19 junho 2009

20 meses


Escola Soares dos Reis

Passaram 20 meses.
Soa-me sempre estranha esta progressão dos meses e dos dias que avançam e, no entanto, é como se tudo tivesse parado.
Eu continuo a encontrar conhecidos, quase amigos, que me dão um abraço porque não me voltaram a encontrar, desde há muito, muito tempo.
E falo-lhes do David como tendo sido ontem e choro, choro sempre.
Choro pouquinho de cada vez mas choro mais vezes.
Já não ligo; sinto as lágrimas rolarem pela cara abaixo mas já nem as seco.
Deixá-las correrem.
Ontem, dia 18, foi também a festa a fingir de encerramento do ano escolar.
Foi, na realidade, a festa de despedida da Berta, a nossa presidente do conselho executivo.
Reforma-se.
Ontem, na escola, esperei pelo fim do turno da tarde; esperei encontrá-la sozinha no gabinete.
E entrei.
Hoje, não tenho aulas e na segunda feira é a tomada de posse da Manela como Directora.
Só podia ser ontem; último dia da Berta como presidente.
E entrei; ela lá estava, como sempre, à volta dos papéis da secretária a fechar o dia.
Conheço-a desde que os meus filhos e os filhos dela eram pequenos; conheço-a talvez há 28 anos.
E então expliquei-lhe o quanto me vou sentir um pouco mais só, agora também na escola; agradeci-lhe toda a compreensão e apoio que me deu, quando o David adoeceu e quando o David morreu; quando entrava no gabinete apenas para chorar e sempre me deixou chorar; nunca me disse "vai passar" porque é mãe e sabe que não passa; disse-lhe que não tenho na memória o que fiz, na escola, nos dois anos lectivos que correram, enquanto o David esteve doente.
Não me lembro; não sei se fiz "disparates"; nunca mos cobrou. Foram dois anos em branco.
E ofereci-lhe uma prenda para durar; uma prenda que ela possa sempre associar ao David, atrvés de mim.
A Berta gostava do David.
E chorei, chorei mais. Porque esta é, ainda, a única maneira...
E à noite, fui à festa...
E levei o Manel; não sou capaz de ir sozinha a estas coisas, embora conheça toda a gente, há muito tempo.
Sou das mais antigas daquela escola.
Vi a escola passar no palco - alunos antigos (da Berta, mas também meus) já médicos, engenheiros civis; vi os colegas de agora, vi a minha Amarílis que veio dizer um poema e que, vinda do meu passado recento, sinto (ela, sim!) que faz parte do meu presente; vi o filme que fizeram sobre a escola que percorri tantas vezes, sentindo-a como uma outra casa minha; vi, sem ver, os meus clubes de cinema, de vídeo, de jardinagem, de expressão teatral; vi colegas antigos já reformados, vi a minha amiga Fernanda Cardoso (que perdi).
Vi 30 anos passarem e, nesses 30 anos, estava grande parte da minha vida, que folheei, ali, página a página, como um livro. Até ao dia em que o David adoeceu ... e eu me esgotei na única luta que passou a ter sentido - a cura do David - e que perdi.
Senti que já me despedi, há muito, da escola ; saí de cena e dessa vida que vivi.
Como numa reforma antecipada...
"Tens o Miguel e o teu filho!", disse-me a Berta.
"Se há pessoa que mereça andar de cabeça levantada, és tu!", disse-me o Parreira.
Também tenho os amigos.

5 comentários:

jaime latino ferreira disse...

ESCOLA DA MINHA VIDA


Que poderiam dizer os meus antigos professores que, olhando para mim constatassem que nunca fui capaz de terminar um curso e pesasse a curiosidade que até hoje não me abandonou, andei por alguns, música, psicologia e educação, nunca tive estabilidade profissional tão pouco e vou fazendo o que posso sem que, todavia, alguma vez tenha deixado de dizer o que entendesse dever ser dito e quantas vezes à custa do trabalho do momento ao qual nunca me verguei ...!

Que terão dito professores, colegas e amigos!?

Até que um dia comecei a escrever vencendo os meus próprios complexos e dando-me conta de que, provavelmente, não fosse o meu percurso heterodoxo e não escreveria assim como escrevo.

E teria perdido, afinal, não só a visão que conservo como a minha capacidade de síntese!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 19 de Junho de 2009

António disse...

Este blogue também traduz um Mistério e o espírito do David ecoa por aqui...

Anónimo disse...

E também nos vai tendo a nós, amigos virtuais da blogosfera e que dariam tudo para lhe secar as lágrimas e apaziguar essa dor.
Um beijinho
MM

manuela baptista disse...

A história triste de uma lágrima amarga

Era uma vez uma lágrima amarga, pequena, redonda, brilhante.
Quando rolava, as outras lágrimas diziam:
-É linda esta lágrima, parece a pérola do colar de uma Princesa, pena ser tão amarga!
-É brilhante esta lágrima amarga, tem o reflexo do sol, tem a luz vibrante de uma estrela!
-Que pequenina esta amarguinha e como rola apesar de tudo!

A pequena Lágrima fingia-se indiferente a estes comentários, agitava as suas moléculas de oxigénio e hidrogénio, os seus cristais de amargura, que por uma razão desconhecida haviam substituído o cloreto de sódio e dizia para consigo:
-O que eu queria mesmo era ser água de um rio, viajar cantando entre as margens, cair violentamente em cascatas, brincar com as trutas e os salmões, esconder-me no meio da terra fria e saltar por fim num oceano imenso! Seria então uma lágrima salgada como as outras!

A Lágrima vivia escondida e triste sem coragem de se soltar, de cumprir o seu destino de lágrima amarga, mas um dia, as outras lágrimas cansadas de fazer sempre o seu trabalho e já um pouco gastas e sem força, exigiram a sua presença imediata!

Relutante a pequena Lágrima soltou-se e devagarinho rolou por ali abaixo e gostou daquela vertigem de lágrimas soltas e salgadas, depois foi ficando para trás com saudades da sua casa protectora, atrasou o passo e de repente sentiu que uma mão delicada a segurava, a sentia e ouviu uma voz suave:
-Que lágrima doce!

Ouviu também o som do mar, o marulhar das ondas, sentiu o cheiro a sargaço e a neblina da manhã e no fundo do seu coração, doce como o mel, a pequena Lágrima redonda e brilhante despiu a sua amargura e mergulhou em busca do sal que lhe faltava.

Manuela Baptista
Estoril,22 de Junho 2009

Maria Emília disse...

Sim, minha amiga, temos os outros filhos, mas não temos aquele que já se foi e isso dói, dói muito. Chore sempre que tiver vontade de o fazer. Chorar faz bem. Nós é que sabemos como queremos viver o nosso luto. Quem não passou por lá não sabe de nada. Vinte meses foi ontem o caminho é longo e difícil.
Talvez a certeza de que o David continua a ser, nunca deixará de ser, a possa confortar um pouco.
Um grande beijinho,
Maria Emília