27 abril 2011

Parabéns, meu querido David!

Tragedy - Gustav Klimt


As mãos franzinas do meu filho, nos meus ombros
Mamã, acho que não chego aos 30
Oh ... chegas, claro que sim
Que ideia ...
Isto é apenas mais um contratempo que vamos ultrapassar
Achas, mamã?
... 






Desculpa, David, não ter sido possível
parar o tempo
aprisioná-lo
esconder-te dele
arrancar-te às tenazes
com que te prendeu





26 abril 2011

Foi num Maio

"De não saber o que me espera!"

Já reparaste na letra desta canção, mamã?
É muito bonita, não é?
Sim, David ...
Vamos ouvir outra vez? Já viste que talvez não saiba o que me espera?
Não, David, acho que sabemos que tudo vai correr bem; devagarinho ... mas bem ...





Era em Maio.
 ... foi um ténue fio de luz que, mesmo agora, me atravessou e nos colocou frente a frente, nas nossas secretárias, do nosso escritório.
Tantos medos pressentidos!
Que temporal nos arrastou?
Como fazer da tua perda um novo ponto de partida para uma outra vida?
É! Só mesmo sendo seta que perfura o tempo.
Não olhar, não permanecer parada, não pensar!
Seguir parada num tempo em permanente movimento!


25 abril 2011

Obrigada, Antero


Ontem a minha mãe fez anos! 
Foi, novamente, assistir à apresentação do livro, na FNAC.
Lá estava com o seu olhar límpido, apesar dos seus 83 anos.
Lá estava o meu pai, com o olhar um pouco ainda amargurado da saudade.
Lá estava a minha irmã, de olhos perdidos no tempo, com uma lágrima a querer soltar-se.
Mas todos, com o mesmo tipo de brilho no olhar.
O brilho orgulhoso de te terem tido
como neto querido
como sobrinho meigo e afável.
O Manel ... emocionado com aquele brilho de uma quase lágrima que se lhe forma no olhar
sempre que recordamos o David.
E "reviveram-te" nas palavras sentidas e lúcidas do Antero. 





Apresentação do livro «Mamã, vamos dançar?
Num seminário em que participei recentemente, Miguel Santos Guerra definiu o conceito de amigo de uma forma que, neste momento, me pode ser muito útil: um amigo é alguém que apesar de te conhecer bem, continua a gostar de ti.
É este o risco a que me exponho perante a Isabel. O desafio que ela me colocou é muito grande, porque há situações em que os afectos determinam quase todo o universo em apreciação e a racionalidade perturba esse cenário e nele encontra pouco cabimento.
Este livro, que hoje me é dado comentar, apresenta um registo interessante: trata-se de uma narrativa a várias vozes, todas pertencentes, contudo, à mesma personagem, a Isabel Venâncio.
Como na vida – aconselho a leitura da obra do meu amigo Miguel Gonçalves – cada um de nós conta a sua história a várias vozes, sendo que uma delas é dominante e tende a abafar todas as outras que, também, se querem fazer ouvir. Em muitos casos, o mais importante para o actor é dar expressão a essas narrativas alternativas à dominante, de modo a fazer sobressair aspectos que não são congruentes com o argumento principal que a narrativa dominante veicula, sobretudo quando esta nos arrasta para os piores caminhos.
Para efectuar a análise deste livro, procedi de um modo tão singular quanto peculiar: extrai da estante, aleatoriamente, um romance, para fazer uma leitura cruzada entre o livro a comentar e aquele que a sorte me quisesse colocar nas mãos. Bastaria, então, esperar que a sorte me concedesse motivos de reflexão.
O resultado não poderia ter sido mais surpreendente.
O meu auxiliar de análise chama-se «O mundo é a rua da tua infância» e o seu autor é Juan José Millas.
Li algumas páginas e anotei que falava também de morte e, algures, dizia assim:
«Repetiu o que aprendemos a dizer nestas situações: que estamos preparados para a morte dos pais, mas não para a dos filhos; que a morte de um filho implicava uma dor com a qual não se podia pactuar, mas que era impossível eliminar (…) Não disse nada que eu não tivesse ouvido no cinema ou nos romances, mas parecia que o escutava pela primeira vez pois a sua dor, embora repetida, parecia única.
Fiquei apreensivo com a escolha que o destino me tinha colocado nas mãos e pousei o livro, partindo para a procura dos elementos que tornavam única a narrativa da Isabel. E foi nessa procura que descobri as várias vozes que a povoavam.
Começo, então, pelo registo da narrativa a que chamo dominante e que é aquela onde é mais óbvia e directa a identificação com a Isabel. É um registo de dor, de incredulidade, de desespero, de incompreensão e de impotência. Uma história que se repete, cirúrgica, minuciosa, sofrida, redundante, marcada pelo sofrimento e pela ausência da compreensão face a um fenómeno indizível, onde nos descobrimos na qualidade de observadores impotentes, incapazes de fazer inflectir aquela crónica da morte anunciada.
Voltei a parar e regressei à Rua da Minha Infância, onde tornei a surpreender-me com as palavras que vinham ao meu encontro
«- Repara Juanito, cauteriza a ferida ao mesmo tempo que a causa – dizia o pai, quando lhe mostrava um bisturi eléctrico».
A amargura, a raiva, o desespero, o medo da Isabel constituem a forma como ela expõe, através da escrita, todas as suas feridas, única forma de tentar sará-las, cauterizá-las, ao mesmo tempo que as abre. Juan Millas voltava a surpreender-me, não tanto pelas questões que me colocava, mas pelas respostas que dava às perguntas que eu não lhe fazia.
Num mar de crispação quase continuada, neste registo narrativo a que chamo dominante, senti uma primeira e estranha sensação de bem-estar: - a escrita podia libertar a sua autora, ainda que, momentaneamente, lhe causasse dor profunda.
Vagueava, agora, entre Juan Millas e Miguel Gonçalves, prestando atenção ao que este último me dizia: «a narrativa de cada um é o resultado de negociação intensa, tensões, desacordos, alianças, sobre as diferentes vozes que nos povoam.»
Retorno a «Mamã, vamos dançar?» e perscruto as outras narrativas que habitam a autora e, nesse percurso, não posso deixar de, sucessivamente, me surpreender, de me emocionar, de me indignar, de me sentir confortado, de me interrogar.
Encontro uma segunda narrativa difusamente enunciada, constituída por uma multiplicidade de histórias que cada leitor pode (re) construir, imaginar, porque são histórias onde, apesar de a chave não estar presente, a porta está entre aberta. São as histórias que moram destro do silêncio de outras personagens igualmente centrais que, indubitavelmente, terão enredos, cores, sentimentos, cheiros, melhores e piores momentos, abafos e confissões, expectativas e frustrações, mas que a narrativa dominante não nos permite partilhar. São as histórias sinalizadas daquelas personagens que estiveram bem no coração deste processo, mas cuja importância se dilui face à dimensão do sofrimento da mãe. Mãe há só uma, como todos entendem facilmente. Nenhum leitor, contudo, deixará de se interrogar e de construir os percursos destas personagens, tão próximas do David. São personagens que reclamam voz e nenhum dos leitores estará em condições de lho negar, preenchendo com a sua imaginação as lacunas abertas pela realidade descrita.
Encontro uma outra narrativa, explicitamente enunciada, que reflecte, sublinha, aplaude e torna indispensáveis as teias da amizade urdidas em outros contextos e que aqui se mostram inestimáveis. São domínios de solidariedade que se corporizam no nome de pessoas concretas, com morada, com profissão, com história. Não se trata de uma ficção, trata-se de uma realidade que nos apraz ler e que nos reconforta. É uma narrativa construída com palavras de admiração. Admiração pela importância que assumem as relações de amizade e de solidariedade, em todos os momentos da vida, especialmente, nos mais conturbados e difíceis.
Encontro, igualmente, uma narrativa de pequenos desabafos, de alguns ajustes de contas, que pretende exorcizar, denunciar e expor o desencanto, a incompreensão e a exclusão. Trata-se de um registo complementar, pontual, que faz parte da vida, mas que tende a tornar-se numa inutilidade. Uma inutilidade algo violenta e, possivelmente por isso, a narrativa que o leitor mais depressa quererá esquecer.
Encontro uma outra narrativa sobre a sombra espessa do amor. A história paralela de um homem sombra, omnipresente e quase omnisciente, com a generosidade marcada com os seus silêncios, os passatempos solitários, a abnegação intemporal, a sua incondicional presença. Uma claridade que desafia a treva, uma inteligência com aplicação prática. Esta é uma parte da narrativa que nos prende à vida, que nos faz acreditar, que eleva a dimensão do homem livre: podendo optar, prescinde de tudo para se dedicar à causa do amor. Foi uma dimensão, para mim, particularmente tocante.
Encontro, finalmente, a narrativa do David, que não sendo outra que a narrativa da Isabel, se opõe permanentemente, à narrativa dominante. É uma narrativa de poesia, de esperança, de lucidez, de racionalidade, de tenacidade e de satisfação.
Foi neste registo narrativo que instalei a minha própria esperança. Aprendi uma série de coisas significativas, usufrui de conselhos, reflecti sobre dimensões potencialmente paradoxais, pensei a luz como elemento narrativo de um espectáculo, descortinei meandros do trabalho de gestão cultural, reconheci no trabalho um elemento de afirmação do homem, valorizei a importância dos contactos interpessoais, a capacidade de criar em situações adversas, a sorrir, a convidar a minha mãe para dançar.
O grupo «Corpo» que passa na tela é um deleite que me foi proporcionado por esta dimensão da narrativa e, no meu roteiro de viagens futuras consta uma visita ao Auditório de Bragança, para verificar as suas excelentes condições técnicas e a (in) capacidade para receber o Lyon King ou a Companhia de Pina Bausch, pela lotação.
Mesmo na minha área de formação académica, a Economia, não deixei de me surpreender, com o facto de o David ter um pensamento muito mais elaborado que muito economistas e, seguramente, que a generalidade dos contabilistas. Ele afirmava que era importante gastar dinheiro (apoio técnico de suporte à decisão), para se poder poupar (na obra a implementar)
Esta é a narrativa do David que, tendo vinte e nove anos para viver, o fez da melhor maneira não deixando de produzir as observações e as perguntas que se impunham; Sendo, simultaneamente, a narrativa da Isabel, como referi no princípio, não deixa de ser interessante verificar o modo como o David se dirigia à mãe, sempre com grande lucidez. Quando lhe pediu um parecer, acautelou-se: «Lês, dizes se gostas, mas não lhe tocas.» Acrescentando, complacente «Só se encontrares algum erro ortográfico.» E, valorizando as outras histórias que se afastam da narrativa dominante, achou oportuno explicitá-lo, não deixando dúvidas ou outra possibilidade à Isabel, que não seja imitar a sua lucidez e a valorização que fez da vida, sintetizada nesse convite cheio de luz, de música e de movimento «Mamã, vamos dançar?»

Gaia, 2011, Abril, 23
Antero Afonso

24 abril 2011

Obrigada, Regina

Hoje, foi o lançamento "oficial" de livro "Mamã, vamos dançar?", na FNAC.
Correu bem; se me perguntarem o que disse, quando foi a minha vez de falar ... não tenho bem a certeza. Sei que falei de ti, David, porque este livro és tu.
A tua força, a tua ingenuidade, a tua inteligência, a tua força de viver.
Ainda hoje, passados mais de 3 anos, é o que está presente em mim - para além do sorriso terno quando falavas comigo. A tua tal "mãe rocha" ou "mãe coragem"
Não interessa a minha luta, os meus conflitos internos ...
Tudo valeu a pena, se era isso que vias em mim.
Que me sinto, agora, tão pequena e frágil e medrosa ...
Porque o medo ficou.
Este inexplicável e ainda doloroso medo de te perder, que me devora quando a noite teima em não me deixar dormir.
Como se não te tivesse perdido já, dessa forma, dessa única forma que eu queria - poder estender a minha mão e ter a tua estendida para a minha, tocando-se.
Permanecendo, assim, uma na outra, sem a urgência do tempo.
Apenas essa sensação de duas peles que se tocam.
Apenas isso.
Tão inexplicavelmente impossível!

Dois amigos diferentes falaram do livro, de ti ... porque o apresentámos duas vezes - a tua "madrinha" Regina Guimarães e o meu amigo antigo Antero Afonso.
Cada um leu o livro à sua maneira; ambos foram espantosos.
Ambos te admiraram e admiravam.
Aqui registo as frases belíssimas da Regina Guimarães.
Amanhã, virei registar as do Antero.









Apresentação do livro “Mamã, vamos dançar?”

Este livro tem
imagino eu
dois tempos de escrita
- o das anotações
ao correr dos dias
como se rabisca sobre a própria mão
sobre o ombro de alguém
no avesso de um bilhete
na margem de um jornal
o tempo dos recados que alguém dá a si mesmo
- e o da elaboração
da forma que se encontrar
procurando muito ou pouco
da redacção segundo o modelo diarístico
o tempo ainda assim de não aspirar
a tornar-se propriamente
um objecto literário
Voltaremos a isto
porque vem muito ao caso
Em todo caso é
quer-me parecer
um diário parcialmente
ou principalmente
produzido
mais do que se usa no género
a posteriori
post mortem
a frio embora muito a quente
Este livro queima os olhos
a ponta dos dedos
Foi preciso muitas ideias de ventre para o escrever
e é necessário muito estômago para o ler
de uma ponta à outra
de um só trago
como se toma um veneno
ou a conta-gotas
como se toma um veneno
seja como for
de um só traço
ou em tracejado
Este livro retrata duas aventuras paralelas
e ambas cercadas por hostes de impossibilidades
uma é de luta impossível de vencer
a luta de um rapaz
que é filho de alguém
como toda a gente é filho de alguém
outra é de luto impossível de fazer
e de uma mãe
que é mãe desse rapaz
ora nem toda a gente é mãe de alguém...
Peço desculpa por estas barbaridades
mas elas são relevantes
se quisermos entender o motivo pelo qual
um livro intensamente exclamativo
que a cada página aspira a elevar
a dupla aventura reconstituída a par e passo
paralela mas entrelaçada
secante
devastadora
ao patamar do épico
um livro intensamente exclamativo
dizia eu
se transforma numa tragédia no sentido estrito
com o gosto amargo do anunciado
do antecipadamente
terrivelmente
determinado
desde o primeiro instante
mas que é preciso viver ainda assim
não se sabe como
nem antes nem depois de viver isso que havia que
Neste livro
como nas vidas das mães
sejam elas analfabetas ou letradas
que vivem plenamente a sua condição
a mãe
- que é protagonista e também autora
escrevendo na primeira pessoa -
ascende ao papel de irmã de seu filho
quando o descobre como crescido e companheiro
quando o descobre mortal
- embora seja obrigada a prolongar-se
desdobrar-se
camuflar-se por vezes
no papel de mãe
- e transforma-se numa Antígona
um bicho ferido de morte
que combate em prol da separação
entre o reino do morto e o reino do vivo
Aquilo que há de azedo
e brutalmente ingénuo
porém sábio de um saber ancestral
neste eu escrevente
recordando os rituais de esperança a que se obrigou
neste livro
evoca a heroína grega
e o seu ir até ao fim
o seu ir até além do fim
o seu ir até às últimas consequências
que decorrem da não aceitação do desconcerto do mundo
desconcerto materializado na maneira como lá se exercem
os poderes e os saberes
Este livro relata a luta
impossível já se disse
de David contra um Golias
que não mostra a face nem a envergadura
posto que se esconde
insidiosamente
dentro do próprio David
Este livro fala de como o David sorria
e como o seu sorriso
com mil facetas numa só face
nos faz falta
É um livro homenagem
a um filho
ao amor de um filho
prestado por uma mãe que dele se orgulha
- e de novo o seu ventre incha
prestes a dar de novo à luz a quem faz luz
porque o nascimento acontece todos os dias... -
de uma mãe que contempla indistinta e perdidamente
o filho, o amor do filho e o seu amor pelo filho
Este livro fala da invenção da vida
contra o absurdo da morte
e nessa perspectiva
o que ele nos conta é de proveito universal
pois coloca o dever de viver
muito para lá do «aceitável»
do «razoável»
e do «politicamente correcto»
Este livro denuncia
que a «mentira»
quando é parte da invenção da vida
quando é ficção e esperança
esperança de ficção frente à realidade opaca
é a única verdade possível
transformando-se em imperativo vital
- e nada há de mais violento que a esperança
já dizia o poeta Apollinaire
debruçado sobre o parapeito de uma ponte
e fitando a corrente ininterrupta
Também eu
que não sou Apollinaire
mas olhei águas tão turvas e triste
que quase me sorviam
posso confirmar
por experiência pessoa
a justeza do que diz a Isabel
Este livro derrama-se em gratidão
em reconhecimento de amizades e solidariedades
exalta-se contra incompreensões de pessoas e de instituições
e isso tanto mais quanto a desumanidade tem um travo
a pura crueldade
se vivida em circunstâncias extremas
E este livro não cala
a presença de um companheiro
cuja constância delicada
na sombra e na retaguarda
parece decorrer da infinita paciência
do amante que ama o amor tanto quanto ama a amada
Este livro não tem
segundo a autora
pretensões literárias
e a sua avaliação enquanto objecto literária
afigura-se-me
no mínimo
descabida
Recorde-se no entanto
que antes do século XVIII
época em que a palavra literatura tomou a acepção
de conjunto de obras escritas ou orais comportando
uma evidente dimensão estética
ou actividade que consiste na sua elaboração,
o termo designava
na Idade Média
o saber tirado dos livros
e antes ainda
em latim
a coisa escrita
Sendo eu
pessoalmente
assaz avessa à instituição literária
e pelo contrário muito afeiçoada
à escrita
também nas suas dimensões possíveis
de escrever com
escrever para
escrever contra
escrever apesar de
reescrever
desescrever
etc.
só posso saudar o gesto de quem assim se exprime
Não posso contudo calar a minha inquietude
perante a maneira como a Isabel relega
para um plano pouco inscrito na folha do presente
aquilo que, a meu ver, o David nos lega,
com a exigência de quem perde a vida
em vez de a ganhar, como se costuma dizer
É o seu «vamos dançar, mamã»
que para mim foi o «vamos fazer uma ópera, Regina»
eivado de uma certeza imensa de que tudo nos escapa
mas por isso a tudo nos agarramos
e tudo abraçamos com redobrado amor.
Quando o David me lançou o convite
para fazermos
eu, ele, o João Paulo Seara Cardoso
também entretanto falecido,
e outras pessoas da sua escolha,
eu sabia que o David estava muitíssimo doente,
condenado como se costuma dizer
Porém, naquele instante
acreditei que a ópera ia acontecer
que ia acontecer essa nossa obra
porque o David sorrindo assim mo asseverava
apelidando-me de «madrinha» com um trejeito maroto
É com esse David que eu falo às vezes
antes de adormecer
na hora em que a corda do dia se estica
e em que se limpa o espírito
de toda a tentação de mesquinhez
de todo o desprezo pelo prazer de se estar vivo
Quando a Isabel me desafiou para eu preparar
umas quantas palavras sobre o seu livro
como não pensar no que o David pensaria
como não pensar no Triunfo dos Porcos
e no que nos governa
A Isabel
a quem o David dava o nome carinhoso de «Mãe Coragem»
terá porventura de se lembrar
todos os dias um bocadinho
dessas mães estranhas que o Brecht pôs em palco
e talvez sobretudo na que reescreveu a partir do Gorki
Essa Mãe transforma-se
em tudo quanto uma mãe tem
de potencialmente revolucionário
- porque a maternidade
vivida até às últimas consequências
é sinónimo de sublevação -
na hora em que compreende
que já nem unto tem para fazer o caldo do filho
e que portanto o papel em que ela se reviu
fechando-se e asfixiando-se na «função»
lhe foi inculcado
Mãe é pois quem também se rebela
contra o afunilamento do papel de Mãe
e eu sei
que a Isabel está a uma nesga de o fazer

 13 de Dezembro de 2010
Regina Guimarães