21 fevereiro 2010

Só 28 vezes o dia 18??!!




Um copo de leite.
Um bolo de requeijão.

Que estranho falar destas coisas tão banais, aqui.
E, no entanto, são importantes, para mim.
Por isso, falo delas só aqui; porque não sou capaz de falar delas.
Reflectem muito do que vai doer sempre, cá dentro.
Pequeninas coisas soltas que flutuam num imenso mar de saudades.

Bebi um copo de leite frio, pela primeira vez, desde que o David morreu.
Fiz um bolo de requeijão.
O ultimo bolo de requeijão, … levei-o para o hospital de dia, durante uma das quimioterapias do David, para oferecer às enfermeiras e doentes.
Eu era a “senhora dos bolos”, mãe daquele rapazinho …

Já repararam num copo grande de vidro cheio de leite? É tão bonito!
O David adorava beber um enorme copo de vidro transparente, cheio de leite frio…
E mirava-o, antes de o beber. Achava-o bonito.
Luminoso!
Também eu sempre gostei de fazer estranhas combinações.
Beber leite em grandes copos de cerveja ou de sumo ou cálices de vinho do Porto.
Tomar café em copos pequeninos de vidro, de bagaço, …
O leite branco … era comum aos dois!
Bebi um copo de leite frio e vieram-me as lágrimas aos olhos.

Não foi apenas um copo de leite.
Tinha o sabor amargo da saudade.

06 fevereiro 2010

Ao som da "Sodade"



Esqueço-me, agora mais, de coisas recentemente ditas, feitas ou ouvidas.
Não é indiferença, não é distracção.

Foi mesmo agora que falaram comigo e já não me lembro ...
É ausência inesperada, não voluntária.
Estou sempre entre cá e lá.
Saio, só por um bocadinho ...
As evocações são tão reais!
Já estou de volta.
Percorro longos corredores de palavras, feitas de imagens, atoladas em areias movediças.
Ditas de cá ou ciciadas ao ouvido, de lá.
Tempo de antes e tempo do depois.
Permaneço em ambos, todo o tempo é agora.
É mais forte do que eu, este escorregar lento e contínuo.
Apesar da fadiga do viver à beira do abismo que separa estes meus mundos paralelos, não sobrepostos.
Instalo-me, onde quer que esteja, como duas.
Mesmo aqui, frente à lareira acesa ...
No sofá ao lado, o David adormeceu cansaços.
Mesmo aqui, frente à lareira, eu velava no silêncio.
Tudo está, duma certa forma, relacionado com o David.
Com o meu existir passado, que não escorreu lentamente pelos telhados do tempo...
Que, subitamente, se rasgou.
Me rasgou.
Deixando-me entre cá e lá.
Basta o vislumbre súbito do mar, basta um som com um timbre diferente, basta um gesto familiar, basta uma voz de locutor de jazz, basta uma luminosidade mais agressiva, basta eu existir …
Neste desalinho ausente dos dias.
Um pouco perdida na parte de trás da vida.

Para deixar de estar, aqui.
Afastar-me ... continuando aqui.


02 fevereiro 2010

Sempre ou nunca




Não tenho tentado atentar na desorganização que reina nesta casa.
Não tenho, aliás, prestado grande atenção a quase nada.
Diria que me sento no tempo e espero que passe.
Ou até que, subitamente, a saudade, que hiberna por uns dias, desperte mais pesada e sempre dolorosa. E choro, no silêncio da noite.
E sinto, sempre mais, a ausência do David, em cada silêncio instalado.
E não compreendo como pode ser para sempre ...
Aqui, posso dizer o indizível "sempre e nunca".
Nesta casa, tais palavras extremadas são exactamente iguais.
Nunca mais ... o meu filho David.
Para sempre, o meu sempre, ... sem o David.
E choro baixinho.
Invisível.
E instalo-me no tempo.
Naquele tempo exacto em que o nunca e o sempre se entrelaçam.



"... já tinha iniciado uma viagem, uma viagem que não era em torno de um sepulcro de um bravo, mas em torno de uma resignação, uma experiência em certo sentido nova, pois esta resignação não era o que vulgarmente se chama resignação, nem sequer paciência ou conformidade, mas mais, um estado de mansidão, uma humildade requintada e incompreensível que o fazia chorar sem que viesse a propósito e onde a sua própria imagem ... se ia diluindo de forma gradual e incontida, como um rio que deixa de ser rio ou como uma árvore que arde no horizonte, sem saber que está a arder."
Roberto Bolano, 2666