30 junho 2010

Sequências

Mais um dia passado no IPO.
Gente até mais não.
O ambiente estava pesado.
Hoje, havia mulheres que choravam ...
Mas ninguém as interrompeu, ninguém se chegou!
Ninguém lhes põs a mão no ombro.
Eu também não o fiz.
E senti-me impelida a abeirar-me delas.

Mas quem sou eu para as poder consolar?
Quem sou eu para lhes dizer que devem ter força?
Que vale a pena acreditar?

Acabaria por chorar ... como acabei por fazer durante as duas consultas que tive.
Não por mim (está tudo bem) mas pelo David.
Será que a partilha se pode fazer em silêncio?

Mais tarde, ao sair, alguém chamava "David!". Virei-me. Uma senhora acompanhava ... talvez o marido.
Por fora da camisa, este "David" transportava a "bomba" da quimioterapia. Aquela bolsinha azul que se leva para casa, para continuar o tratamento por mais 24 ou 48h ...
Pormenores em que reparo!?
São as minhas imagens do passado!

Que pena não se poder ouvir a voz do David, a apresentar estes programas!
Que saudades!



Caros ouvintes, o programa de hoje é dedicado a um jovem compositor Nova Iorquino chamado Jason Lindner.

Este senhor ganhou fama, no final dos anos 90, devido à sua bestial Big Band que tocava todas as segundas-feiras à noite, no famoso clube de Nova Iorque chamado “Smalls”.

Lindner tocou com muita gente e fez parte da geração de outros músicos novos já mencionados em programas anteriores: Kurt Rosenwinkel, Avishai Cohen e Diego Urcola.

Hoje, vamos ouvir um dos temas do disco “Premonition”. Espero que gostem e até logo que ... Jazz Faz Tarde

David Sobral


28 junho 2010

Nem antes nem depois!

Existe o antes e o depois da morte de um filho.

Do meu filho David.

O depois é tão pesado e intenso que esmaga o antes. Como se tudo o que vivi tivesse sido apenas sonhado.

No entanto, existiu, eu sei; tenho a memória de ter havido um passado … e aprisiono as imagens, na tentativa de lhes rever os contornos.

Mas as imagens são baças e só por breves, brevíssimos instantes, consigo, às vezes, colocar-me no centro delas.

E, nunca, nenhuma das imagens corresponde ao que sinto ter sido; apenas as palavras com que falo ou ouço falar delas me colam ao tempo, aos factos, aos lugares.

Mesmo essas palavras, que me situam, apodrecem e quebram-se, muitas vezes e subitamente, sob a carga do esforço que faço para me fixar, no antes ...

E tudo se perde, novamente, nas brumas desse tempo antigo onde eu sei que estive, do qual tenho marcas visíveis e amigos verdadeiros que percorreram comigo os dias de antes e se mantêm no depois que é este agora. Um presente esfacelado.

O passado que, às vezes, partilham comigo e onde eu estive, certamente, por inteiro ... parece-me estranho e só muito tenuemente o sinto como comum.

Porque esta que sou, agora, reergueu-se diminuída, fragilizada, incompleta ... no dia em que o David morreu.

Uma parte de mim perdeu-se.

Não se transformou nem deu lugar a um outro eu ...

Mesmo que diferente.

Mesmo que mais ausente.

Mesmo que mais sonâmbulo.

Perdeu-se, definitivamente, com a morte do David.

Sinto-o, a cada dia que passa ...

Hoje, está a ser um dia mais triste.

Porquê?

Porque me acontece.

Apenas.



17 junho 2010

...

Hoje, dei por mim, a chorar numa caixa do Continente ... apenas porque a música de fundo tocou em fios sensíveis da minha saudade.
Já não sei que música era!
Certamente, uma daquelas que tinham o ritmo do David.
O ritmo daquele tempo!
Agora, teríamos outros sons, cá em casa ... ou no carro, sempre novos, sempre excelentes ... Diferentes!

Pontualmente, ainda faço um esforço para me passear pela FNAC e pôr os auscultadores nos ouvidos, como o via fazer ...
... mas não descubro.
Chama-se imitação dos gestos!
Era preciso ter o "feeling" musical do David.
E não tenho ...
E procuro outras formas de resistir à passagem do tempo sobre as memórias desse tempo!
Que foi cruel e tão duro ...
Mas esse era o tempo em que o David existia, ainda.
Enchendo a casa de sons, logo pela manhã ...
Gritando "gooooolo!", quando a "nossa" equipa entrava na baliza.
Era um "gooooloo!" que se ouvia, por toda a casa !

Agora, "procuro-o" de outras formas.

Mudar a pilha e a pulseira do relógio do David.
Poli-lo para que se mantenha em bom estado.
Tenho tanto medo que se estrague!
Uso-o, desde que ele morreu.
Tal como uso os pijamas dele ... que adaptei à minha altura.
Tal como uso o chapéu que o protegia do sol e, agora, me protege a mim.
E ouço a voz límpida e bem articulada, na apresentação dos programas do Jazz Faz Tarde.

Tolices! Pensarão alguns!
São saudades!
E cada um reinventa a força de viver ... como pode.

A voz dele ... continua jovem, bem disposta ... como sempre, quando falava de música ...
Eu estou tão distante, tão mais velha!
Tão mais triste!
Há quem lhe chame serenidade!!
Poderá a tristeza confundir-se com serenidade?
Será que isso importa?




Olá caros ouvintes, bem vindos a mais um Jazz Faz Tarde.

Hoje vamos falar sobre uma jovem cantora chamada Lhasa de Sella que não é propriamente uma cantora de jazz mas é uma cantora que se inspira no jazz.

Lhasa nasceu em Nova Iorque, filha de pai mexicano e de mãe americana. A sua familia viveu num autocarro escolar convertido em roulotte e viajava por toda a América, México e Canadá. À falta de televisão Lhasa lia, escrevia e cantava para a familia.

Aos 20 anos de Lhasa, a sua familia parou no Canadá onde conheceu o guitarrista Yves Desrosiers que passou a ser o seu colaborador musical a tempo inteiro.

Só conheço um albúm de Lhasa que se chama “La Llorona” e tenho, acreditem imensa pena de nunca poder ter visto este grupo actuar ao vivo.

Penso que não é possível alguém ouvir este disco e continuar o mesmo, é fortíssima a expressão com que Lhasa canta. Ouçam ... que Jazz Faz Tarde!

David Sobral




12 junho 2010

Ainda aqui ...


Estou, aqui, meu filho ... sempre por aqui!
Tu sabes ...
Não sei e nunca saberei viver de outra forma.
Este é o único lugar onde o meu silêncio se quebra.
Onde sinto que a minha sombra não escurece a luminosidade dos dias.
Dos dias dos outros.
Neste lugar silencioso.
Sinto-me em casa.




Noutros tempos

quando acreditávamos na existência da lua

foi-nos possível escrever poemas e

envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído

pelas salivas proibidas - noutros tempos

os dias corriam com a água e limpavam

os líquenes das imundas máscaras

hoje

nenhuma palavra pode ser escrita

nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras

ou se expande pelo corpo estendido

no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se

onde se pode - num vocabulário reduzido e

obsessivo - até que o relâmpago fulmine a língua

e nada mais se consiga ouvir

apesar de tudo

continuamos e repetir os gestos e a beber

a serenidade da seiva - vamos pela febre

dos cedros acima - até que tocamos o místico

arbusto estelar

e

o mistério da luz fustiga-nos os olhos

numa euforia torrencial

Al-Berto
Horto de Incêndio