28 outubro 2009

David "O Bom"




Gosto de ter, por aqui, a companhia de quem me lê, pacientemente, e não se cansa do que digo.
Porque digo, sempre (parece-me) o mesmo.
É engraçado como nos afeiçoamos a pessoas que são nomes, palavras e uma foto (excepto a Nini) - Jaime, Manuela, António, Graça, Branca, F. Ferreira, Marina, Filomena ... .
Tenho-os por companheiros, jardineiros amantes de cultivar estes jardins de palavras que ganham raízes e crescem, imitando as tulipas, os cravos, os malmequeres, os meus três pinheiros, a oliveira e um ou outro carvalho.
São palavras-flores de que só alguns jardineiros mais afoitos sabem cuidar, teimosamente e dia a dia, transformando-as em sentimentos de amizade, compreensão e tolerância.

Eu escreveria, aqui, tivesse ou não tivesse amigos daí.
Continuarei a escrever aqui, haja ou não haja, um dia, quem me ouça daí.
Mas é bom sabê-los aí, a ouvirem falar do David ... de mim, daqui.

Talvez, um dia, os nossos encontros não sejam tão frequentes ...
Ou talvez continue a ser tudo, exactamente, como é.
Escrevendo sempre (mas não tão bem como o J. Ferreira crê!).
Mas sempre...

Sempre
Que me sentir mais amargurada com a falta que o meu filho me faz.
Que o vazio se instale, à noite, com o chegar do crepúsculo.
Que, à mesa, olhar para aquele lugar, à cabeceira, onde ele não está.
Que comprar um cravo vermelho.
Sempre que vir um palco iluminado.
Sempre que ouvir certos timbres musicais - os sons do David.
Sempre que ouvir alguém chamar "David!"

O parceiro que me calhou, na escola, nas aulas de substituição chama-se David.
Acho que mais ninguém reparou.
Nem ele...

Virei...
Sempre que o areal cheire a algas e a água do mar vá lamber aquela rocha em Moledo.
Sempre que a senhora da estrada tenha a tenda da fruta montada, a caminho de Caminha.
Sempre que for à Grécia, àquele mar azul e transparente; e sentir o aroma das comidas, dos temperos, dos grelhados.
Sempre que uma melancia revelar o seu interior vermelho.
Sempre que procurar algum descanso, como o David fazia, em frente à Mezzo.
Sempre que vir as guitarras dele encostadas à parede, ao fundo da sala, em Moledo,
ou guardadas, aqui em casa.
Sempre que ouça o Zé Mário Branco, o Sérgio Godinho, o Fausto, o Lenine, a Maria João, o Mário laginha, o B. Sassetti, o Alexandre Frazão, a Lhasa, a Susana Bacco.... jazz, música cigana, africana, e tantas mais, mais e mais que repousam nas prateleiras e nos gavetões do escritório dele.
Digo ao meu neto "Vá, Miguel, tira uma música para, hoje, ouvirmos." E é assim que vou tentando ouvi-las todas.

Sim , acho virei aqui...
Sempre que ler uma notícia de jornal, sobre a (talvez) cura do cancro.
Sempre que a minha gata Valquíria me dá turrinhas nas pernas.
Sempre que vejo, pendurado no bengaleiro da entrada, o chapéu com que se protegia do sol, quando estava doente.
Quando passar por um clube de jazz.
Ou me detiver em frente da montra duma loja de instrumentos musicais.
Sempre que conseguir sorrir, perante a letra dele, torta, de esquerdino, nos papéis que guardo nas minhas gavetas.
Ou vejo a assinatura dele de criança - David "O BOM" (como os heróis da B.D.)

"O BOM" (de bondoso) foi o que o irmão acrescentou ao nome que identificava o David, na chapa do hospital, por cima da cama, no quarto 24, no dia 17 de Outubro.

Ele já não se apercebeu deste gesto de ternura.
Tinha adormecido.


12 comentários:

António disse...

Há, penso eu,razões também misteriosas para estarmos todos aqui reunidos nesta tocante " Casa da Venância". Talvez como diversos afluentes do mesmo rio que, por diversificados motivos, aqui se encontram regularmente.No que me respeita, desde a primeira hora me tocou a Dor da Isabel,primeiro. Depois a emanação bondosa que ressalta das fotos do David.Por último, há,assim o sinto, um Mistério,ainda indecifrável,nesta Caminhada da Isabel,que nós todos acompanhamos.Estou convicto que o segredo,por enquanto esotérico, desse persistente rumo,se resume naquela frase mágica de David, o Bom :" Mamã, vamos dançar ?"...

casos e acasos da vida disse...

Venância,
Sou uma desconhecida, que vai passando por aqui, porque escreve muito bem e não só bem... escreve com sensibilidade, com amor... Gosto que escreva sobre o David, porque ele está inteiramente no seu pensamento e assim permanecerá. Ter este blogue inteiramente dedicado a ele, deve ser libertador, é o sítio onde vai escrevendo as suas mágoas.
Beijinhos,
Marisa

Pé de Salsa disse...

Isabel,

Esta sua casa é visitada diariamente por muitos "amigos" anónimos que, embora a compreendam e sofram por si, por diversas razões, preferem passar e permanecer em silêncio.

Brevemente (espero), quando publicar o seu livro, gostaria de estar presente na apresentação do mesmo e, tenho a certeza, que muitos de nós, gostaríamos de lhe poder ir dar um abraço.

Beijinho
Isa

Jaime Latino Ferreira disse...

OH DAVID


Então tu, para além de esquerdino eras bom!?

Não achas demais!?

E já para não falar dessa tua obsessão pelos shoppings!?

Mezzo, gostavas do canal Mezzo!?

Apre!!!

Então, se tivesses tido tempo - sempre cheio de pressa como é próprio de uma pessoa da tua idade (!) - terias gostado do meu blogue ...

Isso é que teria sido e ter-me-ias desafiado, estou certo, a essa tua multi-culturalidade musical a que não teria resistido!

Se calhar ter-me-ias enferneziado o juízo e eu ter-te-ía gritado também:

Desampara-me a loja e vai chatear os da tua idade, olha o puto, não querem lá ver!?


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 28 de Outubro de 2009

Anónimo disse...

Isabel, subscrevo tudo o que o António escreveu e só acrescento que o facto de todos aqui nos reunirmos, só pode simbolizar a BONDADE do David.
Um beijo, grande,
MM

J. Ferreira disse...

Isabel,

Hoje atrasei-me.

Assim e como jardineiro, recentemente arregimentado ao grupo, por si eleito, venho só dar uma rápida regadela a este seu jardim, posto que as palavras-flores já se encontram expressas, no fundamental, por outros colegas jardineiros(as)

Quanto à sua escrita, seja pródiga no adubo que alimenta essa seiva.
Permita-me já agora discordar, pois, o que disse antes, não se tratou duma crença ou opinião subjectiva, mas antes uma constatação factual.

Afectuosamente,

Anónimo disse...

Isabel,

Um beijinho

Filomena

manuela baptista disse...

O Rapaz

era engenhoso
curioso
habilidoso

gostava de meter o nariz em tudo

descobrir quantos pêlos tem um gato
quantos picos tem um cacto
quantas sementes tem uma melancia
quantos sonhos, se dormia

como o candeeiro era grande
deixou o nariz de fora
e meteu lá a cabeça

-Mas que brilhante ideia!-exclamou a reluzir
a piscar
tremeluzir
-as luzes são o meu forte, não as vou mais apagar, deixo-as assim a brilhar...

Um abraço

Manuela Baptista

Silenciosamente ouvindo... disse...

Palavras tão "fortes as suas" que
só você (mais que eu) pode sentir,
apesar de me tocarem...cancro...
uma palavra a que muitos fogem...
uma realidade com a qual já muito
"convivi" e também tive perdas...
Pois é...mas continuo a considerar
que o David a quer sorridente...
e através do seu neto poderá
reencontrar uma outra forma de
conviver com a realidade.

Branca disse...

Querida Isabel,

O seu texto é belíssimo, descritivo de tantas emoções associadas a lugares, alguns que conheço de outras emoções diferentes e por isso tudo o que aqui diz me toca tanto.
O David, sempre presente e talentoso é há muito alguém que já faz parte da nossa vida. Tenho o site dele guardado nos meus favoritos e agora mesmo acabei de passar por lá. Às vezes lembro-me e parece que encontro sempre algo de novo, de criativo.

Deixo-lhe beijinhos
Branca

Cândida Ribeiro disse...

Olá Isabel,

Vou passando todos os dias por aqui para a ler e ouvir falar do David.

Um abraço com muita luz

Unknown disse...

Querida Isabel,
estou por aqui...deste lado, a ler as suas palavras que dão luz ao meu coração, a rever as fotografias lindas que me vão aquecendo e a desistir de lutar contra as lágrimas que ainda vão caindo sempre que passo por aqui.
Um grande beijinho de quem vos adora.
Joana