19 abril 2009

De longe a longe



Quem pode ser completamente feliz?
Talvez bastem alguns momentos de felicidade, de longe a longe, e não pedir demais.
Talvez se deva aprender a dizer "Estou feliz!", em vez de assumir "Sou feliz!"
Não, eu não sou feliz.
Nem procuro a felicidade.
Mas encontro, aqui e ali, momentos em que quase me sinto feliz.
São aquelas frestas de tempo, em que o sorriso sereno do David olha para mim e me diz "Anda lá, mamã, vai à luta!" ou leio alguns dos textos que tenho, por aqui, guardados.
E sorrio, ... porque ele era assim, ingénuo e bem-humorado mas perspicaz.


Como neste, que acabei de ler...pela décima vez... Era muito jovem, ainda. Talvez 16, 17 anos.

O GajaShopping

Actualmente existem vários estilos de vida que ganharam raízes na sociedade. Um desses estilos que é talvez dos mais recentes, é, sem dúvida, o estilo shopping.

As pessoas que praticam este estilo não são nem melhores nem piores do que as outras, são pessoas normalíssimas. O shopping é a instituição social mais democrática que existe, dentro de certos limites nada rígidos. Sabem, por exemplo aqueles seguranças que têm tudo menos ar de seguranças?

É mesmo isso, eles não estão lá para garantir a nossa segurança e o nosso bem-estar. Eles estão lá para avaliar as curvas e medidas de quem entra nos shoppings. Só assim se explica a exagerada quantidade de meninas wonderbra e rabinho-de-bebé que vemos, a toda a hora. Já houve casos em que espiões de agências de modelos se infiltraram em equipas de segurança.

Também só assim se explica o famoso slogan apelativo “Menina, a próxima supermodel podes ser tu!!".

Dentro do shopping, todas as pessoas são iguais ou, pelo menos, todos os jovens são iguais. Existem os empregados de fast-food e os fortes candidatos a empregados de fast-food. Quando um jovem começa a ir muitas vezes a um determinado fast-food, é porque está a pensar em ir para lá trabalhar.

É mais uma presa do famoso slogan sócio-político “Se és jovem, dinâmico e alegre, junta-te a nós".

Como em tudo, nos shoppings também há minorias. Neste caso, são os casais de namorados esfomeados. Como se não tivessem mais nenhum sítio onde estar, esta espécie não tem problemas em proceder às suas transfusões de saliva explícitas em qualquer ponto do shopping, seja nas escadas rolantes, no elevador, na Pizza Hut e, em casos extremos, no Toys’r’us.

Os shoppings não instituíram apenas um estilo de vida; eles reforçaram a influência causada pelas lojas, mais pormenorizadamente pelos saldos. Há muito para dizer acerca dos saldos. A coisa mais importante é que é uma época de grande agitação social, principalmente da classe feminina.

As mulheres entram em grande actividade, mostrando-se mesmo extremamente dinâmicas. Tanto de dia como de noite, elas mexem-se mais. Enquanto os animais são despertados para o acasalamento pelo cio, os humanos são despertados pela época de saldos.

Mas nem a todas as mulheres, esta época corre assim tão bem. Como este fenómeno social coincide com o início da 2ª Mão do Campeonato de Futebol, as mulheres que estão casadas com adeptos do Sporting, têm a sua situação ligeiramente dificultada.

As pessoas que vivem o estilo de vida de shopping podem, se o desejarem, ter uma semana preenchida com actividades de shopping. De manhã, quando não se tem aulas ou trabalho, é um prazer ir lá comprar o jornal. A esta hora, só encontramos os famosos jovens que, finalmente, decidiram a aceitar o cargo de empregado de fast-food e, como o fazem pela calada, o shopping está praticamente vazio.

Ao almoço, toda a população shopping se encontra lá; até mesmo a famosa comunidade de pessoas-de-óculos-de-sol. Estas pessoas usam os óculos não para dar estilo, como toda a gente pensa, mas para se camuflarem, porque são, nada mais nada menos do que os ex-empregados de fast-food que, finalmente, se afirmaram na sociedade.

Ao jantar, encontramos uma população mais velha que vem, inocentemente, jantar e apanhar um pouco de ar puro. Por vezes, ao fim-de-semana, há elementos desta espécie que aparecem à noitinha para comprar um sundae de chocolate para as suas queridas esposas porque lhes apetece uma-coisinha-doce-antes-de-ir-para-a-cama. Este comportamento é muito famoso; acontece sempre depois da época de saldos.

O shopping é o palco daqueles que nunca puderam pisar um palco verdadeiro. Quando uma figura pública famosa aparece muitas vezes em shoppings, é caso para duvidar. É um estilo de vida em progressão ascendente; daqui a alguns anos ver-se-ão shopping-girls e shopping-boys em todos os agregados familiares. Daqui a algum tempo, tal como no caso das rotundas, existirão também o Mondim de BastoShopping, o Póvoa do LanhosoShopping, o Via Alcanena e muitos outros… Não é fácil resistir às tentações modernas.
E não somos menos do que os outros!!

A rapariguinha do shopping

2 comentários:

jaime latino ferreira disse...

A RAPARIGUINHA DO SHOPPING DA CLASSE MASCULINA


Meu Caro David,

Falaste das rapariguinhas, dos seguranças, dos espiões, da classe dos mais velhos, da classe feminina e dos saldos, do cio e da saison, dos incógnitos de óculos escuros, dos artistas sem palco ou com todo o palco do mundo, cantaste Rui Veloso e só te esqueceste da rapariguinha do shopping da classe masculina!

Nunca deste por ela!?

Ai se te contasse como elas são cada vez mais atrevidas!

Como se bambuleiam incógnitas ou não, com ou sem óculos escuros e se pavoneiam, graças a Deus (!), interessantes e sedutoras por aí, nos shoppings ou fora de portas e se entendem, sem que mais ninguém disso se dê conta, em códigos secretos e olhares furtivos e com sinalética só delas conhecida fazendo dos outros meros aprendizes, os namorados, por exemplo, santa ingenuidade (!), que mal sabem o que transcorre nas suas barbas e numa clandestinidade cada vez mais escancarada, saída de armários, expositores e montras ou gavetas de lojinha de aluguer!

Ai se tu soubesses onde isto já vai ...!

Graças a Deus!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 20 de Abril de 2009

Branca disse...

Isabel, como é bom quando nos dá textos do David tão prespicazes, inteligentes e futuristas, pois o que ele previa nos meios suburbanos, começa a acontecer.
Já vi pequenos shoppings dessa natureza abrirem e acabarem por fechar passado pouco tempo.
Jà não há paciência que resista a tanto shopping e ao seu ambiente.
A coisa mais aberrante que vi num shopping foi uma imitação de mar em toda uma parede em frente aos sofás onde se sentam os que esperam por quem perde por lá horas nas compras. Provávelmente também já viu, fica aqui tão perto! Vi, mas nem olhei em pormenor para perceber a técnica com que eram projectadas as imagens, só pensei ao passar: Meu Deus, onde já chegamos, qualquer dia deixamos de ter total contacto com a natureza, temo-la empacotada e abrigada, para não sentir o frio "desagradável" mas tão acariciador para mim, da brisa no Inverno, ou os salpicos trazidos pelo vento. Será que os amantes do shopping saberão o que é vento, no sentido mais poético do termo, o prazer de se sentirem despenteados, a carícia da brisa marítima, o fresco cheiro a maresia?
Gostei imenso de ler este texto.
O David era um jovem imensamente profundo e talentoso.
Beijinhos para si, Isabel.