25 abril 2011

Obrigada, Antero


Ontem a minha mãe fez anos! 
Foi, novamente, assistir à apresentação do livro, na FNAC.
Lá estava com o seu olhar límpido, apesar dos seus 83 anos.
Lá estava o meu pai, com o olhar um pouco ainda amargurado da saudade.
Lá estava a minha irmã, de olhos perdidos no tempo, com uma lágrima a querer soltar-se.
Mas todos, com o mesmo tipo de brilho no olhar.
O brilho orgulhoso de te terem tido
como neto querido
como sobrinho meigo e afável.
O Manel ... emocionado com aquele brilho de uma quase lágrima que se lhe forma no olhar
sempre que recordamos o David.
E "reviveram-te" nas palavras sentidas e lúcidas do Antero. 





Apresentação do livro «Mamã, vamos dançar?
Num seminário em que participei recentemente, Miguel Santos Guerra definiu o conceito de amigo de uma forma que, neste momento, me pode ser muito útil: um amigo é alguém que apesar de te conhecer bem, continua a gostar de ti.
É este o risco a que me exponho perante a Isabel. O desafio que ela me colocou é muito grande, porque há situações em que os afectos determinam quase todo o universo em apreciação e a racionalidade perturba esse cenário e nele encontra pouco cabimento.
Este livro, que hoje me é dado comentar, apresenta um registo interessante: trata-se de uma narrativa a várias vozes, todas pertencentes, contudo, à mesma personagem, a Isabel Venâncio.
Como na vida – aconselho a leitura da obra do meu amigo Miguel Gonçalves – cada um de nós conta a sua história a várias vozes, sendo que uma delas é dominante e tende a abafar todas as outras que, também, se querem fazer ouvir. Em muitos casos, o mais importante para o actor é dar expressão a essas narrativas alternativas à dominante, de modo a fazer sobressair aspectos que não são congruentes com o argumento principal que a narrativa dominante veicula, sobretudo quando esta nos arrasta para os piores caminhos.
Para efectuar a análise deste livro, procedi de um modo tão singular quanto peculiar: extrai da estante, aleatoriamente, um romance, para fazer uma leitura cruzada entre o livro a comentar e aquele que a sorte me quisesse colocar nas mãos. Bastaria, então, esperar que a sorte me concedesse motivos de reflexão.
O resultado não poderia ter sido mais surpreendente.
O meu auxiliar de análise chama-se «O mundo é a rua da tua infância» e o seu autor é Juan José Millas.
Li algumas páginas e anotei que falava também de morte e, algures, dizia assim:
«Repetiu o que aprendemos a dizer nestas situações: que estamos preparados para a morte dos pais, mas não para a dos filhos; que a morte de um filho implicava uma dor com a qual não se podia pactuar, mas que era impossível eliminar (…) Não disse nada que eu não tivesse ouvido no cinema ou nos romances, mas parecia que o escutava pela primeira vez pois a sua dor, embora repetida, parecia única.
Fiquei apreensivo com a escolha que o destino me tinha colocado nas mãos e pousei o livro, partindo para a procura dos elementos que tornavam única a narrativa da Isabel. E foi nessa procura que descobri as várias vozes que a povoavam.
Começo, então, pelo registo da narrativa a que chamo dominante e que é aquela onde é mais óbvia e directa a identificação com a Isabel. É um registo de dor, de incredulidade, de desespero, de incompreensão e de impotência. Uma história que se repete, cirúrgica, minuciosa, sofrida, redundante, marcada pelo sofrimento e pela ausência da compreensão face a um fenómeno indizível, onde nos descobrimos na qualidade de observadores impotentes, incapazes de fazer inflectir aquela crónica da morte anunciada.
Voltei a parar e regressei à Rua da Minha Infância, onde tornei a surpreender-me com as palavras que vinham ao meu encontro
«- Repara Juanito, cauteriza a ferida ao mesmo tempo que a causa – dizia o pai, quando lhe mostrava um bisturi eléctrico».
A amargura, a raiva, o desespero, o medo da Isabel constituem a forma como ela expõe, através da escrita, todas as suas feridas, única forma de tentar sará-las, cauterizá-las, ao mesmo tempo que as abre. Juan Millas voltava a surpreender-me, não tanto pelas questões que me colocava, mas pelas respostas que dava às perguntas que eu não lhe fazia.
Num mar de crispação quase continuada, neste registo narrativo a que chamo dominante, senti uma primeira e estranha sensação de bem-estar: - a escrita podia libertar a sua autora, ainda que, momentaneamente, lhe causasse dor profunda.
Vagueava, agora, entre Juan Millas e Miguel Gonçalves, prestando atenção ao que este último me dizia: «a narrativa de cada um é o resultado de negociação intensa, tensões, desacordos, alianças, sobre as diferentes vozes que nos povoam.»
Retorno a «Mamã, vamos dançar?» e perscruto as outras narrativas que habitam a autora e, nesse percurso, não posso deixar de, sucessivamente, me surpreender, de me emocionar, de me indignar, de me sentir confortado, de me interrogar.
Encontro uma segunda narrativa difusamente enunciada, constituída por uma multiplicidade de histórias que cada leitor pode (re) construir, imaginar, porque são histórias onde, apesar de a chave não estar presente, a porta está entre aberta. São as histórias que moram destro do silêncio de outras personagens igualmente centrais que, indubitavelmente, terão enredos, cores, sentimentos, cheiros, melhores e piores momentos, abafos e confissões, expectativas e frustrações, mas que a narrativa dominante não nos permite partilhar. São as histórias sinalizadas daquelas personagens que estiveram bem no coração deste processo, mas cuja importância se dilui face à dimensão do sofrimento da mãe. Mãe há só uma, como todos entendem facilmente. Nenhum leitor, contudo, deixará de se interrogar e de construir os percursos destas personagens, tão próximas do David. São personagens que reclamam voz e nenhum dos leitores estará em condições de lho negar, preenchendo com a sua imaginação as lacunas abertas pela realidade descrita.
Encontro uma outra narrativa, explicitamente enunciada, que reflecte, sublinha, aplaude e torna indispensáveis as teias da amizade urdidas em outros contextos e que aqui se mostram inestimáveis. São domínios de solidariedade que se corporizam no nome de pessoas concretas, com morada, com profissão, com história. Não se trata de uma ficção, trata-se de uma realidade que nos apraz ler e que nos reconforta. É uma narrativa construída com palavras de admiração. Admiração pela importância que assumem as relações de amizade e de solidariedade, em todos os momentos da vida, especialmente, nos mais conturbados e difíceis.
Encontro, igualmente, uma narrativa de pequenos desabafos, de alguns ajustes de contas, que pretende exorcizar, denunciar e expor o desencanto, a incompreensão e a exclusão. Trata-se de um registo complementar, pontual, que faz parte da vida, mas que tende a tornar-se numa inutilidade. Uma inutilidade algo violenta e, possivelmente por isso, a narrativa que o leitor mais depressa quererá esquecer.
Encontro uma outra narrativa sobre a sombra espessa do amor. A história paralela de um homem sombra, omnipresente e quase omnisciente, com a generosidade marcada com os seus silêncios, os passatempos solitários, a abnegação intemporal, a sua incondicional presença. Uma claridade que desafia a treva, uma inteligência com aplicação prática. Esta é uma parte da narrativa que nos prende à vida, que nos faz acreditar, que eleva a dimensão do homem livre: podendo optar, prescinde de tudo para se dedicar à causa do amor. Foi uma dimensão, para mim, particularmente tocante.
Encontro, finalmente, a narrativa do David, que não sendo outra que a narrativa da Isabel, se opõe permanentemente, à narrativa dominante. É uma narrativa de poesia, de esperança, de lucidez, de racionalidade, de tenacidade e de satisfação.
Foi neste registo narrativo que instalei a minha própria esperança. Aprendi uma série de coisas significativas, usufrui de conselhos, reflecti sobre dimensões potencialmente paradoxais, pensei a luz como elemento narrativo de um espectáculo, descortinei meandros do trabalho de gestão cultural, reconheci no trabalho um elemento de afirmação do homem, valorizei a importância dos contactos interpessoais, a capacidade de criar em situações adversas, a sorrir, a convidar a minha mãe para dançar.
O grupo «Corpo» que passa na tela é um deleite que me foi proporcionado por esta dimensão da narrativa e, no meu roteiro de viagens futuras consta uma visita ao Auditório de Bragança, para verificar as suas excelentes condições técnicas e a (in) capacidade para receber o Lyon King ou a Companhia de Pina Bausch, pela lotação.
Mesmo na minha área de formação académica, a Economia, não deixei de me surpreender, com o facto de o David ter um pensamento muito mais elaborado que muito economistas e, seguramente, que a generalidade dos contabilistas. Ele afirmava que era importante gastar dinheiro (apoio técnico de suporte à decisão), para se poder poupar (na obra a implementar)
Esta é a narrativa do David que, tendo vinte e nove anos para viver, o fez da melhor maneira não deixando de produzir as observações e as perguntas que se impunham; Sendo, simultaneamente, a narrativa da Isabel, como referi no princípio, não deixa de ser interessante verificar o modo como o David se dirigia à mãe, sempre com grande lucidez. Quando lhe pediu um parecer, acautelou-se: «Lês, dizes se gostas, mas não lhe tocas.» Acrescentando, complacente «Só se encontrares algum erro ortográfico.» E, valorizando as outras histórias que se afastam da narrativa dominante, achou oportuno explicitá-lo, não deixando dúvidas ou outra possibilidade à Isabel, que não seja imitar a sua lucidez e a valorização que fez da vida, sintetizada nesse convite cheio de luz, de música e de movimento «Mamã, vamos dançar?»

Gaia, 2011, Abril, 23
Antero Afonso

4 comentários:

Luís Pires disse...

Olá Isabel,

Mais uma vez parabéns pelo livro e pela obra além do livro. A leitura continua, com gosto e com carinho.

E parabéns ao Antero, pelo brilhante discurso.

Luís

Isabel Venâncio disse...

Luís
Respondi-lhe no post errado.
Darei o seu recado ao Antero.
Pode enviar-me o seu email?
abraço
Isabel

Luís Pires disse...

Olá Isabel. Aqui fica: lffpires@sapo.pt

Um abraço
Luís

Anónimo disse...

"Para efectuar a análise deste livro, procedi de um modo tão singular quanto peculiar: extrai da estante, aleatoriamente, um romance, para fazer uma leitura cruzada entre o livro a comentar e aquele que a sorte me quisesse colocar nas mãos. Bastaria, então, esperar que a sorte me concedesse motivos de reflexão.
"O resultado não poderia ter sido mais surpreendente"

Antero Afonso

Não conhecemos muito sobre a zona transcendental da vida.E tantas vezes nos surpreendemos com o que julgamos meras " coincidências".
Somos adultos,já sei. E por isso,surpreendemo-nos com as aparentes coincidências existenciais, mas estamos normalmente pouco atentos aos sinais simbólicos da zona mágica da existência.

Da narrativa que perpassa do David,emana uma lucidez serena que sempre me tocou.

Os verdadeiros gigantes são aqueles que partem ao encontro do Desconhecido,com a serenidade de quem não teme o maior Desafio.

Foi e é o caso da superior lição do David.

António