31 janeiro 2011

É bonito, meu filho!


Fala-se de um outro tipo de amor! 
Bem sei!
Mas que importa, se estas palavras, como seta rubra,  me rasgaram a saudade ... como se fossem minhas?



Carta (Esboço)

Lembro-me agora que tenho de marcar um 
encontro contigo, num sítio em que ambos 
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma 
das ocorrências da vida venha 
interferir no que temos para nos dizer. Muitas 
vezes me lembrei de que esse sítio podia 
ser, até, um lugar sem nada de especial, 
como um canto de café, em frente de um espelho 
que poderia servir de pretexto 
para reflectir a alma, a impressão da tarde, 
o último estertor do dia antes de nos despedirmos, 
quando é preciso encontrar uma fórmula que 
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É 
que o amor nem sempre é uma palavra de uso, 
aquela que permite a passagem à comunicação ; 
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale, 
de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós 
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio 
ser, como se uma troca de almas fosse possível 
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e 
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas 
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde, 
isto é, a porta tinha-se fechado até outro 
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então 
as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem 
sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar 
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos 
para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que 
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por 
trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia 
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores 
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos 

encontrar, que há-de ser um dia azul, de verão, emque 
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí 
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas, 
que são as nossas: 
o verde das folhas e o amarelo 
das pétalas, 
o vermelho do sol e o branco dos muros. 


Nuno Júdice, in “Poesia Reunida” 



29 janeiro 2011

Para ti, meu filho!


Deveria ser dado que morrêssemos


Com um amor ainda vivo em nós,
Como deveria ser dado a um pássaro
Morrer naturalmente em pleno voo.

Nuno Rocha Morais











26 janeiro 2011

Daqui a seis meses!

Mais um passo, neste processo lento de me afastar da escola.
Nova consulta da Junta Médica da DREN.
Três médicos, atrás da secretária.
Sérios, poupados nas palavras.
O tempo urge.
Devem passar-lhes inúmeros casos pela frente!
Há tanta gente, lá fora, à espera.
"Pode sentar-se ..."
Um toma nota no computador.
Leitura do relatório médico, em silêncio "Carcinoma mamário, etc... etc....".
Depois vem o resto ... quadro depressivo ... morte de um filho ... agravamento do quadro doloroso de fibromialgia ... talvez devido ao Tamoxifeno ...

O encontro não demorou mais de 3 minutos.
Mandam-me embora e desejam-me as melhoras.
Um sorriso ténue.
Referem-se a quê?
Eles, com certeza, ao problema de saúde. Ao corpo.
Ou talvez não!
Eu entendo que é ao espírito.
À saudade que tenho do meu filho.
Porque esse é o nome da minha doença.
E saio a chorar.


Partilhar a diversidade de gostos musicais do David faz-me bem.


24 janeiro 2011



Existo de existir, 
não de viver.
Apenas ser ...
 num dado momento dos meus dias flutuantes de mágoa 
ou do quase esquecimento dela.
Às vezes.
Existo ... de permanecer aqui, 
de resistir
sem que os meus olhos se aventurem mais além do que o sol pôr.





Se

É como se
sentisse que a vida me foge.
É como se,
das pontas dos dedos, eflúvio inútil, um magnetismo se escapasse inócuo,
sem penetrar as pessoas e as coisas.

É como se
eu sentisse em mim um vaso, um lago, um mar,
e se esvaísse o nível dele.
É como se
a fala, a minha e a dos outros, soasse com surdina
e se perdesse sem tinido num lençol de neve.

É como se
um frio me cobrisse resistindo a tudo, e se
nenhum entusiasmo, nenhum esquecimento, nada, se
mantivesse em mim que os ouço e sinto e me ouço.

É como se
nem mesmo a morte ou mesmo a sobrevida se
pudessem demorar mais do que isto.

Se
ainda escrevo, estou escrevendo, escreverei, é como se
as palavras juntando-se criassem, mais do que um sentido semelhante
a outros ou diverso, apenas um silêncio e se
fizessem fuga de que vivo só,
alguém que assiste, mas não se conhece vivo.

É como se
ouvindo e vendo, se
passasse ao longe tudo, e se
ouvisse e visse o que não se
ouve nem vê.
Ou se,
em vez de nada, se
criasse nada, e se,
na melancolia de um sono imenso de que se
não adormece,
desse um sono maior do que o da morte ou do amor.

Jorge de Sena

21 janeiro 2011

Ítaca nada me dará!


Ítaca

Quando começares a tua viagem para Ítaca
Reza para que o caminho seja longo
Cheio de aventura e de conhecimento
Não temas monstros como os Ciclopes ou o zangado Poseidon

Nunca os encontrarás no teu caminho
Se o teu pensamento for elevado
Nunca encontrarás os Ciclopes ou outros monstros
A não ser que os tragas contigo dentro da alma

Pede que o caminho seja longo
Que sejam muitas as manhãs de Verão...
Entra em baías nunca vistas
Detém-te em portos de comércio fenícios
E compra formosas mercadorias

Visita muitas cidades do Egipto
E aprende avidamente com os seus sábios
Tem sempre Ítaca na tua mente.
Chegar lá é o teu destino.
Mas não apresses a viagem.

Melhor será que ela dure largos anos
Que sejas velho quando chegares à ilha
Com tudo o que ganhaste no caminho
Sem esperares que Ítaca te enriqueça

Ítaca presenteou-te com uma bela viagem
Sem ela não terias sequer partido...
Mas mais nada tem para te dar.



Konstantino Kavafis


19 janeiro 2011

O sono

O sono não vem sem que mil imagens me desassosseguem.
Sem que infinitas perguntas continuem dispersas e sem resposta.
No silêncio escuro do meu quarto.

Sem que eu revolva todas as impossíveis saídas que buscámos.
Saídas impossíveis, eu sei!
Mas como dormir então ...
se também sei que teria sido possível não chegar a ser impossível?
Não morrer!
No silêncio branco de outro quarto.



18 janeiro 2011

Vou em passos lentos.


Novamente dia 18?
Sempre tão rápido o correr do tempo!
Que a minha passada lenta não acompanha.
Esta chuva escura que não passa.
Uma mulher numa maca, no IPO.
Não olho para que não se sinta "humilhada" ...
Impressiono-me.
Uma criança doente que me sorriu, na ala de pediatria.
Este tempo opaco.
Eu a fugir de mim.
A perseguir um sorriso de criança.
Que me oferece caracóis, em vez de um beijo.
Neste dia 18.
David!



13 janeiro 2011

A música dele.


Mais um programa do David. 
Era bastante novinho quando começou a ser apreciador de Jazz. 
Faz-me muita falta o ambiente de permanente descoberta e actualização jazística e musical em que vivíamos. A diversidade de ritmos era uma constante ... uma marca de referência, aqui em casa.
Agora, é a saudade que é uma constante ...

Michel Petrucciani
Com o programa de hoje começa o ciclo de instrumentos e esta semana o instrumento que escolhi é o piano, ou seja, os músicos convidados serão apenas pianistas, acompanhados dos seus grupos ou tocando a solo.

Começamos com um pequeno grande pianista que se chama Michel Petrucciani.

Michel nasceu em França no ano de 1962 e faleceu em Paris no ano de 1992.

Este pianista conseguiu contornar os efeitos negativos da rara doença osteogenesis imperfecta, de que sofria, para se tornar num grande artista. Esta doença incurável retarda o crescimento dos ossos e Michel faleceu novo, aos 37 anos, parecendo ter já 77.

Michel actuou com uma grande diversidade de artistas e foi aclamado por todo o mundo.

Alguns dos músicos com quem tocou foram: Lee Konitz, Wayne Shorter, Jim Hall entre outros...

Vamos, então, ouvir Michel Petrucciani.

Até logo que jazz...





12 janeiro 2011

Ao adormecer


A chuva cai sem cessar, borrata os vidros de tristeza e eu não vejo.
Reescrevo os dias. Tento, com toda a força, não pensar ...
Há muito que não posso abeirar-me de pensar, sabendo que estou, conscientemente, a pensar.
Desabituei-me, quando pensar,de forma reflectida, era um abismo escuro de que não queria nem ousava aproximar-me.
Tinha medo; um medo visceral, mas, estranhamente, protector.
Que me ajudava a não me render ao que me diziam ser inevitável.
Por isso, não pensava.
Toda eu era acção e permanente movimento; sabia o que tinha de fazer.
...

Mas tempo e abismo fundiram-se, apesar de mim; apesar de nós.
Ficou o medo, que eu não entendo ... surge com o pensamento.
O chão que me sustinha abriu brechas; e vivo num equilíbrio instável e flutuante.
Reconheço os sinais.
Pressinto a aproximação das crises de amargura insuportável e tento, fortemente, esconder-me das imagens tristes que se descolam desse lugar fechado em mim.
.....
Basta uma que, no silêncio da noite, subitamente se solte  ... para me despertar do torpor que antecede o sono e transportar para o passado.
Para um tempo em que o meu filho David existia.



05 janeiro 2011

O Miguel dorme

O Miguel adormeceu e a casa está em silêncio.
As gatas sossegaram, deitadas, nas proximidades dos sofás, já que não há o perigo de serem "atacadas" subitamente.

Parte da manhã, passámo-la enfiados no quartinho do David.

Preciso de arrumar aquelas prateleiras, onde se misturam os meus dossiers de trabalho, com caixas cheias de CDs de fotos do David, de espectáculos iluminados pelo  David, de músicas de que o David gostava especialmente e que gravava para os amigos, com libretos de Ópera do Estúdio de Ópera do Porto com quem o David colaborava, com as revistas de Jazz do David, com as revistas de design de luz do David, com os trabalhos dele de iluminador e com as pastas dele bem organizadas nos seus lugares ... e que ainda não olhei com olhos de ver.
Não é urgente; não quero esgotar o que que há do David e que continua por abrir.
Tenho tempo!
E passo à frente; fecho novamente ou nem toco e rasgo e deito para um saco de lixo papéis meus, material que não voltarei a usar.
Talvez amanhã ...
Enrolo novelos de lã, arrumo roupas do Miguel que já não lhe servem, ...


O Miguel a tirar brinquedos antigos (2 anos?) da caixa amarela, olhando-os como se fossem novos.
Abóbó ... qui ...qui ...
Para que eu me aproxime.
Quer mostrar-me que sabe dar corda a um gatinho de peluche e põe-no a subir uma passadeira.
Ó ... Ó, continua ele, delirante com o que vai encontrando.
Agora, quer pintar. E sento-o na minha secretária. Um grande calendário à frente. Um marcador vermelho na mão.

Vou folheando uma agenda do David. Esta é de 2003.
Está lá tudo - projectos, actividades em curso, marcação de encontros de trabalho, tarefas diárias, aniversários, ... desenhos de bonecos ... uma planta de um auditório riscada à pressa.... e um verso ou uma frase que lhe agradou, de vez em quando.
E aquela letra torta de esquerdino. Inconfundível.
Não me desperta saudade. Acho que a saudade já vive naturalmente em mim.
É, antes, um sentir um certo cansaço do futuro!
O tempo confunde-me.
...
Bóbó! Bóbó! Um A "gannn!" de grande e abre os braços; um A "niii" de pequenino e junta as mãos; um B, um M de Mimi e de Mamã, um P de Paíi.
Bóbó! Ó.. Ó... um 2 e os dois dedos em pé, um 6 e os 5 dedos de uma mão aberta e o indicador da outra mão bem empinado!
Pintou tudo! Tudo, não!
Reparo que só pintou os nomes dos meses e tentou não passar para fora dos limites das letras!
Espectacular, Miguel!
Horas de almoçar!
....

Agora, o Miguel dorme.