14 outubro 2009

Lãs



Voltei às lãs.
Para o hospital, daquela vez, também as levei.
Foi a única coisa que levei.
Convencida de que seria, talvez, apenas mais uma estadia na urgência.
À noite, estaríamos de regresso a casa.
Mas o tempo foi-se arrastando, depois, no quarto 24.
E, agora, regresso às lãs.
Liga, liga, meia, meia... meia... Miguel, não puxes o rabo à Jenufa. Liga, liga. E as agulhas avançam.

Olha, Miguel, queres que te conte aquela história daquele menino...
E as asas dos gansos que voam, e os gatos de outras histórias... era uma vez um menino chamado Miguel, de caracóis louros e ar muito espevitado.

E o sol naquele quarto e o David a alongar-se nos sonos; mais frequentes...mais longos. Também foi menino; gostava de gatas; preferia a Valquíria, gata de rua, preta e branca, grande...que lhe dava cabeçadinhas nas pernas. Teve pena de não ter levado a Valquíria para Barcelona.
Soubera eu...e teríamos levado.
A Tosca morreu passado pouco tempo.



Liga, meia..não, liga, liga; meia, meia. É assim. Mais um cachecol.
Está quase pronto.

Ora, este menino batia à porta da avó, todos os dias, de manhãzinha. E entrava lampeiro, sorridente, perna em riste...
Mas não era para a avó que olhava, quando empurrava a porta enorme e ele espreitava, pequenino, de lá de fora.
Era para as duas ou três ou apenas uma gata que o esperavam, esticadas, sentadas com os seus pés fofos, pelo hall ou umas a seguir às outras, na escada para o piso de cima.
A primeira brincadeira deste menino era desatar a correr, ainda agarrado ao dedo do pai ou da mãe, atrás da gata que lhe estivesse mais próxima.
Rapidamente, desapareciam, perante a investida do Miguel.
..........
Outubro, as lãs guardadas num saco, quietas.
As mãos ocupam-se do David, das mãos do David...
Liga, liga... estás a ouvir a avó, Miguel?
Pois a verdade é que lá em casa, quem tinha preferências e decidia eram as gatas; todas muito diferentes.

A Valquíria cautelosa e com a prudência da idade, mal o via dar um passo ou esticar a mão, pirava-se, rapidamente, pela escada acima.
Só a voltava a ver de longe. Bem gostava o rapazinho de se aproximar... mas nada feito.

A Muji, emigrante de casa dos papás do Miguel, mantinha-se nas redondezas, cautelosa e volta não volta, lá o deixava aproximar, fazer uma festinha e ia à vida dela ou passear para o telhado. Não apreciava confusão.

Sobrava a Jenufa que não fazia outra coisa a não ser andar atrás deste menino ou vir sentar-se na beirinha da manta dele, no chão. Estava mesmo a pedi-las.
Jenufa foi nome escolhido pelo David, no último Verão, ...mas isto não te conto. Um dia, talvez. Veio de Moledo.
Malha. Está quase. Os gansos e os gatos da Manuela continuam a espreitar por cima do meu ombro.
Falta rematar, mais uns pontos e fica pronto... Depois vejo como o "enfeito".
Nunca tenho ideia definida do que vou fazer... É sempre para ter as mãos e um pouco a cabeça ocupadas.
No hospital, dessa vez, não tirei as lãs do saco. Não valia a pena...


Desculpa, Miguel, distraí-me.
E o menino de olhinhos inteligentes e brilhantes aproveitava a proximidade e insensatez da Jenufa, a mais novinha, e atirava-se a ela... Era mesmo isso. Atirar-se. Primeiro fazia o que a avó pedia e acariciava, de mansinho, as costas e cabeça da gatinha.
Depois, entusiasmava-se (e de que maneira) e era um desatino.
Começava a dar-lhe palmadas nas costas...e ela aguentava, ainda, pacífica.
Então, sem aviso prévio, lá puxava o rabo da pobre da Jenufa que, coitada, era, sempre, salva, in extremis, pela avó daquele verdadeiro vândalo de gatas.
E, mais uma vez, serenados os ânimos, cada qual se punha a jeito para nova investida...


Liga, meia, gansos recortados no azul, gatos, o quarto 24, a beirinha de um poço escuro iluminada pelo sol, um menino chamado David, uma mãe... um convite para dançar.
......
O menino desta história chamava-se Miguel, como tu.
Vá, Miguel, devagarinho...assim festinhas fofas.
Olha que ela zanga-se.

3 comentários:

Jaime Latino Ferreira disse...

LIGA LIGA MEIA MEIA


Liga
liga
meia
meia
fio de lã
cachecol
é teia
ata
desata
corre
pela mata
pêlo de gata
bichano
que ataca

Rezo
não rezo
oração
não desprezo
terço
que corre
pelos dedos
da mão
enquanto oro
pensar meu decoro
agarro-o
com força
e razão

Liga
não liga
meia
na mão
osculto
o meu coração


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 14 de Outubro de 2009

manuela baptista disse...

O NOVELO

OU

A RAZÃO DE SER DE UM CACHECOL

Um dia, o menino curioso disse:

-Avó, quero dar a volta ao mundo!
Digo adeus a este mar, mas voltarei sempre para te encontrar.

-Então leva contigo este cachecol maior do que tu, mais longo do que a mais longa estrada,
mais quente do que um chá de limão.
E quando sentires saudades, lê as histórias nele tecidas e encontrarás o caminho de volta! -respondeu a avó.

Feliz o menino partiu, o cachecol enrolado ao pescoço,no bolso uma pena de ganso para dar sorte.

Ao passar junto dos três pinheiros voltou-se e uma ponta de lã ficou presa numa fina agulha

-Não faz mal!-pensou,
-quando quizer regressar é só voltar a fazer o novelo...

Para a Isabel, com um abraço enovelado

Manuela Baptista

Anónimo disse...

Isabel,

A dor que continua neste Outubro de sol.

Um beijinho


Filomena