29 novembro 2010

Recompensa! Não espero.


Um passeio em grupo, dos antigos.
Num impulso de coragem.
Viseu, desta vez, por que não?
Montebello, um hotel confortável e acolhedor; quarto quentinho e espaçoso.
Um almoço a quatro, ao lado da Sé, um lento escorregar pela Rua Direita, onde o sol projecta as sombras dos telhados.
Ao fundo, o Teatro Viriato. E eu a atravessar o fosso do tempo, para trás, para trás.
Uma lágrima repentina a escorrer.
Ninguém a reparar.
Uma descida, agora, a oito, no funicular.
Um passeio pelo Polis de Viseu, que nos leva até ao rio, antes raramente apercebido.
Passos lentos, conversas cadenciadas, monólogos interrompidos ...  alguns risos, algumas piadas antigas. Sinto-me segura.
Quatro de nós somos velhos amigos. Quarenta anos!
Somos um velho grupo de amigos. Vinte anos?
O funicular sobe esforçado.
Anoitece.
O meu coração esmorece.
Como a noite. E sinto a saudade a crescer.
...
O mesmo ritual, repouso no hotel antes de sair para jantar.
O velho Cortiço.
As mesmas conversas, sempre diversas, às vezes, mais calorosas, porque somos diferentes.
Diferenças que a amizade dilui.
Mais um jantar que acaba nos mesmos risos, em piadas de sabor antigo, embora renovadas. Um porto seguro.
Recolher rápido sob os 4 ou 5 graus negativos.
Os corpos distendem-se pelos sofás, no hotel, antes de dormir.
Jornais que se lêem, revistas que se folheiam, um jogo de futebol entrecortado de comentários sobre a cidade de Viseu, partilhados através de uma consulta rápida na net.
Alguém fala do Chiado de Lisboa.
Uma faísca salta do recanto da memória. Lágrimas que não controlo e mostro a fotografia que trago comigo.
Eu e o David no Chiado; as marcas da doença já visíveis.
Dois sorrisos serenos. Como aconteceu não restar nada?
....
Um pequeno-almoço a sete e a conversa já vai acalorada. Caótica.
Este país ... a situação politica ... empregadas domésticas ... esta cidade .... e a miséria e a fome envergonhada a aumentar  ... Buenos Aires ... divórcios inesperados ...
Foi sempre assim. É bom que continue a ser assim; caótica mas perceptível entre nós.
O Museu Grão Vasco. Um aldeia medieval recuperada. Uma estradinha romana.
Mais um almoço.
Que é feito desta? Tens visto aquele? E os filhos? Que fazem? Quando nos veremos?
Estamos quase a partir. Para o Porto. Para o Alentejo.
Não é um regresso como os antigos; em casa, espera-me o vazio. O teu quarto vazio. Apercebo-me de que estou ansiosa por regressar porque até dos teus lugares vazios, em casa, tenho saudades.
...
Cheguei.
Sinto-me cansada.
Gostei de rever os amigos. Mas resistir “bem” fora do meu canto toma-me todas as energias.
As mãos tremem-me e a cabeça abandona-se no encosto do sofá, temerosa do dia de amanhã.
Aquele mesmo peso no estômago ... aquele não querer pensar, falar ou ouvir ... de quem sente que o caminhar, o tentar, o esforçar-se (por mim, pelos outros) já não me leva onde, antes, supunha poder levar.
...
Os meus livros chegaram. Estão ali encaixotados.
Alguém quererá ler o que se esconde por detrás do teu sorriso tímido e maroto, nas capas?
É só onde te podem ver!!



Foi o que restou de todo este tempo com que ainda não aprendi a lidar?
Sei perguntar.
A nada sei responder?

14 novembro 2010

Faz, muda, altera, não faças ...

Moledo,
Gaia,
Moledo,
uns cravos vermelhos na areia,

Paris, a luz da cidade, a cidade LUZ, as comidas preferidas do David,
numa loja "do David", brinquedos para o Miguel,
passeios de city tours, muitas dores nos pés, mais locais de Paris,
uma boutique Nytia,
algumas lágrimas e a saudade,
um museu líndíssimo,
não tanto pelo que alberga,
mais pela arquitectura, mais pelos jardins suspensos, Branly,
perto da torre Eiffel,
os cartazes a anunciar espectáculos, muitos espectáculos,
muitos desenhos de luz,
sem a luz de palco, o palco na penumbra,
eu na penumbra, sempre,
apesar da luz brilhante do sol, que me aquece.
E que me agrada! 
... mas preciso de chorar.


Faz um esforço mais,
é preciso ter outra atitude,
pensa nos outros,
ainda tens tanto para viver,
não podes continuar assim,
precisam de ti,
o David não volta,
constrói projectos,
és tão nova,
volta à escola,
não podes continuar assim!

Assim como?
Isto que faço não se chama viver? 


Então e Moledo e o livro terminado e o jardim 
e as ervas daninhas que arranco, debruçada sobre a terra, durante horas.

E a chegada do Miguel, logo pela manhã, que, 
com um belo sorriso de quem acabou de acordar, 
avança intrépido para as três gatas que o aguardam no hall, 
ali atraídas pelo toque longo da campainha.
E avança, 
"GATATATA ..."
 fazendo girar a sua própria gata de peluche, na direcção dos "pobres" animais, 
sempre curiosos deste ritual.
Subitamente, num momento de ternura, o Miguel pára;
 sorri, abraça a sua Becas, 
dá-lhe dois beijos no focinho e ... 
de novo, lá vai ele na direcção da Genufa que, curiosa, ainda resiste, 
atrás da cortina. 
Mas não tarda a fugir, impelida pelo “Gatatatatata ...” vigoroso 
ou por algum bocado de plasticina que esteja à mão. 
E o Miguel dá gargalhadas sonoras, 
mais ou menos indiferente aos pedidos de beijos da avó ou da Tata 
ou às tentativas de despedida da mãe ou do pai.
Que aguardam que o Miguel termine a sua entrada sempre tão calorosa e viva.
...
E Moledo, Gaia, Caldas de Aregos para almoçar com amigos 
e Chipre, ainda a acompanhar o Manel!
Chipre,
o mar azul e quente, sobretudo o mar azul e quente,
azul
e a lonjura
e as saudades ...
dos telefonemas aos filhos
...
do tempo em que havia David,
do David.

Faz um esforço, por quem precisa de ti.
Tens de viver!
E quem diz que não faço?
E tudo o que faço ... não se chama viver?
Ou tentar?
Muito esforço ... talvez não se veja!
Maldito cansaço!
Só o Miguel o espanta!
Quem sabe do esforço que faço?


Anda!
Fá-lo por ti!
E o tricot?
Tens-te esquecido do tricot!
Faz um esforço por ti.

Por mim? Quem diz que preciso de mim?
Confunde-se, talvez, com o que faço pelos outros!

Vai ao ginásio
Inscreve-te na natação
Faz ioga
Vai ao cinema
Faz um curso de culinária, gostas tanto de cozinhar
Não te enfies em casa
Descansa
Vai à escola
Dá uns passeios à beira-mar.


Sinto-me cansada!
Hei-de voltar à Junta Médica
(um pequeno problema oncológico)
Mas estou bem.
Tristeza? 
É normal!
....
E o esforço que eu podia pedir que fizessem por mim?
Mas não peço!
Bastaria que não ligassem quando me vêem com uma lágrima.
Nem sempre lhes resisto! 
Durante o dia ...
Mas esforço-me.
Bastaria uma festa silenciosa na cabeça,
 ou apenas aquele "Está bem, só um bocadinho, para aliviar!" 
que o Manel murmura.

...
Por que razão preciso tanto de chorar?
Talvez porque não chorei antes ...  não podia.
Agora, choro muito ... porque sim.
Há momentos em preciso de respirar, 
como se tivesse a respiração aprisionada,
há muito tempo.
Preciso de respirar fundo.
Encher os pulmões do ar que me rodeia.
E que me faz chorar.
Porque não sinto o cheiro do David.

03 novembro 2010

Marionetas

Morreu o João Paulo Seara Cardoso, o criador do Teatro de Marionetas do Porto.
Já não vai ler o quanto lhe agradeço no livro "Mamã, vamos dançar?" a confiança que sempre depositou no David e o apoio que lhe deu, até ao fim.
Um fim ... que foi acontecendo como se nada fosse.
Um fim, com luz e palco ... sempre ali ao lado.
Como se nada fosse!
Como se pudéssemos continuar a falar dos amanhãs de Jazz, de festivais de percussão, de rabiscar projectos, de sonhar.

É verdade, David, o João Paulo morreu e esta cidade, mais uma vez, quase não estremeceu.
Os mesmos de sempre choraram o seu desaparecimento.
Umas notícias de rodapé.
Comentários no Google.
Não chega!!
O meu coração entristeceu; tu ficarias desolado.

Tinhas razão - esta cidade não merece os seus artistas, os que a fazem brilhar lá fora, os que continuam a lutar por um espaço cultural digno... contra ventos e marés.
Os que buscam a beleza.
Os que acabam por se aninhar nos nossos corações, porque fizeram coisas bonitas e dedicaram a sua vida a construir torres feitas de sonhos, suportados por lindíssimas marionetas.

Foi um lutador como tu, David.
Foi teu amigo.
Foi-se e senti que mais um fio que nos liga ao passado, se quebrou e sabes, filhote, senti o coração mais amargurado e sem ânimo.

Hoje, apeteceu-me dizer "Obrigada, João Paulo!"


Por mim.
Pelo David, certamente.