22 junho 2009

Desencontros



O teu cais de partida e o nosso ponto de encontro será, também, um dia, o meu cais de partida. É de Moledo que falo e do mar.
É, aí, que mais próxima me sinto de ti.
Dos teus sonhos e projectos.
Do teu autocarro dos sonhos.
Revejo dias de Verão, dias de esperança, de alegria e determinação na luta que se travava.
Revejo os teus dias de Outubro, já de olhos cansados, ausentes mas nunca desistentes.
Com o mesmo fito de sempre - avançar para a cura.
E eu a acompanhar-te, sempre, embora sabendo... ou talvez não.
Da esperança nunca se desiste.
Agora...
Vou sendo, sempre, diariamente, continuamente, invadida por imagens, às vezes ténues, às vezes bem nítidas, do caminho percorrido.
Em nenhuma situação, encontro razão para arrependimento.
Estive contigo, sempre, nos bons e maus dias; mesmo no fim, embora já não me visses... ou talvez sentisses...
E é essa leveza de um sono final, que me ajuda, quando acho que já não resisto e me sinto à beira de desistir.

Esta semana que passou foi demasiado triste; triste, a ponto de não vir aqui.
A ponto de não saber ou poder falar.
Há palavras que entorpecem os sentidos; há palavras que ferem como punhais.
Podem até nem passar disso...palavras; mas há palavras falsas e rudes e cruéis e desumanas.
Palavras que representam castelos construídos sobre areias movediças, sobre ideias disformes, distorcidas, deformadas e repetidas, até se recriar uma outra realidade, mais conforme com a necessidade de viver o dia-a-dia.
A realidade tal como existiu, de tanto ser recusada e reestruturada e re-imaginada e recontada sob a forma de uma nova narrativa, acaba por se transformar numa outra representação mental do real.
E chega-se a acreditar que foi mesmo assim; através de estranhos processos mentais que a validam.
Essa narrativa ajuda quem a conta, a viver o dia a dia, sem o peso da culpa e do remorso.
É uma regra de sobrevivência...
Há pessoas assim; há grupos assim!
Mas as palavras; ouvi-as.
Palavras cruas ecoam, pesadas; não porque eu as sinta, mas porque são loucas, feitas de maldade, feitas de mesquinhez ... que eu não entendo.
Embora compreenda...
Sobretudo não fazem justiça ao David, que foi forte, corajoso, meigo (mesmo quando era ele a precisar de meiguice) e determinado e lúcido, na forma com encarou a vida e nas decisões que tomou.
Foi um grande homem; uma estrela muito luminosa junto de quem teve o privilégio de o conhecer de perto.
Junto de quem teve a oportunidade de privar com ele nos momentos bons ou difíceis.
Até ao fim.

"Levaste-o para Barcelona ... querias que morresse mais depressa, não é?"

Não é meu hábito lamentar-me, para além da saudade..., que é o que me pesa.
Mas fiquei sem fala e desabafei por quantos cantos havia; chorei por aí.
Que crueldade dizer isto a uma mãe que tudo percorreu e de tudo desistiu, na cegueira de uma esperança, uma mãe que jurou nunca chorar na frente do filho e não chorou.
Mas que, agora, não tem um dia que não seja toldado pelas lágrimas.
As lágrimas, suporto-as.
A maldade e a injustiça. Não!
O David sabia-o bem!



Do que um homem é capaz

7 comentários:

jaime latino ferreira disse...

UM HOMEM É CAPAZ


Um homem é capaz
De usar a palavra para não magoar
ou pisar os outros

Um homem é capaz
de usar a palavra para consolar
amar os outros

Um homem é capaz
de não abdicar dos ideais
que incluam os demais

Um homem não se atreveria
a atirar à cara dos outros
a culpa das desgraças de que padecem

Um homem é capaz
de chorar
de ser solidário
de usar as palavras como bençãos
e não punhais
que aos outros os ferissem pelas costas

Eu sou capaz
de me indignar
de me revoltar
de gritar
cantar contigo a memória de quem contigo sempre esteve
e que acompanhaste
estóica
até ao fim

Para lá do fim
que afinal não existe
até hoje
para lá de hoje e sempre


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 23 de Junho de 2009

António disse...

"Levaste-o para Barcelona ... querias que morresse mais depressa, não é?"

Há frases que são mais cruéis do que todas as mortes.Esta é uma delas...

Olga Almeida disse...

Há determinadas palavras que se ouvem e que não merecem qualquer resposta. Ouvem-se apenas. Por serem palavras fora da realidade vivida limpam-se da mente, para que não se transformem em agressividade, rudez e egoísmo.
Já não importa o que se pensa... Importam as boas lembranças, a boa disposição, a energia, o sentido de humor, os amigos do David.
Um beijinho grande
Olga

Ana Cristina disse...

O David sentiu o teu amor,a tua protecção e a tua presença até adormecer.

O David sentiu sempre o teu amor incondicional.

As palavras que ouviste foram ditas por um ser desprezível que a mim só me inspira nojo e repulsa absoluta.

As palavras que ouviste são tão só a confirmação de que a pessoa que ousou dizê-las não soube, nem nunca saberá, o que é amar incondicionalmente um filho.

1 beijo.
Nini

Anónimo disse...

Isabel, hoje por um acaso, encontrei este poema e não quis deixar de o partilhar consigo.
Um beijinho,
MM

Um poema de Canon Henry Scott Holland

A morte não é nada,
Eu estou apenas noutro lado,
Eu sou eu, tu és tu,
Aquilo que éramos um para o outro,
Continuaremos a ser
Chama-me, como sempre me chamaste,
Fala-me, como sempre me falaste,
Não mudes o tom da tua voz
Nem faças um ar solene ou triste
Continua a rir daquilo que juntos nos fazia rir
Diverte-te, sorri, pensa em mim, reza por mim,
Que o meu nome seja pronunciado em casa,
Como sempre foi
Sem qualquer ênfase, sem qualquer sombra.
A vida significa o que sempre significou,
E continua a ser o que sempre foi,
Porque é que eu estando longe do teu olhar,
Estaria longe do teu pensamento?
Espero-te, não estou muito distante
Somente do outro lado do caminho,
Como vês, tudo está bem...

manuela baptista disse...

Encontros

Pela desordem natural das coisas
dei-te colo
quando estavas cansado
dei-te ânimo
quando deverias voar
emprestei-te os meus olhos
quando entardeceu

Conduzi-te longe
para que a tua esperança
não morresse
amei-te
para novamente te dar a vida

Apenas fiz o que me ensinaste
terno
meigo
corajoso mestre
de quem as estrelas
que iluminaste
invejam o brilho
a loucura
de quem é jovem e belo

Pelo autocarro dos teus sonhos
enganado na paragem prometida
correm rios
caudais
de lágrimas doridas
em que mergulho vendavais
de gelos frios


E dos que deveria esperar consolo
recebo palavras
como setas
envenenadas
cruéis
abjectas

Infelizes
desapiedados
mesquinhos
construtores de culpas
e segredos
merecem apenas
uma carroça de ódios
com paragem obrigatória
na estação dos medos

Manuela Baptista
Estoril,25 de Junho 2009

Isabel Venâncio disse...

Compreendem-me!
Que bom!
Isabel