Pelo caminho iniciei a leitura . Terminei agora. Pouco mais de 24 horas... Nem imagina como a leitura me ajudou a afastar alguns fantasmas (medo, raiva, saudades...) precisamente neste domingo de Páscoa.
Obrigada
maria João

Anónimo disse...

Aconteceu-me o mesmo que a si, Maria João.
Li o livro de um fôlego só. Impossível parar, mesmo sabendo que o fim já foi revelado no princípio.
A leitura deste livro dói, faz chorar, mesmo não conhecendo este "rapazinho" e esta "mãe coragem".
É um livro a aconselhar a quem passa por esta terrível experiência de vida.
Afastou os meus fantasmas perante a proximidade da morte.
Que devia ser sempre assim.
O texto da Regina Guimarães só podia ser ... belo!
Sentido e comovente!

Um abraço, Isabel

Júlia

Anónimo disse...

Tem razão, Maria João

Livro belíssimo que nos transporta para um mundo de dor e desespero, mas de um intenso AMOR.
É o que fica da leitura deste livro.
Uma agonizante e permanente história de amor entre uma mãe e um filho, com morte anunciada.
Terrível!
Catártico!
Obrigada, Isabel, por ter tido a coragem de nos dar a conhecer esta sua terrível experiência de vida.